20 maio, 2023

O Fetichismo Industrializante: de volta ao tema



No inverno europeu de 2010 tive uma epifania ao descobrir um debate sobre a "reprimarização da economia brasileira". Uma turma se queixava das exportações de soja, boi e minérios (ferro e petróleo). A primeira ideia que me ocorreu ao criticar esta abordagem é que, primeiro, a soja tropical não é "primária", ao contrário. Enorme esforço de laboratório foi feito pela Embrapa, a fim de se chegar a ela. E as esteiras que carregam o minério à superfície e dela ao transporte não são primárias. E volta e meia sugiro que razões diversas impediriam que o Brasil pudesse perder a chance de produzir as tais esteiras.

Em compensação, no tempo em que eu era assíduo, entrei numa conversa interessante no Facebook da qual reproduzo, sem pedir a ninguém, apenas minhas observações. Para isto, preciso editar profundamente o que por lá falei.

Primeiro, o comentário que orientou minha entrada na conversa teve algo a ver com a promoção de uma "política de desenvolvimento industrial". Sempre que ouço este tipo de ponderação, imediatamente penso que esta não deveria sobrepor-se a políticas de desenvolvimento do capital humano. Tenho afirmado que engenheir@s fazem máquinas, mas máquinas não fazem engenheir@s.

O fetiche industrializante tem origens nos estruturalistas latino-americanos rebatendo-se nos sucessores de Nicholas Kaldor: a indústria seria a chave do desenvolvimento econômico. Minha primeira contestação ficou apenas na intuição, pois não parti para a econometria. Entendo que Kaldor, Prebisch e essa turma postula que o crescimento do PIB é uma função da indústria. Eu contesto com a afirmação de que, digamos, o emprego na indústria é que é uma função do PIB global da economia. 

Mais alinhado com o modelo de insumo-produto, imagino que os fetichistas pensam que a oferta originada na indústria pode criar sua própria demanda e dinamizar a economia. Em outras palavras, deixa-se de lado a teoria da demanda efetiva, deixa-se de lado aquele dito que afirma que "quem manda é a demanda". No primeiro semestre da faculdade, usa-se um modelinho elementar de determinação da renda precisamente originando-se do lado da demanda. E, sofisticando esse modelo, chega-se ao mesmo resultado: aumentar o valor adicionado só pode ser feito pelo aumento da demanda. Este aumento, por meio dos insumos intermediários, vai expandir-se no sistema inter-industrial e propagar-se para o produto (PIB) e a renda.


Quando se fala de educação, entendo, por exemplo, que a demanda por "matrículas" terá efeitos diretos (digamos, professores e salas de aula) e indiretos, (digamos, ônibus, computadores, piscinas, centros esportivos). Para produzir ônibus, computadores, piscinas e centros esportivos, os empregos vão começar a aparecer precisamente enquanto derivados da formação de capital humano. Somem-se a isso mais prisões, mais postos de saúde, mais... esgotos (ou, menos sarcástico, serviços industriais de utilidade pública).

O custo de oportunidade de R$ 100 investidos em educação é esses mesmos R$ 100 investidos em indústria. Meu ponto é que cada R$ 100 de demanda induzida pelo gasto nos bens de mérito e públicos geram exatamente os mesmos R$ 100 de produto interno bruto (teorema fundamental da contabilidade social).

É muito importante notarmos que nada do que falei anteriormente é um reflexo exclusivo do funcionamento da economia doméstica. Não estou -longe disso- pensando na modelagem de uma economia fechada. Da contabilidade social, aprendemos que
PIB + M = DA,
ou seja, a demanda agregada é igual ao PIB acrescido das importações. Em outras palavras, a demanda agregada compõe-se de bens e serviços produzidos internamente (alfaces, tratores, cirurgias bucais) e produtos (bens e serviços) importados (computadores de grande porte, fretes e seguros pagos a navios de outros países). Quer dizer, estamos contando com a demanda doméstica por importações inclusive para produzir o PIB nacional com insumos importados. Mas temos aí uma questão de financiamento das importações. Como pagá-las, o país em destaque nada importar? Na economia aberta, surge o problema de como obter divisas para comprar no exterior. Não tem como pagar se não houver importações, a não ser com a contratação de dívidas internacionais.

Então entram em ação as políticas comerciais: o país só importará de quem, diretamente ou por triangulação, importar produtos brasileiros. Ou seja, se é para sonhar numa modelagem da esquerda moderna, devemos falar nas políticas comerciais. E já vou adiantando minha posição: precisamos de um horizonte de tempo inferior, digamos, a 100 anos, para chegar ao livre comércio. E a livre mobilidade da mão de obra. Afinal, somos ou não somos internacionalistas?

