Que seria de nós sem nossas crenças? Creio que estamos no mês de agosto e penso que poderemos comer uma macarronada ao jantar. Creio que acordei, que arrumei a cama, que lavei o rosto (esperando o café para -apenas depois- lavar os dentes e não enxaguar a boca, pois creio que o fluor do creme dental veio proteger-me da proliferação de streptococus mutans, como se diz hoje, o bichinho da cárie
Creio-te que te creio. Creio em tanta coisa que nem penso a respeito da maior parte das crenças e até que talvez seja mais fácil listar nomes em que não creio. Que o centro da Terra é oco, que no centro do Sol tem uma fogueirinha com nó de pinho atiçada pelos sete anõezinhos, que vou e voltarei da praia sem acidentes, sem incidentes.
Se pudesse quantificar a probabilidade de acidentar-me, eu poderia adiar o passeio ou mesmo avaliar se é um risco aceitável. Digamos que eu o aceite riscos de até 1% [lembrar que caí na amostra do censo demográfico de 2022, uma probabilidade de 5%, ou seja, uma a cada cinco residências respondiam o questionário ampliado]. Creio em probabilidade (pero no mucho). Essa viagem de 1% leva-me a filosofar se é mesmo segura, pois o que estou lendo é que poderei ter um acidente a cada 100 viagens, o que daria uma zebra a cada dois anos das viagens semanais. E também poderei ter, mas não tendo...
E se p = 0,0001 O "mil invertido" é 1/1.000 ou 0,001, o que dá para ler aquele p = 0,0001 como um décimo de milésimo. Ainda assim, pode não acontecer, mas é provável que ocorra, tipo um acidente de trânsito com danos materiais. Mas com p menor, entendo que um incidente/acidente ao longo de toda a vida não vai me fazer desistir da praia.
E será que eu creio em Deus? Se houvesse prova de sua existência, não precisaria crer [ouvi esta sensacional ideia na TV dita pelo padre Fábio de Melo]. Bastaria dar uma olhada na forma com que essa prova foi obtida. Crer, como nos micróbios ou na fusão nuclear no centro do Sol.
Ainda assim, um cético poderá indagar o que me leva a crer nas provas que aprendi nos livros. Nesta linha devemos indagar o grau de validade de eventos que não podem ser provados, ou melhor, não podem ser justificados.
Como todos sabem, tento especializar-me em "introdução à filosofia", lendo e relendo uma boa meia dúzia de livros, ergo, introdutórios. Um deles de que já falei aqui:
ALMEIDA, Aires e MURCHO, Desidério (2014) Janelas para a filosofia. Lisboa: Gradiva. (Coleção Filosofia Aberta, 26).
Pois então. Estamos no capítulo "Fundamentos da Fé" e chegamos na página 144 onde, na seção inicial, intitulada "Acreditar sem provas", lemos:
[...] a crença em Deus envolve afectos profundos de reverência, por exemplo, o que significa que a fé é muito mais do que a mera crença. Além disso, é pela fé que se sustenta a crença em Deus e não pela razão, pelo que crer sem provas é perfeitamente adequado.
Agora vamos mais a fundo nas alongadas considerações iniciais que fiz. Então estamos falando agora em, título da seção, "A fé como risco". E os autores começam com uma citação de Soren Kierkegaard:
Sem risco, não há fé. A fé é precisamente a contradição entre a paixão infinita da interioridade do indivíduo e a incerteza objectiva. Se eu for capaz de apreender Deus objetivamente, não acredito; mas precisamente porque não posso fazer isto, tenho de acreditar.
Bem na linha do que falei sobre a frase do padre Fábio de Melo. Sem a ambição de transcrever todo o livro para o Planeta 23, falarei apenas de William James, das páginas 146-147 do livro. Como sabemos, James (1842-1910) é um dos mais importantes filósofos pragmáticos americanos (e do mundo...). Em 1896, ele escreveu "A vontade de acreditar", que serve de epígrafe para a seção que estamos lendo:
A tese que defendo é, em poucas palavras, a seguinte [itálico no original] a nossa natureza passional não só pode, legitimamente, como deve decidir uma opção entre proposições, sempre que se trata de uma opção genuína [negrito adicionado por mim] que não pode, pela sua natureza, ser decidida numa base intelectual.
