23 fevereiro, 2023

Amartya Sen e o Governo


À medida que a teoria econômica do século XX evoluiu a ponto de fazer-se uma crítica importante, aquele endeusamento das virtudes quase celestiais do livre funcionamento das forças de mercado veio a receber críticas acerbas. E, nesta linha, passou-se a falar em "falhas de mercado", como a existência de monopólio (que impede que o custo marginal M seja o determinante do preço da mercadoria, dando ao ofertante poder... de monopólio), fixando o preço acima do valor desse M e, para qualquer empresa com poder de monopólio, a discriminação de preços. A mais famosa das falhas, e talvez até nem a mais perniciosa é chamada de "externalidade", no sentido de que o mercado falha ao avaliar adequadamente tanto a produção (oferta) quanto sua absorção (demanda).

A todas essas falhas, nos anos 1950, os economistas da chamada teoria da escolha pública, passaram a acrescentar também as "falhas de governo", como é o caso da influência nas decisões políticas dos grupos de interesse ou a troca de votos entre os representantes populares nas câmaras legislativas. E, para fechar o tripé mercado-estado-comunidade, também passou-se a falar em "falhas de comunidade", como o linchamento e o suborno de autoridades penais públicas para fazerem vista-grossa a infrações das leis.

Nestas circunstâncias, prosseguindo na leitura das p. 314-315 de

SEN, Amartya (2022) Home in the World. New York: Liveright. 

encontrei uma passagem altamente erudita de Amartya conversando com dois Sams sobre as falhas de mercado. Destaquei os seguintes dois parágrafos. Apresento-os na tradução do Google revisada por mim:

[,,,] Eu estava mais preocupado do que Sam [Brittan, o primeiro Sam] com as deficiências do mercado e o que ele poderia fazer, em particular, sua incapacidade de lidar com influências sobre indivíduos e sociedades alheias ao sistema de mercado - o que os economistas chamam de 'externalidades ' (do qual a poluição, o crime, a miséria urbana e a prevalência de doenças infecciosas são bons exemplos). A. C. Pigou já havia escrito de forma muito esclarecedora, em 1920, sobre externalidades de diferentes tipos em seu notável livro A Economia do Bem-estar.

Em 1954, enquanto eu cursava economia com Sam Mahbub [o segundo Sam] e outros, o grande economista Paul Samuelson publicou um poderoso artigo intitulado "The Pure Theory of Public Expenditure", que discutia como os mercados tendem a avaliar muito erroneamente a produção e colocação de 'bens públicos' compartilhados, como segurança, defesa, arranjos gerais para cuidados de saúde e assim por diante. Uma escova de dentes é um bem privado por excelência (se é minha, não é sua para usar) e o mercado tende a lidar muito bem com bens privados. No entanto, a ausência de crime nas ruas é um bem público no sentido de que o uso dele por uma pessoa (beneficiando-se de uma baixa taxa de criminalidade por meio de seu impacto favorável em sua vida) não reduz a utilidade do mesmo 'bem' (a baixa taxa de criminalidade) para outra pessoa. O pensamento de Samuelson, que mostrava a gravíssima limitação da alocação de recursos para serviços públicos - se feita apenas por meio do mercado - teve grande impacto em minhas preocupações fundamentais, e tentei persuadir Sam a compartilhar dessa convicção. Concordamos com a solidez da distinção de Samuelson, mas, suspeito, continuamos divergindo sobre a importância que atribuímos aos bens públicos na tomada de decisões econômicas. Se essa era uma diferença, outra era a importância de evitar graves desigualdades econômicas, com as quais eu estava muito preocupado. Nosso forte acordo, bem como algumas diferenças residuais, sempre tornaram minhas relações com Sam intelectualmente estimulantes e produtivas.


Parece que os economistas da corrente principal (se é que ela ainda é assim chamada) esqueceram estes traços da história do pensamento econômico, negando-se a estudar a chamada teoria da escolha pública e, com ela, eximindo-se de pensar no governo como uma instituição que apresenta falhas escalafobéticas. Claro que isto faz muito mal para a esquerda que não consegue evitar trivialidades como a corrupção, eximindo-se de clamar por um governo mundial.

DdAB

Aqui está o original das páginas 314-315 do livro que citei lá no início.