DdAB

07 maio, 2023

O Mito da Criação de Emprego e Renda

 

Hoje em dia, nada parece mais promissor para definir os rumos da economia brasileira que a alegada aliança estratégica que pode ser construída com a China, especialmente depois da visita que o Presidente Lula fez àquele país oriental. Vejo com ceticismo e até com ironia o cultivo da amizade do Brasil com as duas ditaduras da dupla China-Rússia. E tem gente que gosta, acha que o socialismo chinês vai botar o capitalismo no... chine...lo. Meu medo é que, na linha de Trump e Bolsonaro, o mundo esteja rumando para um governo mundial ditatorial com promessas de bem-estar naufragada e de liberdade comprometida.

Obviamente, faço minha crítica ao trio Brasil-China-Rússia sob meu ponto de vista tradicional, nomeadamente, a esquerda, a esquerda igualitária, quando vemos também que esse trio é um portento de desigualdade (dados da Wikipedia):

Brasil com dados de 2020 - índice de Gini de 0,489

China com dados de 2019 - índice de Gini de 0,382

Rússia com dados de 2020 - índice de Gini de 0,360.

Pois então I. Ao que parece, não é apenas o duo China-Rússia que foge à democracia na razão inversa da velocidade do burro correndo ao azevém. Com uma desigualdade desse tamanho, que podemos dizer sobre o igualitarismo no Brasil? Pouco, pouco ou nada. Tenho argumentado, como base em meus estudos e, a fortiori, na maior parte da literatura da economia do desenvolvimento, que a chave do igualitarismo é o emprego. Um simples emprego de, digamos, ascensorista, gera renda que pode ser gasta com a educação musical do filho. O professor de fagote mandará o filho ao Beto Carreiro. O vendedor de picolés no Beto Carreiro enviará o filho a um mestrado na Universidade de Paris, Texas, e assim por diante...

E como podemos falar em emprego no Brasil, empregos decentes, digo eu?

Pois então II. Concluo que essas alianças, ainda que se destinem a que o Brasil seja contemplado com uma fração territorial da Ucrânia (ou do Uruguay), não são democráticas, não conduzem à sociedade igualitária. Senão vejamos, com dados do jornal Zero Hora (edição de sábado, dia 7 e domingo dia 8, caderno DOC, página 8). O tão desejado investimento chinês no Brasil para gerar emprego e renda nos dá uma dica sobre a absoluta impossibilidade de que o Brasil crie... adivinhemos... emprego e renda para absorver seus 40 milhões de homens e mulheres detentores de emprego precário ou simplesmente desempregados.

Tomemos duas promessas milagrosas de investimento chinês:

Primeira:

Emprega da China GWM (aqui) prometendo abrir uma fábrica em São Paulo, com investimento de R$ 10 bilhões, gerando 2 mil empregos. Ou seja, a assustadora quantia de R$ 5 milhões por emprego.

Segunda:

Empresa da China BYD (aqui) prometendo absorver a massa abandonada da Ford (americana) estabelecida há 20 ou 30 anos na Bahia (terra da felicidade), com investimento de R$ 3 bilhões e geração de 1,2 mil empregos. Temos agora a metade: R$ 2, 5 milhões por emprego.

Temos à disposição as quatro operações (ou apenas duas...) para dar a real sobre o absurdo que é falarmos em gerar emprego e renda, como se isso fosse a salvação nacional. Esta, a salvação, é algo muito mais complexo e certamente impossível num horizonte de tempo razoável. E não acontecerá sem uma reversão completa na desabotinada concentração da renda e riqueza no país.

Esses 40 milhões de desempregados ou detentores de empregos precários, com a relação investimento/emprego da GWM, exigem R$ 200 trilhões. Modestamente, recuperar a massa falida da Ford exige R$ 100 trilhões.

Consideremos que o PIB do Brasil em 2019 foi de R$ 7,8 trilhões. Então não precisa nem calcular para saber que, mesmo com essa relação investimento/emprego ridiculamente baixa, digamos, de R$ 100 mil, já nos coloca requerendo o investimento de R$ 4 trilhões, ou seja, a metade do PIB. Investimento desta envergadura com relação ao PIB, só na China..., numa economia chamada de socialismo de mercado e certamente uma economia em que a classe trabalhadora é submetida a uma exploração selvagem. 

Parece óbvio que um outro mundo é, se não possível, certamente ultra necessário. E ainda precisamos descobrir como ele será e precisamos sobretudo de ter força para construí-lo.

DdAB