11 setembro, 2012

O Português Brasileiro: além dos pronomes

Querido diário:
Depois de enormes considerações, nos itens .a. e .b., escrevi o seguinte para o prof. Conrado de Abreu Chagas:

.c. já estou conseguindo, quando lembro, escrever: "estou me sentindo bem". mas ainda não tenho coragem de começar frase com pronome átono, e sei que isto é o português brasileiro. e talvez eu deva mesmo é esquecer este negócio de português brasileiro e seguir cometendo os erros que a má sorte me levou a incorporar, deixando os acertos tal qual me foram ensinados na escola.

Com sua imensurável paciência, ele escreveu de volta:

[...]
acabei me envolvendo full time com linguística sistêmica, mais especificamente com gramática gerativa, e mais especificamente ainda, com a estrutura da sentença, especificamente com o que na Teoria Princípios e Parâmetros se chama "sintaxe verbal": a organização dos elementos da frase se deveriam em grande medida ao "movimento" do verbo. A ideia de movimento tem a ver com a concepção, mui cara àquela teoria, de que numa dada estrutura há de se considerar não apenas sua forma "superficial", "aparente", mas também sua "estrutura profunda" ('deep structure'). Assim, os elementos que compõem uma sentança teriam, de saída, em todas as línguas, a mesma posição. Assim seria a "deep structure". A seguir, o verbo se moveria ou não, criando, por isso, a primeira diferença entre línguas, ou seja, aquelas em que o verbo se move distinguir-se-iam daquelas em que o verbo não se move. Depois, para  aquelas em que o verbo se move, haveria também uma diferença, consoante o destino do movimento do verbo.

Perguntas: por que o verbo se move ou não? Qual seria o "trigger" do movimento? E por que, quando se move, o verbo vai até a posição X ou Y? Qual o inibidor do movimento para certas posições?


A coisa é, na base, bastante intuitiva, pois tem a ver com "morfologia". Digamos assim: em línguas de morfologia rica, línguas sintéticas, como o latim, haveria supostamente muito movimento dos elementos que compõem a sentença. Isso pode, inclusive, ser visto na estrutura superficial: em latim, é possível ordenar os elementos de diversas maneiras. Uma frase como "a professora gosta do aluno" poderia ordenar-se em, pelo menos, seis maneiras diferentes:

(1) magistra discipulum amat

(2) magistra amat discipulum
(3) amat magistra discipulum
(4) amat discipulum magistra
(5) discipulum amat magistra
(6) discipulum magistra amat

Sem examinrar a intenção discursiva que possivelmente determine essa ou aquela ordenação, consideremos que a possibilidade de podermos ordenar de formas diferentes os elementos da sentença se deve a que cada elemento, não importa onde se encontre, leva consigo como que uma bandeirinha, uma marca que nos informa sua função. Assim, "discipulum" é o objeto, e "magistra" o sujeito, ainda que este se encontre depois do verbo e aquele antes. Se quiséssemos dizer que é o aluno quem gosta da profe, mudaríamos a terminação, a desinência das palavras:

(7) discipul
us magistam amat

Retenhamos dessa explicação que riqueza morfológica = liberdade de mover-se, ok?

Bem, o francês Jean-Yves Pollock (em 1989) escreveu um artigo para a revista Linguistic Inquiry, em que opunha o inglês e o francês do seguinte modo:

(a) em inglês não haveria movimento de verbo (da estrutura profunda para a de superfície)

(b) em francês haveria movimento.

A evidência seria a posição de advérbios baixos como often e souvent:

(8) John
often reads the papers.
(9) *John reads often the papers.
(10) *Jean souvent lit les journaux.
(11) Jean lit souvent les journaux.

As frases (9) e (10) são agramaticais (por isso o asterisco *) justamente porque na primeira haveria movimento e não segunda não. Melhor dito: as frases (9) e (10) não são possíveis justamente porque não há  movimento de verbo em inglês e o há em francês.

Para o português, dada a gramaticalidade tanto de (12) quanto de (13):


(12) João frequentemente os jornais.
(13) João frequentemente os jornais.

a explicação de Pollock não é suficiente. Se, no entanto, mantivermos sua análise, teremos de sofisticá-la, dizendo algo como:

a) em inglês não há moviemento de verbo;

(b) em francês há movimento de verbo; e
(c) em português, há moviemento de verbo, mas este se move (opcionalmente) tanto para uma posição supostamente similar àquela para a qual se move o verbo em francês (cf. 12) quanto para uma posição mais baixa (cf. 13).

Que posição seria esta? Haveria na gramática do francês algo que a distinguisse do português, ou, mais especificamente, na morfologia dessas línguas?


Será preciso igualmente assumir como axioma que "advérbios não se movem", pelo menos advérbios como often, souvent e frequentemente.

Há, na verdade, e quem o descobriu foi um italiano chamado Cinque, uma distinção entre francês e italiano, de um lado, e português e espanhol de outro. Essa distinção tem a ver com morfologia verbal, especificamente com concordância. Nessas quatro línguas há concordância do verbo com o  sujetio, mas apenas em italiano e francês o verbo concorda, adicionalmente, com o objeto. Trata-se de construções específcias, em locuções verbais com auxliar e particípio passado, em que o objeto vem à esquerda do verbo auxiliar, sobretudo na forma de pronome, assim:


(14) Jean a vu
Marie (Marie = objeto direto) = João viu Maria
(15) Jean l'a vue (l' = la = Marie) = João a viu.
(16) *Jean l'a vu.

A forma "vu" é masculina, e a forma "vue", com acréscimo de "e", é feminina. Ou seja, o verbo "vu", o particípio, está concordando como o objeto.

Ora, essa concordância não se verifica em português:


(17) João tinha visto Maria.
(18) *João a tinha vista.
(19) João a tinha visto.

Os detalhes de como e por que essa diferença morfológica acarretaria um locus distinto para o destino do movimento do verbo em português (e espanhol) e em francês (e italiano), opondo essas quadro línguas românicas em dois grupos, requer further studies.

[...]

Segue-se logicamente minha despedida

DdAB
A bela quádrupla estrutura da imagem acima veio daqui.

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