Querido diário:
TODOS MADRUGANDO, ALGUNS LUCRANDO [1]
Muito antes de se falar em lucros e reis, as aparências levaram o homem
antigo à constatação de que o Sol despendia um período regular, chamado de 24
horas, para dar uma volta completa em torno da Terra. Cérebros diligentes
conseguiram, em tempo hábil, constatar que, sim, o Sol gira, mas não em torno
da Terra. E esta gasta pouco mais de 365 períodos de 24 horas para dar uma
volta completa no que, assim, passou a chamar-se de Astro Rei. Ou seja, o
período de 24 horas marca outro fenômeno: um giro da Terra com relação a si
própria, por assim dizer, independentemente do Sol. Já se sabia que um dia não
é igual ao outro, sendo esta observação empírica organizada em torno de
conceitos tais como o de Passeio do Sol, equinócios e solstícios.
Dia de equinócio já provocou muita celebração, dada sua raridade, uma
vez que há apenas dois por ano. Sua peculiaridade é que as horas de luz e
sombra dividem-se fifty-fifty. Também os solstícios são raros, e marcam a maior
noite (no solstício de inverno) e a menor (no de verão). Dois solstícios e dois
equinócios constituem-se em pontos extremos de uma elipse, chamada de
Eclíptica, ou, mais geocentricamente, de Passeio do Sol. Ocorre que, ao
descreverem esta trajetória elíptica, os raios solares produzem períodos
diários de maior ou menor iluminação, o que, sem trocadilho, se refletiu nos
diferentes ritmos do trabalho humano, atrelando-o aos ritmos da natureza.
Na medida em que o ser humano foi transformando a natureza, ele também
foi transformando a si próprio, rompendo cada vez mais com os ritmos ditados
por aquela. Todavia, os contatos sociais são facilitados quando os diversos
agentes obedecem a um mesmo esquema de regras, assinalando-se, por
conveniência, os horários. Assim, as sociedades arbitraram regras para
desfrutarem de períodos comuns para suas atividades de trabalho ou lazer.
No Brasil, da mesma forma que na Inglaterra, o maior volume da atividade
econômica se encerra diariamente, digamos entre cinco e sete horas depois do
meio-dia. Ocorre que, tanto no sul do Sul como aqui, nas proximidades do
solstício de inverno o dia já virou noite às 6 p. m. Simetricamente, no
solstício de verão, 6 horas p. m. ainda é dia claro. Nestas circunstâncias
totalmente ditadas pela natureza, concebeu-se (no período em torno do solstício
de verão) alterar o contrato social que faz as pessoas iniciarem seu trabalho,
digamos às oito horas da manhã do dia claro e o concluírem às 18h, já sem a
necessária quantidade de luz solar.
Essa mudança nos hábitos sociais, manifesta pelo fato de todos
despertarem uma hora mais cedo, usando luz artificial menos tempo, implica
economia de energia não fornecida diretamente pela natureza. Numa sociedade
cuja organização econômica esbarra na escassez e repousa no lucro, nada mais
sensato do que economizar luz artificial. Aparentemente, todos ganham, e
ninguém sai perdendo.
O ingresso no mundo encantado da economia faz com que tudo vire
mercadoria, tudo se transforma em fetiche com preços e lucros. Cabe, assim, indagar
o que foi feito da hora de repouso retirada a todos os membros da sociedade
durante a primavera, mesmo que devolvida algum tempo após. Se é certo que o
chamado "horário de verão" implica economia de energia, alguém
lucrou. Resta sabem se os ganhos acima referidos são democráticos.
Admitamos que, em 1987, o aumento da produtividade no uso dos recursos
representados pela implantação do horário de verão gerou, em 105 dias, uma
economia de energia de cerca de 786 milhões de kiloWatts-hora (1,5% do consumo
total de energia no ano citado). Desse volume, os consumidores se apropriaram
de, no máximo, 35%, na forma de consumo residencial e iluminação pública. Isto
implica que a economia dos setores industrial e comercial foi de 551 milhões de
kWh. Caso esta economia tivesse sido integralmente transferida aos então cerca
de 142 milhões de brasileiros madrugadores, cada um teria lucrado quase quatro
kWh. Isto representa, se não estou enganado, um banho gratuito de chuveiro
elétrico de 100 minutos para cada brasileiro.
Não é muito, reconheco, mas se considerarmos que estes banhos gratuitos
foram concentrados nas mãos (ou no lombo?) de cinco milhões de empresas, já se
trata de 50 horas de banhos para cada uma. Não é pouco. Transferido esse
consumo para um aparelho menos gastador de energia, como um televisor, essa
economia ficaria muito mais visível.Supondo que foram os trabalhadores que
suaram essas horas de banho, eu chamaria esse fenômeno de aumento da mais-valia
relativa.
Mas nem só de mais-valia relativa vive o capitalismo. Consideremos a
hora de repouso que foi retirada aos trabalhadores no primeiro dia do horário
de verão. Isto se constitui em mais-valia absoluta. E também vale dinheiro.
Como referi, ela lhe será restituída após 105 dias, no Brasil, e após sete
meses, na Inglaterra. Como ela é medida em termos físicos, sua devolução
prescinde de correção monetária. Mas quem se apropriou dela durante 105 dias (e
não se trata apenas de uma hora, e sim de uma hora multiplicada pelo número de
trabalhadores), se aplicar os kiloWatts no "over" a uma taxa de juros
de 12% a. a. receberá 3,5% a mais depois de 105 dias.
Num país em que um número expressivo
de cidadãos usa como "cartão de crédito uma navalha", não é de
espantar que a regra de funcionamento da sociedade repouse sobre a apropriação
individual dos frutos do trabalho coletivo. A exemplo da Inglaterra, que mais
esperar de uma sociedade cuja organização econômica esbarra na escassez e
repousa no lucro?
DdAB
[1] Publicado no Bulletin of the Oxford University Brazilian
Society, N.3 p.6-7, Outubro de 1989. Reproduzido no livro “A Cura da Época Futura”.
(2) E a imagem foi editada a partir da linda
book review daqui. Parece que o futuro voltou a chegar ao país do futuro.
{3} Nota
bene: acabo de dar uma olhada na internet na frase “esbarra na escassez e
repousa no lucro” e parece que apenas eu é que a escrevi. Acho que me emocionei
ao fazê-lo, tanto é que a repeti dentro do próprio artigo.
/4\ Parece óbvio que
editei este negócio todo em 17/out/2012, não é?
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