30 outubro, 2020

Aristóteles, Cirne-Lima e a Terra Plana

 


Nos dias que correm, o mundo já nem sabe mais o que falar. Aqueles ideais iluministas de progresso ilimitado são ameaçados por outros ideais de desprezo à ciência e à tecnologia. Especificamente, falo daquela gente que ainda acredita que a Terra é plana. Mas poderia estar falando, tema fashion, da recusa de outros, talvez os mesmíssimos, em tomar vacinas e proibir seus filhos de fazê-lo.

Pois foi na pandemia que voltei a folhar meu querido 

CIRNE-LIMA, Carlos Roberto (2003) Dialética para principiantes. 3ed. São Leopoldo: Unisinos. [Já tem mais outras edições também da Unisinos.]

e defrontei-me, em sua página 77, com um trecho avassalador:

Aristóteles, exímio observador das coisas, já sabia que a terra em que vivemos é redonda. No tratado Sobre o céu, ele escreve que os eclipses da lua são causados pela posição da terra. A terra, em seu movimento, se interpõe entre o sol e a lua, causando assim o eclipse. Como a sombra que o sol projeta sobre a lua é sempre redonda, há que se concluir que a terra é redonda. Se a terra fosse um disco, com a maioria dos pensadores de seu tempo imaginava, a sombra da terra projetada sobre a lua não poderia ser  redonda.

Ao ler aquela parte do "se a terra fosse um disco" e comecei a problematizar o que a mente dessa turma anti-iluminista pensa: admitamos por um instante que a terra seja plana. Mas plano que é plano é bidimensional ou já não podemos falar em planura. Nesta linha, a reta é unidimensional e o ponto não tem dimensão. Então suponhamos que uma pessoa pudesse equilibrar-se sobre um único ponto, ou seja, sem dimensão: nada de equilíbrio, não se pode parar sobre um ponto. Por contraste, se pensarmos num sólido, uma espécie de paralelepípedo mais fininho que uma caixinha de CDs, se não outro formato de um sólido irregular, precisamos indagar a esses luminares da escuridão qual é a espessura da encrenca.

De minha parte, no ensino hoje chamado de fundamental, eu não lera Aristóteles (o que, as a matter of fact, não fiz até hoje...). Por isso, talvez, tive que recorrer a alguma outra prova da forma esferoide do planeta. Lá na imagem que nos encima, há uma prova razoavelmente irrefutável. Quando um navio está chegando ao porto (parte inferior da imagem), vemos inicialmente as velas e logo após o casco. Por contraste, ao sair, quem desaparece em primeiro lugar é precisamente o velame, deixando à vista apenas o casco, até o desaparecimento completo. Aquela água do mar calmo ou de um enorme lago plácido parece-nos, mesmo se estamos embarcados, completamente plana, até perder-se de vista: a linha do horizonte. E nela é que observamos o fenômeno dos barcos chegando e partindo.

Quem fugiu da escola, como é o caso do atual presidente da república, não chegou a estudar este raciocínio sobre a forma da Terra. E agradeço a Cirne-Lima por ter-me mostrado aquela prova inferida por Aristóteles.

DdAB

20 outubro, 2020

Velhinhos Contra-Atacam



Começa que odeio aquela nova mudança ortográfica de 2009 que nem sei dizer se contra-atacar é contratacar, sei lá (o editor automático sublinhou este contratacar...). Mas minha audição ainda está ouro-e-fio, como se diz na fronteira com o Uruguay. À propos, esse reforma (é impossível ser imbecil o tempo inteiro...) voltou a inserir na língua brasileira o k, o w e o y. Ergo não é ilegal chamar o Uruguay de Uruguay.

Pois bem. Audição: no outro dia, ouvi num episódio da série "After Live" na TV uma enfermeira, falando em inglês, "Eles [nós, os oldies] nos ajudaram enquanto puderam. Agora chegou nossa vez."

Felizmente não tenho ouvidos de tuberculoso, o que me impediu de ouvir meus próprios soluços de emoção.

DdAB

P.S. O cachorro rosa entrou na dança, pois não consegui copiar uma imagem do filme. Devia ser o pessimismo do Tony. Assim, na cor rosa, faço uma homenagem às atividades que buscam homenagear as mulheres que venceram o câncer e falar de prevenção a outras.