   [...] I was more bothered than Sam [Mahbuh] about the deficiencies of the market and what it could do, in particular, its inability to deal with influences on individuals and societies coming from outside the market - what economists call 'externalities' (of which pollution, crime, urban squalir and the prevalence of incectious diseases are good examples). A. C. Pigou had already written very illuminantingly, in 1920, on externalities of different types in his outstandig book The Economics of Welfare.

   In 1954, even as I was doing undergraduate economics with Sam Mahbub and otheres, the great economist Paul Samuelson published a powerful paper entitles 'The Pure Theory of Public Expenditure', which discussed how markets tend to go very badly wrong in the production and placement of shared 'public goods' such as security, defense, general arrangements for health care and so on. A toothbrush is a quintessencial private good (if it is mine, it is not yours to use)  and the market tends to deal with private goods pretty well. However, the absence of crime in the streets is a public good in the sense that one person's use of it (benefiting from a low crime rate through its favourable impact on his or her life) does not remove the usefulness of the same 'good' (the low crime rate) for another person. Samuelson's thinking, which showed the very serious limitation of the allocation of resources for public services - if made only through the market - had a big impact on my foundational concerns, and I tried to persuade Sam to share that conviction. We agreed on the soundness of Samuelson's distinction, but, I suspect, continued to differ on the importance we placed on public goods in economic decision making. If that was one difference, another was the importance of avoiding serious economic inequalities, with which I was much concerned. Our strong agreement as well as some residual differences always made my relations with Sam intelectually stimulating and productive.

DdAB

21 fevereiro, 2023

São Paulo e o Trilhão de Árvores


 O lugar mais adequado ao plantio de árvores é mesmo enraizá-las na terra. Em casa, temos folhagens que vivem bem dentro do meio aquoso. No mundo, 1,2 trilhões de árvores plantadas em terras seria -bem creio- a salvação da humanidade já no segundo quartel do século XXI.

No jornal que leio diariamente, o nanico Zero Hora, fala-se numa devastação pela água no estado de São Paulo. E vem mais no ano que vem, vem mais neste ano e veio mais no ano que passou. A civilização planetária contemporânea, ou melhor, a elite planetária e seus aliados, tomam algumas medidas capazes de combater -eu disse "capazes"- os males do aquecimento global e da emissão de gás carbônico pelos gadgets civilizatórios, quase todos, destacando-se o automóvel movido a explosão do combustível. A gasolina era o padrão, o óleo diesel também e já na busca de soluções para manter o mesmo estilo de vida, o álcool metílico. 

Mas o que pouco ou nada se fala é da plantação de 1,2 trilhão de árvores (ver aqui). Vejo tantas virtudes nessa iniciativa que a conclusão a que chego é mesmo de que não será feito. E o que devemos esperar que aconteça depois do caos? Reerguimento. Só que não sabemos que tipo de reerguimento.


DdAB

19 fevereiro, 2023

Que Diria Amartya do Ruim Putin?

 


Muitos anos atrás, milhares, para ser sincero, li um sucesso literário que, ao mesmo tempo, era uma sutil resistência à ditadura militar no Brasil: 

CALADO, Antônio (1967) Quarup. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Pois agora dei uma olhada na Wikipedia para ter a imprenta. E vejo personagens principais, como o Padre Nando e Francisca. Mas tem uma Winifred, que não achei na Wiki e que também tem um papel ativo, ainda que transitório, na história. Em compensação, lentamente, estou devorando con gusto o livro:

SEN, Amartya (2022) Home in the World. New York: Liveright.

Uma biografia espantosamente erudita mostra que Sen conheceu as pessoas mais importantes de seu tempo e visitou os lugares mais entusiasmantes da parada. Amartya e Winifred. Graduando-se em economia e matemática (um B.A., na linguagem do livro), ele foi aceito para cursar pós-graduação na University of Cambridge. Ao chegar em Londres, ele encontrou Winifred Hunt, que veio a ser, no passado, namorada do pai dele, também graduado no Reino Unido.

