Querido diário:
((postagem em duas partes: comentários ao Ferreira Gullar e outra com resumo de artigo extraordinário de James Meade))
Como sabemos, leio regularmente a Zero Hora, a Carta Capital, a Cláudia Decoração e a Monet, além dos boletins do SINPRO e da APUFSC, além de outros da PUCRS. Em síntese, sou um cidadão meio desinformado. Principalmente por causa das duas primeiras, vivo queixando-me por não ter um verdadeiro porta-voz na imprensa, um ponto de vista:
.a. de esquerda (que sempre tive e até o jornal JornalEco do Diretório Acadêmico da Economia sempre teve),
.b. moderno (na época, o JornalEco, ainda que grafado 'jornaleco' era moderno), mas deixou de sê-lo, ao que presumo,
.c. aquele negócio das reformas democráticas que conduzam ao socialismo.
Por que não leio a Veja? Parece óbvio: não é nem de esquerda, nem moderna e nem mesmo quer reformas democráticas. Mas, como cachaça não é tabu, volta e meia empino meus martelinhos e, então, e apenas então, leio a 'gordinha da Abril'. E nem sempre o faço nas páginas amarelecidas pela pecha de falta de honestidade.
Parece que a gororoba abaixo está na internet, é certo que tá no meu e-mail. Mas, para dar exemplo de boa fé, vou começar dizendo que há uma pergunta e resposta que bem poderia ter-me sido endereçada e eu responderia bem daquele jeitinho de Ferreira Gullar:
O senhor se considera um direitista?
Eu, de direita? Era só o que faltava. A questão é muito clara. Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é. Pensar isso a meu respeito não é honesto. Porque o que estou dizendo é que o socialismo acabou, estabeleceu ditaduras, não criou democracia em lugar algum e matou gente em quantidade. Isso tudo é verdade. Não estou inventando.
Pensando melhor, nem isto. Creio que, quando ser de esquerda dava cadeia, eu era de esquerda, com medo de ir para a cadeia, fazendo o que podia na época É, nem isto: parece-me que já passou o tempo de dizer que ser de esquerda leva a premiações. Além da imbecilidade de alguns dizerem que a diferença entre esquerda e direita acabou, parece mesmo que algumas definições de esquerda, como por exemplo, "Dilma é de esquerda", perderem o conteúdo analítico. De minha parte, deixo claro que sou de esquerda por acreditar na sociedade igualitária. E, para nela chegar, são necessárias reformas democráticas, praticamente as mesmas que conduzem ao socialismo. Parece que não estou inventando, on second thoughts, há uma diferença fantasmagórica entre o poeta e mim. Há outra pergunta, que vou reproduzir quebrangulo, quero dizer, quebrando-a.
Por que o capitalismo venceu?O capitalismo do século XIX era realmente uma coisa abominável, com um nível de exploração inaceitável. As pessoas com espírito de solidariedade e com sentimento de justiça se revoltaram contra aquilo. O Manifesto Comunista, de Marx, em 1848, e o movimento que se seguiu tiveram um papel importante para mudar a sociedade. A luta dos trabalhadores, o movimento sindical, a tomada de consciência dos direitos, tudo isso fez melhorar a relação capital-trabalho.
O capitalismo venceu? Esta é boa! Ferreira Gullar nunca foi meu aluno. Portanto, ele não me ouviu falando que o capitalismo acabou há mais de 15 dias. Começa que talvez ele não saiba que o capitalismo começou algum dia, inserindo-se numa teia de relações sociais que eu, John von Neumann e Fernand Braudel chamaríamos de "economias monetárias". As economias monetárias existiam antes da Idade Média e hoje em dia, quando eu diria que aquele conceito de capitalismo, lá do Manifesto Comunista, está sensivelmente modificado em diversas dimensões. A que mais me interessa enfatizar aqui nesta postagem é aquela que mostra que as relações distributivas intermediadas pelo mercado de fatores (digamos, trabalho e capital) torna-se cada vez menos importante na formação da receita da instituição Famílias. Se não foi há 15 dias, não resta dúvida de que isto pode estar acontecendo hoje ou amanhã e, como tal, o capitalismo terá acabado. As relações, digo, a distribuição trabalho-capital permanecerá existindo, assim como o escambo, por um horizonte de tempo que ainda não me atrevo a quantificar. Mas a parte substantiva, e isto Ferreira Gullar não precisaria saber, vai-se transferindo às relações interinstitucionais.