Seguem Almeida e Murcho (p.147):
James pensa que as opções genuínas são diferentes dos outros tipos de opções. Considere-se, por exemplo, a opção entre acreditar ou não que há extraterrestres. Para muitas pessoas, esta é uma questão interessante, mas não é uma opção genuína, no sentido em que nosso interesse é meramente intelectual, digamos. Em contraste, quando uma opção é genuína, [ela] tem três características: é uma opção viva, momentosa e forçosa.
Para ver o que é uma opção viva, contraste-se a opção entre acreditar ou não na divindade cristã, para um europeu, e a opção entre acreditar ou não em Zeus, ou nas divindades egípcias. O primeiro caso, para um europeu é uma opção viva, mas o segundo é uma opinião sem qualquer força. Uma opção é viva quando nos afecta emocionalmente, quando é muito mais do que uma mera questão intelectual.
Quanto à noção de momentosa, considere-se a opção entre acreditar ou não que devemos mudar o óleo do motor do carro quando está quente. Esta não é uma opção momentosa porque nenhuma das duas opções é particularmente importante. Pelo contrário, no que respeita a Deus, a opção é muito importante, quer acreditemos quer não, pois é de suma importância saber se somos fruto do acaso num Universo indiferente, por exemplo, ou se existe uma divindade providente que nos criou a nós e ao Universo com propósitos definidos.
Por fim, o que é uma opção forçosa? Imagine-se que alguém nos oferece um emprego muitíssimo bom, mas se não respondermos no prazo de três horas, perdemos a oportunidade. Neste caso, ficar indeciso e sem tomar posição é equivalente a rejeitar a oferta. James defende que optar ou não pela crença religiosa é semelhante a este caso: ser ateu é o mesmo que ser agnóstico, no seguinte aspecto: em ambos os casos, não acreditamos em Deus. Por isso a crença em Deus é uma opção forçosa.
Recapitulando, uma opção é genuína quando tem estas três características, e James pensa que é precisamente o caso da crença religiosa. Ora, James defende que, no caso das opções genuínas, é adequado acreditar sem provas, (desde que não tenhamos também provas contrárias). Mas é adequado porquê? Porque, se não o fizermos, perdemos a possibilidade de acreditar numa verdade de suma importância só porque temos medo de ter uma crença falsa.
Um segundo argumento de James a favor da adequação da crença sem provas parte de uma analogia com outros tipos de crenças motivadoras, a favor das quais também não temos provas. Por exemplo, a Daniela é chamada para um emprego muitísismo bom, mas tem de fazer várias provas de seleção difíceis. Caso não acredite que será bem-sucedida nas provas, isto acabará por ter um impacto negativo no seu desempenho. Como acontece no caso dos desportistas, convencemo-nos a nós mesmos de que seremos bem-sucedidos contribui, em muitos casos, para o sucesso. Caso nos limitemos a avaliar as provas disponíveis, suspendendo a crença, teremos uma maior probabilidade de insucesso.
Em seguida, os autores fazem duas críticas à visão de William James que deixo para mim mesmo como teste de compreensão do tema, de sorte a fazermos por nós mesmos a crítica.
Que podemos tirar dessas digressões sobre a fé, com ênfase na crença na existência de Deus, sobre a política e o voto de 2 de outubro para presidente da república? Sim: crer que o bolsonarismo pode resolver os problemas brasileiros é realmente não saber quais exatamente são eles. Tenho insistido há talvez 35 anos, que o verdadeiro problema do Brasil é a desigualdade. Da constatação de que acreditar na capacidade do bolsonarismo não é uma opção genuína, podemos simetrizar as três características (opção viva, opção momentosa e opção forçosa) e ver como pessoas racionais irão afastar-se dessa visão de mundo que leva a mais fome, miséria e imperialismo:
a) contestar o bolsonarismo é uma opção viva, pois nos afeta intelectualmente, por exemplo, a tristeza pelas mortes provocadas pelo fracasso das políticas públicas que nunca foram prioridade do Ministério da Saúde;
b) contestar o bolsonarismo é uma opção momentosa, pois ao fazê-la estaremos criando condições para a retomada do estado de bem-estar social e outras policas social-democratas;
c) contestar o bolsonarismo é uma opção forçosa, pois a eleição de 2 de outubro definirá os rumos da ação do governo pelos próximos quatro anos. É agora ou nunca!
DdAB
P. S. Tomei a linda imagem que nos encima da Wikipedia, ilustrando o verbete "contradição". É uma mistura do quadrado lógico medieval com o diagrama de Euler, também conhecido como diagrama de Venn.