A visita de Winifred foi uma maneira um tanto inesperada de passar minha primeira noite livre em Londres. Mas foi importante, tanto porque me deu a sensação de que Londres - e na verdade a Inglaterra - estava longe de ser um lugar estranho, quanto porque discutimos a inaceitabilidade da violência, mesmo por uma boa causa, que tinha sido uma questão tão polêmica na Índia na batalha contra o Raj. Aqui estava eu, no centro do império (embora fosse apenas Kilburn), discutindo a necessidade universal da não-violência, assim como aqueles que lutavam pela independência sob a liderança de Gandhi compartilhavam a mesma convicção. Eu não conhecia Kilburn, disse a mim mesmo, mas sabia por que alguém poderia ser um conshy.[Tradução da Wikipedia, com pequena revisão minha]

Que diria Vladimir Putin disso? Estou certo de que prenderia o livro, prenderia o Padre Nando, prenderia Francisca, prenderia Amartya, prenderia Winifred. E seguiria rindo da complacência da esquerda belicista brasileira que o apoia nessa tresloucada aventura, essa mania de invadir países que a ele não se alinham automaticamente.

DdAB

Original da página 252:

   Winifred's visit was a slightly unexpected way of spending my first free evening in London. But it was important, both because it gave me the sense that London - and in fact England - was far from an alien place, and because we discussed the unacceptability of violence, even in a good cause, which had been so divisive an issue in India in the battle against the Raj. Here I was, at the hub of the empire (even though it was only Kilburn), discussing the universal need for non-violence, just as those fighting for independence under Gandhi's leadership shared the same conviction. I did not know Kilburn, I told myself, but I did know why someone might be a conshy.

Aquele "conshy" que a Wikipedia deu na tradução isolada como "tímido", colocou em todo o texto como "tímido". Não contente, olhei na internet. Em um site, diz ser "Something that is rough and tough", que a própria Wiki traduz como "algo que é áspero e difícil". Como sabemos, quando tudo está perdido, busque o manual. No caso, busque o índice analítico do livro. Nele (p, 488) encontrei: 'Conshy (a derrogatory name for a 'consciencious objector') [.]. Parece que, no momento da leitura do trecho, o contexto me fez viajar em algo como "consciencious" + "shy", ou seja, alguém que lida cautelelosamente com ditames de sua consciência. Claro que, na Rússia do desabotinado Putin, qualquer pessoa que se oponha a seus desígnios deve sentir esse medo de expressar sua opinião. Ouvi mesmo dizer que o ditador soviético estaria mesmo propenso a prender a própria declaração dos direitos do homem e do cidadão que embasa a ONU.

14 fevereiro, 2023

Covardia na Ex-URSS (só lá?)

 


Vejo na mídia a meu alcance, por estes dias, haver russos acusando a Ucrânia de covardia, por estar pedindo e recebendo ajuda auxílio bélico da "Inglaterra, França, Alemanha, Estados Unidos e OTAN" (!).

Ora, de forma bem valente, racional e justa, os russos invadiram a Ucrânia, um "país amigo", destruindo boa parte de seu capital humano (gente, crianças, velhos, soldados) e físico (estradas, barragens, usinas, residências), claramente declarando-se conquistadores de três províncias e anexando-as ao território russo.

Valente, racional e justa? De onde tirei essa adjetivação? Um país chantagista internacional, expansionista e belicista, uma ditadura de fazer inveja aos mais selvagens regimes covardes, irracionais e injustos do mundo. Rússia de Putin: um campeão da maldade.

O que até agora não ouvi foi a autocrítica de um alentado grupo de esquerdistas brasileiros que, pensando no doisladismo Rússia-EUA, condenaram a Ucrânia por desafiar a invasão putinesca. Alias, andei buscando nas páginas do Facebook de tais adoradores da invasão (era para acabar com o nazismo, essas desculpas agora claramente vistas como esfarrapadas) para ver o que têm a dizer especialmente daquela anexação das três províncias. Ergo há covardes lá e aqui!

DdAB

13 fevereiro, 2023

O Indefinível (os dois indefiníveis)

 


Fonte: Instituto Holos. Legenda "O que é felicidade?"

Vou falar sobre dois "indefiníveis". Estou lendo

LERIA, José Jorge (2013) E tudo era possível; retrato de juventude com Abril em fundo. Lisboa: Clube do Autor.

e, no passado remoto, bem remotão, li

FISCHER, Ernst (...) A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar.

Do primeiro, vencida a eleição, li a seguinte encantadora definição dada por David Mourão (não confundir com Mourão Ferradura, senador eleito pela direita sulriograndense). Na página 86, o Mourão d'Além-Mar diz:

A felicidade é algo que não existe, mas que às vezes nos acontece.