02 outubro, 2020

Bolsonaro na Zero Hora de Hoje


Querido diário: fazia tempo que não te chamava de querido diário. Mas é que hoje, ao ler o jornal Zero Hora de manhã, voltei a pensar tratar-se de meu sucedâneo Zerro Herra. Trata-se de uma notícia sobre a mais alta corte judiciária do país e a oportunidade que se abre para que o presidente Bolsonaro indique (e o senado aprove) o nome do ministro togado que sucederá o macróbio Celso de Mello. Este, segundo leio, aposenta-se no próximo dia 13. Então Bolsonaro está com toda corda. Diz a página 14 do primeiro caderno do jornal cujo nome correto deixo por conta do leitor decidir:

[Bolsonaro...] rebateu as críticas de apoiadores que vinham fazendo campanha contra o desembargador [Kassio Nunes]. Disse que busca um nome que seja 'leal às nossas causas' na Corte e ironizou:
-Vocês querem que eu troque pelo Sergio Moro?
-No ano passado todo, até mais ou menos abril deste ano, vocês queriam quem para o Supremo? Queriam Sergio Moro. E me ameaçavam: 'Se não for Sergio Moro para o Supremo, acabou!' - afirmou Bolsonaro.
-Agora vocês querem que eu troque o Kassio pelo Sergio Moro? E daí? Querem que eu faça o quê? Acham que ele vai ser ministro lá que vai ser leal às nossas causas?
[...]

Eu queria entrevistar pessoalmente milhões de brasileiras e brasileiros que tinham chiliques de tietagem ao ouvirem o nome de um ou outro. Pois Moro entrou numa fria. E Bolsonaro entrará para os livros de história do Brasil como um clown, um clown que faz mal. Um clown que só rivaliza em despreparo com seu próprio ministério. 

DdAB

01 outubro, 2020

Curzio, Eco, Ryszard



Nesta postagem lembro meus dotes de leitor, muito antigos, já. E de comentador. Sobre minha condição de leitor, vou citar quatro testemunhos. O primeiro deles, e que motivou esta postagem, é

KAPUSCINSKI, Ryszard (1994) Imperium. São Paulo: Companhia das Letras.

Dele farei três citações e tecerei comentários, o terceiro destes preparando-nos para maiores associações, quando vou citar, do jeito que posso, Curzio Malaparte (seguindo Kapuscinski) e Umberto Eco, seguindo minha memória.
Então, Kapuscinski na página 121 dá algumas dicas sobre instituições, centrando sua reflexão no colapso da União Soviética:

Tudo era absolutamente subordinado [ao estado monopolista soviético], os outros interesses eram combatidos e eliminados de forma radical. E eis que o Estado monopolista desaparece de repente, se desagrega de modo irreversível. Imediatamente centenas de milhares de interesses econômicos diversos, maiores e menores, de grupos privados e nacionais erguem a cabeça, identificam-se, definem-se e reivindicam com firmeza seus direitos negados há tanto tempo. Evidentemente países democráticos também convivem com milhões de interesses distintos, mas suas contradições e conflitos são resolvidos ou atenuados por meio de experientes e experimentadas instituições públicas e estatais. Aqui, no entanto, tais instituições não existem (e tão logo não existirão). Como então resolver os naturais conflitos de interesses, já que não se pode mais apelar para o chicote nem para a deportação?

Claro que fiquei pensando no império brasileiro contemporâneo.  A incapacidade do sistema judiciário (do policial de rua (rua???) ao juiz de 'salário' milionário é patente quando vemos tantas situações de injustiça. Não falo apenas das liberdades pessoais, do morador da periferia, mas de todos, fazendo-se observar especialmente nos pequenos municípios. A palavra chave é a impunidade. E "tão logo não existirão" soluções para este problema. Se houvesse punição ao crime, os primeiros a serem abalados seriam precisamente os poderosos: judiciário e legislativo. E, naturalmente, os altos escalões também do executivo. Mas não fiquemos adstritos à esfera governamental, pois também no chamado setor empresarial há escalafobéticas fraudes. Concluo dizendo que também nas organizações não-governamentais a impunidade é a mãe do crime.

Mudo de assunto e falo da dupla nacionalidade, inspirando-me da página 128 deste livro de Kapuscinski. O autor está conversando com uma "mulher", cujo nome não saberemos, e que já lhe identificou um estado febril ao chegar em Baku, capital do Azerbaijão, localizada à beira do Mar (Lago) Cáspio. Imagino que a conversação está ocorrendo em russo, quando "a mulher" volta a falar:

Ela pergunta qual a minha nacionalidade.