De sua parte, cito Fischer de memória, que cita Jean Cocteau, se a memória não falha, com outro encanto de frase:

A poesia é fundamental. Se ao menos eu soubesse para quê.

E ainda lembro, com referência muito mais difusa, o diálogo de um indigenista, talvez médico, tomando banho de rio acompanhado de um índígena lá pelo planalto central:

Indigenista, sentindo-se muito feliz:

-Fulano, você é feliz?

Fulano:

-Sim.

Indigenista:

-Fulano, o que é felicidade?

Fulano:

-Não sei.

Era algo assim, que espero não ter obnubilado o significado... Arte 1 x 2 Felicidade.

DdAB

11 fevereiro, 2023

Lula e André Lara Rezende



Nos últimos dias, bem antes do 7 de fevereiro, o presidente Lula passou a atacar o nível da taxa de juros básica fixada pelo Banco Central do Brasil. A reunião de fevereiro do Comitê de Política Monetária manteve o nível anterior, ou seja, os juros ficaram com a taxa de 13,75% ao ano. Como sabemos, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem contemporizado com "o mercado", não descartando o que este chama de "responsabilidade fiscal". Haddad, tido como fiscalista, está exercendo com requebros a função de executor da política fiscal. E a autonomia do BaCen criada no governo Bolsonaro é uma realidade que dificilmente Lula vai conseguir mudar.

A questão é se Lula passou a estudar macroeconomia ou se tem alguém mais preclaro nesse pântano a aconselhá-lo. Meu palpite é que o preclaro é André Lara Rezende. Nesta linha chegou-me aos olhos o artigo que este redigiu para a Folha de São Paulo:

Independentemente dos fatos e da realidade, decide-se que o risco fiscal é alto.

Por André Lara Resende

VALOR, 7/2/3023

Depois de tanto ouvir os economistas e a mídia martelarem insistentemente o problema do déficit público, da insustentabilidade da dívida, que estaria numa trajetória explosiva, que o país estaria à beira de um abismo fiscal, saíram os números das contas públicas relativos ao ano passado. Pasmem: houve um superávit de R$ 126 bilhões, equivalente a 1,3% do PIB. A dívida pública bruta, aquela que os analistas insistem estar numa trajetória explosiva, caiu 1,1% em proporção do PIB, para 73,5%. Seria de se esperar que os arautos do abismo fiscal reconhecessem que, no mínimo, tinham exagerado o problema fiscal. Mas não, pelo contrário, voltaram com ênfase reforçada, impassíveis diante dos fatos e dos dados.

Vejamos o que diz a Carta Macroeconômica do Itaú divulgada agora em 31 de janeiro. O texto é em inglês para seus clientes e “investidores” estrangeiros. A tradução é minha: “Na nossa visão, o superávit primário e a queda da dívida pública em 2022 são devidos a fatores temporários, ou a aqueles que terão um menor impacto este ano, tais como o elevado volume de receitas extraordinárias, um forte crescimento, a alta inflação e o preço das commodities”. E para não correr risco de ser mal compreendido e perder a oportunidade de voltar a assustar, prossegue: “A implementação do PEC da Transição implica um significativo aumento do gasto público em 2023, confirmando a perspectiva da volta do crescimento da dívida pública. Na ausência de medidas corretivas, este cenário poderá levar a um novo ciclo de baixo crescimento, alta inflação e altas taxas de juros”.

Juros altos premiam os rentistas e inviabilizam os investimentos na expansão da capacidade produtiva

O Valor de 1 de fevereiro estampou a manchete: “Piora do risco fiscal leva juro real à maior taxa desde 2016”. No mesmo dia, o editorial da Folha de São Paulo, “Dívida alta, juro alto”, destaca em caixa alta: “Ataque a rentistas - a população que poupa e empresta ao governo - não resolverá o problema”.

Como dizia Nelson Rodrigues, antecipando o mundo dos “fatos alternativos”, se os fatos não confirmam, pior para os fatos, mas vamos aos fatos. A dívida pública brasileira não é alta. É muito mais baixa do que a dos países desenvolvidos e em linha com os países em desenvolvimento, mas com duas diferenças cruciais: é toda em moeda nacional, detida por residentes e o país ainda tem quase 20% do PIB em reservas internacionais.

O Brasil não tem dívida externa, só dívida interna, denominada em moeda nacional e carregada pelos rentistas, ou a população que poupa, como preferem alguns. Quem tem renda de ativos financeiros não é inimigo da pátria, mas faz parte da parcela privilegiada da população. Não são investidores, como gosta de denomina- los a mídia e os economistas do mercado financeiro, são rentistas, o que também não é crime, mas preciso distinguir entre quem aplica sua riqueza, herdada, conquistada ou poupada, em ativos financeiros para ter renda sem correr riscos e quem verdadeiramente investe em capital físico, organizacional e intelectual, e contribui para o aumento a capacidade produtiva do país.

A taxa de juros básica, que é piso e referência para todas as demais taxas de juros no país é determinada pelo Banco Central. Repito, a taxa básica é integralmente controlada pelo Banco Central. As taxas para prazos mais longos são fixadas pelo mercado, instituições financeiras que operam com a dívida pública, com base nas estimativas que fazem da trajetória futura da taxa básica a ser fixada pelo BC. Se quisesse, o BC poderia fixar toda a estrutura a termo das taxas da dívida, como já faz há anos o Banco do Japão, e acabar com as pressões alarmistas para elevar ainda mais a já injustificavelmente alta taxa básica, em nome de um “risco fiscal” inexistente.

A dívida pública interna é um passivo do Estado e um ativo - líquido e sem risco - do setor privado. Assim como a moeda, a dívida pública presta um serviço aos poupadores, às empresas, aos ricos, aos rentista e a todos os agentes na economia que precisam transferir poder aquisitivo no tempo sem correr riscos. Se o Estado se tornasse subitamente - ou milagrosamente como preferirão dizer seus críticos - superavitário e a dívida pública fosse integralmente resgatada, a economia teria sérias dificuldades para se manter saudável. Assim como no caso de uma súbita contração monetária, muito provavelmente, entraria em profunda recessão. A moeda e a dívida pública interna são um bem público indispensável ao bom funcionamento da economia.

Sei bem que essa não é a visão convencional e dominante, mas é a que corresponde à realidade do mundo com moeda fiduciária. Tem uma longa e admirável tradição intelectual desde Aristóteles. Na história recente do pensamento econômico, tem representantes na “banking school” inglesa do século 19, passando por Wicksell, Schumpeter, Ingham, Abba Lerner, Minsky, entre muitos outros, quase sempre mantidos à margem das ideias convencionalmente aceitas.

Aqueles que entenderam a moeda não como uma mercadoria, mas como um serviço público, uma unidade de conta fiduciária, como um ativo que poderia ser usado para pagar os impostos, deveriam ter finalmente sido vindicados pelo desaparecimento da moeda física e a desmoralização da relação entre quantidade de moeda e o nível de preços, depois do Quantitative Easing.

Eu poderia me alongar sobre os equívocos da visão convencional, tema que já tratei em diversos artigos ao longo dos últimos anos, mas não vale a pena. João Moreira Salles abre a introdução do seu recém publicado “Arrabalde: em busca da Amazônia” (Cia das Letras, 2022) afirmando que é difícil compreender quando não se presta atenção. Mais à frente, no livro, leitura obrigatória para entender o drama do descaso com a floresta, cita Simone Weil, a pensadora francesa, para quem a atenção é a forma mais rara e pura da generosidade.

No mundo contemporâneo, a atenção se tornou ainda mais difícil. Para os temas técnicos, que além da atenção exigem reflexão, sem parti pris, é praticamente impossível. Para falar da teoria monetária e da taxa de juros, tema que além de técnico é motivo de velhas controvérsias e de posições cristalizadas, é caso perdido. Perde-se o leitor já nas primeiras linhas.

Meu objetivo é mais modesto. Quero que o leitor se pergunte porque, mesmo diante de resultados muito mais favoráveis do que o esperado, os analistas e a mídia redobram sua histeria em relação ao tal do “risco fiscal” e clamam por juros ainda mais altos. A razão é a PEC da Transição, o terceiro governo Lula, dirão. A PEC da Transição autorizou despesas em torno de 2% do PIB. A alta da taxa básica de juros, promovida por canetadas do BC desde o início de 2021, custou quase o dobro desses 2% do PIB, só em 2022. Faz sentido?