No mundo todo, os camponeses iniciam uma conversa ponderando sobr a colheit, e os ingleses, trocando ideias sobre o tempo. Já no Império [isto é, na URSS], o primeiro passo para travar conhecimento é a apuração recíproca da nacionaliddade de cada um. Disso irá depender muita coisa.
Na maioria dos casos, os critérios são claros e legíveis. Este é russo, este cazaque, este tártaro, este uzbeque. Mas existe uma porcentagem grande de cidadãos desse país para os quais a forma de se identificarem é um problema sério, ou seja, não se sentem parte de nenhum povo. Eis o exemplo do meu amigo, Ruslan, engenheiro de Tcheliabinsk. O avô era russo, a avó georgiana. O filho do casal e pai de Ruslan, decidiu ser georgiano, mais tarde casou-se com uma tártara. Por amor à mãe, Ruslan se considera tártaro. No empo de estudante em Omks, Ruslan casou-se com uma colega do Uzbequistão. Têm agora um filho, Mutar. Qual a nacionalidade de Mutar?
Às vezes estas árvores genealógicas são ainda mais intricadas e complicadas, de modo que muitos não se sentem ligados a nenhuma nacionalidade - e o homo sovieticus. Ele não é fruto de um processo de conscientização ou desejo de expressar de uma determinada postura. Simplesmente, sua única identidade social é a cidadania do Estado soviético. Com a queda do Estado soviético, estas pessoas estão à procura de novas formas de identidade (isto é, aqueles que se preocupam com isto).

Já falei algumas vezes no lar, no bar, em outro lugar, que lamento contar apenas com duas nacionalidades neste planeta que por enquanto tem 200 países. Queria ser cidadão do mundo, com essas 198 que ainda me faltam. Mas penso na Comunidade Europeia, tão tristemente abalada com a saída do Reino Unido, ele que já não se integrara à moeda comum. Dizem que são conservadores. Tem gente que pensa diferente, mas -da mesma forma que o desafortunado Brasil, angariando 57 milhões de votos para um projeto escalafobético- o que interessa mesmo, sob o ponto de vista democrático, é qual coalizão partidária faz a maioria para controlar o executivo e, naturalmente, o congresso. Claro que um cidadão europeu pode bem ter um avô marroquino, a avó indonésia, outra avó boliviana e um avô final do quarteto avoengo também estrangeiro, digamos, de Jaguary... E ainda mais, o pai neo-zelandês e a mãe, escocesa. Então por que este cidadão não pode ter essas seis nacionalidades? Mesmo no Brasil, depois da constituição da república de 1988, ele teria direito a apenas aquela da Nova Zelândia e à da Escócia, o que o credenciaria à cidadania europeia. 
Claro que, na finada União Soviética, o chamado "problema das nacionalidades", acomodado exemplarmente por José Estaline, torna-se mais momentoso, pois são dezenas de repúblicas e centenas ou até milhares de idiomas. Seja como for, quero minhas 198 faltantes para aquele mundo em que 

Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion, too

E aí a religião já entrou de barato... Aliás, logicamente falando, se não houver "countries", tampouco haverá nacionalidades. E todo dinheiro que hoje se gasta na produção e consumo (e uso!) de armamentos poderá ser dedicado à fabricação e desenfreado consumo de bebida! Pois bem. Vamos adiante. Vem mais uma citação de Ryszard Kapuscinski, nosso polaco preferido. Agora vamos ao mundo literário. Citação de citação de citação: Kapuscinski citando o xará e "historiador americano Richard Pipes" que cita o italiano Curzio Malaparte que evocou-me Umberto Eco. Vejamos. De Pipes não li nada, a não ser fumar cachimbo há muitos anos (hehehe). De Curzio Malaparte, li dois romances, até que poderia ser naquele tempo em que andei fumando cachimbo... Se os livros foram editados no Brasil, como o foram, em 1966, devo tê-los lido não adiante de, digamos, 1970. Ambos foram editados pela Civilização Brasileira, ambos com capas exemplares de Eugênio Hirsch, um genio da arte gráfica. O primeiro foi "A pele" (1949) e o outro foi "Kaputt" (1944), que até imagino terá inspirado Moacyr Scliar e outros a escrever uma coletânea de título "Pega pra Kaputt", na linha daquele "pega pra capar", das criações caseiras de suínos dos tempos ainda mais longínquos que os referidos como leituras e cachimbadas talvez inspiradas em Mário da Silva Brito.