Alguns dias depois da divulgação do resultado fiscal de 2022, o Copom decidiu manter inalterada a taxa básica em 13,75%. Como reportou o Valor, “com um tom mais duro em relação ao risco fiscal, disse que avalia manter a taxa por mais tempo”. O BC sustenta que a conjuntura “particularmente incerta no âmbito fiscal e as expectativas de inflação se distanciando da meta em horizontes mais longos” exigem a manutenção da taxa por mais tempo do que o previsto, ao menos até o final do ano.

Ou seja, mais uma vez, em nome do “risco fiscal” e da “ancoragem das expectativas”, a extraordinária taxa básica será mantida. O Brasil continuará a ter a taxa real, descontada a inflação, mais alta do mundo, quase 8% ao ano. A razão? A necessidade de ancorar as expectativas. Expectativas de quem? Do mercado financeiro, divulgadas pelos seus próprios analistas. Por que estariam desancoradas? Por causa do risco fiscal que eles mesmo decretaram ser muito alto e se encarregam de propagar por toda a mídia.

Ou seja, independentemente dos dados e da realidade, decide-se que o risco fiscal é alto. Estipula-se que o risco fiscal determina as expectativas de alta da inflação e que a alta dos juros irá reverter o quadro. Como? Não fica claro, dado que a alta dos juros aumenta o serviço da dívida e agrava o risco fiscal. Pouco importa, todo mundo sabe que expectativas desancoradas provocam inflação e que juros altos controlam a inflação. Portanto, é preciso manter os juros altos, premiar os rentistas e inviabilizar os verdadeiros investimentos na expansão da capacidade produtiva, na infraestrutura e na descarbonização da economia.

Como disse recentemente James Galbraith, que tem longa experiência no questionamento da teoria convencional, é impossível argumentar com base nos fatos e na lógica contra o que “todo mundo sabe”. Começo a achar que ele tem razão.

Retomo a palavra: é ou não é devastador?

DdAB

06 fevereiro, 2023

Só as Boas Perguntas É que Podem Gerar Boas Respostas

 

(Indague-se mais!)

Na edição de fim-de-semana do jornal Zero Hora (ou seja, 28 e 29 de janeiro), o Caderno DOC apresenta uma longa entrevista com o prof. Renato Janine Ribeiro. Como devemos lembrar, ele era um de meus candidatos a presidente da república até o início do ano que passou. A lista completa era, pela ordem alfabética:

Renato Janine Ribeiro (Ministro da Educação de Dilma)

Sílvio Luiz de Almeida (Ministro dos Direitos Humanos de Lula)

Tatiana Marins Roque (Secretária de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro)

Pois então. O prof. Renato Janine disse muita coisa interessante. Diz o jornal que ele é um estudioso de filosofia política. Mas, ao lê-lo, fiquei o tempo inteiro pensando que ele é um filósofo da educação (no estilo Richard Rorty).

Olha o que ele diz:

Há pouco tempo me contaram uma história muito boa de cientistas que queriam estabelecer como se faz a criação de peixe-boi em cativeiro. E pensaram muitas coisas, tiveram ideias, debateram, até que um sujeito muito simples que estava lá disse: 'Vocês não sabem que o peixe-boi só transa de pé?' Quer dizer, os cientistas não estavam atentos a algo fundamental, que era fazer um tanque com uma certa profundidade, para que essa espécie pudesse efetivamente se reproduzir. Você tem de coletar conhecimento que é também popular. Tem muito erro no conhecimento popular, mas tem coisas importantes também, que ajudam a esclarecer dúvidas e alcançar resultados. Então, se você tem o hábito da curiosidade, você pode ser um cientista ou, pelo menos, fazer perguntas. Uma coisa muito importante, atualmente, é formar as pessoas na universidade para que elas saibam onde buscar as respostas às dúvidas que tiverem. Mas, se você souber, em qualquer curso universitário, os sites que têm informação nova, já é muito importante.

Admirável. Entendo que a grande mensagem é aquela de olhar a natureza física ou social e fazer-se perguntas sobre seu funcionamento. Ainda durante meu doutorado, meu orientador, o inolvidável Mr. Andrew Glyn, dizia: precisamos fazer perguntas interessantes das quais vão seguir-se respostas provisórias. Invertendo: apenas perguntas interessantes geram respostas interessantes.


DdAB

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