Pelo que andei lendo na Wikipedia, Malaparte foi fascista e comunista e católico, uma vez a cada tempo e levando cadeia correspondentemente aos humores da época, nosso conhecido Zeitgeist. Lá na Wikipedia infiro que o texto que já vou citar vem do livro A revolução russa, de Malaparte (e não de Pipes, ou este fez outro livro com o mesmo nome). Mas não esqueçamos que estamos citando Pipes que fala em Malaparte:

Curzio Malaparte descreve a desorientação e o espanto do escritor inglês Israel Zangvill em visita à Itália no momento em que os fascistas tomavam o poder. Surpreso com a falta de barricadas, lutas de rua e cadáveres nas calçadas, Zangvill não queria acreditar estar testemunhando uma revolução. Na verdade, como afirma Malaparte, o traço característico da revolução contemporânea consiste na ocupação de pontos estratégicos, de forma sorrateira e sem derramamento de sangue, por grupos paramilitares bem treinado. O ataque é conduzido  com tal precisão cirúrgica que a sociedade nem se dá conta do que acontece a seu redor.

Claro que lembrei de Bolsonaro, seus 57 milhões de votos com todas aquelas fraudes e farsas que acompanharam as eleições de 2018, destacando-se o juiz Sérgio Moro, o velho Antônio Palocci e muita outra gente de estirpe golpista. E também lembrei daquela eleição em que foi eleito George Bush Fo. Parece que, graças ao fato de seu irmão ser governador da Flórida e ter enviesado as eleições, Al Gore poderia ter-se rebelado e anulado a eleição ou conseguindo nova rodada, mas ele nada fez. Entendi na época que ele preferiu ser cordato a ver os Estados Unidos envolvidos numa contenda sobre fundamentos de democracia.

Falta-me falar em Umberto Eco, autor que admiro tanto que pensei em eu próprio adotar o pseudônimo de Humberto Ecco, mas felizmente minha astróloga disse que isso daria azar e fiquei mesmo na minha. Em novembro de 1985, em outras palavras, 35 anos atrás, fiz uma negociação com a profa. Maria Lucrécia Calandro e tornei-me proprietário de

ECO, Umberto (1984) Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 

Não faz muito tempo que, emocionado, sustentei que o livro "A ideia de justiça" de Amartya Sen teria sido o melhor livro que li em minha existência. Claro que é difícil dizer o primeirão, também o é dizer os 10 melhores, os 100, e assim por diante. O que quero dizer é que essa "Viagem na Irrealidade" é certamente um dos livros que me fez mudar de fase. E agora desejo apenas trazer uma curta passagem que evoquei com aquela viagem em torno de Curzio Malaparte. Vou citar o primeiro parágrafo do capítulo intitulado "Guerrilha Semiológica", localizado na página 165 do livro. No primeiro rodapé, diz-se que o texto foi uma comunicação em um congresso realizado em Nova York em 1967, quando eu ainda fazia vestibular para o curso de arquitetura. Pois vamos ao parágrafo que deve rimar com aquela ideia de que as revoluções modernas prescindem de "barricadas, lutas de rua e cadáveres nas calçadas". Essas revoluções de nosso tempo precisavam apenas de controlar os meios de comunicação social. Hoje em dia, tais meios são importantes, mas talvez, naquela linha de Steve Bannon, devam controlar, como na China, as redes sociais. Ok, ok, tudo menos "barricadas, lutas de rua e cadáveres nas calçadas". O parágrafo de Umberto Eco diz:

   Não muito tempo atrás, se quisessem tomar o poder político num país, era suficiente controlar o exército e a polícia. Hoje é somente nos países subdesenvolvidos que os generais fascistas, para dar um golpe de Estado, usam ainda os tanques. Basta que um paíse tenha alcançado um alto nível de industrialização para que o panorama mude completamente: no dia seguinte à queda de Krushev os diretores do Pravda e do Izvestria e das cadeias radiotelevisivas foram substituídos: nenhum movimento do exército. Hoje um país pertence a quem controla os meios de comunicação.

Claro que isto cobre golpes e contragolpes, como Krushev, Yeltsin e mesmo nossos parlapatões Bolsonaro e seu duplo Trump. E qual a conclusão? Parece que adivinhei, pois andei postando no Facebook de 29/set/2020 o seguinte mutatis mutandis:

"Tudo isto dá um desalento desalentador. Mas trago nas fímbrias do coração um otimismo associad à conclusão de meu livro cujo título será "O que fiz para salvar o mundo". Talvez seja melhor fazer apenas como subtítulo. E nas primeiras páginas, depois que o livro foi comprado, o leitor vai ler: "O que fiz para salvar o mundo não deu certo. Espero que este livro ajude meu querido leitor a fazer novas tentativas." Espero que as lições desta postagem, instituições, governo mundial (e a dupla nacionalidade, as ameaças à liberdade, ajudem ao leitor a fazer novas tentativas.

DdAB
P.S. A imagem é minha sentida homenagem ao gênio criativo de Quino, falecido no dia de ontem. 
P.S.S. E não falei em "conflito de baixa intensidade". Ver na Wikipedia.