O que está errado é achar, como Marx diz, que quem produz a riqueza é o trabalhador, e o capitalista só o explora. É bobagem.
O que está errado em Ferreira Gullar é achar que Marx disse que quem produz a riqueza é o trabalhador. A menos, claro, que ambos estejam falando que, quando o capitalista trabalha, ele é um trabalhador. O que Marx dissse é que o valor das mercadorias origina-se do trabalho. E admite que o capitalista que trabalha entra na parte do capital variável v e não do capital constante c na hora de formar-se a equação do valor da mercadoroa V = c + v + m.
Por distanciar-se de seus objetivos, Marx retirou maiores discussões da questão distributiva de v entre capitalistas e trabalhadores, não é? Nas contas nacionais o Brasil contemporâneo, esta equação teria os seguintes contornos
Trabalho: remuneração dos empregados e autônomos.
Capital: excedente operacional e impostos indiretos livres de subsídios.
Agora é que vem o blim-blim-blim central de minha argumentação, reconhecida pela legislação do imposto de renda. O excedente operacional divide-se em duas partes:
Pró-labore: precisamente a remuneração do "dono" por trabalhar.
Parte do residual claimant: o que ficou depois de pagos todos os custos e que não é embolsado nem pelo trabalhador que trabalha, nem pelo capitalista pelo que trabalha, nem pelo governo que não interessa se trabalha ou não. Este é o sentido mais autêntico de se ver onde é que anda o famoso "trabalho não pago" de que nos falam os economistas clássicos, Marx e milhares de outros.
Sem a empresa, não existe riqueza. Um depende do outro. O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas. É um criador, um indivíduo que faz coisas novas. A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só explora é radical, sectária, primária. A partir dessa miopia, tudo o mais deu errado para o campo socialista. (…) [corte no material que recebi].
Esta é outra que mostra a qualificação de Gullar para intelectual que faz poesia. E até nem sempre erra na economia, se rimar intelectuar com Gullar não me coloca numa fria, na patologia da economia. Vejamos. Ontem, havia riqueza, por exemplo, a Torre de Babel, as pirâmides do Egito e não havia empresa. Ergo, sem empresa também pode existir riqueza. Hoje: o termo empresa abarca tudo o que queremos, inclusive a produção dos trabalhadores autônomos. Teria ele, Gullar, sido mais feliz, se dissesse que "sem produtores" não existe riqueza", mas aí não rimaria, não é mesmo? Fora ainda a riqueza produzida em ambientes não mercantis, como os sonetos que eu próprio componho e o valor utilidade que agreguei a umas tábuas e pregos, transformando-os numa prateira em que depositarei livros de poesia e economia.
É uma licença poética de Marx e de Gullar dizerem que "só um lado produz riqueza". Marx está modelando. Gullar está interpretando coisas a seu bel-prazer, pois lá vai saber ele esta tecnicalidade que todo o trabalho é que produz o valor e que capitalista que produz valor não é capitalista e sim está alocando os serviços do fator trabalho de sua propriedade.
Em outras palavras, que diabo de frase é a seguinte: a partir desta miopia de raro sincretismo, tudo deu errado com o socialismo. Parece que o jargão dos estudiosos de sistemas econômicos comparados não falariam isto: para eles, o modelo soviético e assemelhados não eram "socialismo", mas "comunismo". Quer dizer, tanto a Suécia como os Estados Unidos da América são socialistas, no sentido que uma fração expressiva da receita das instituições não se origina do mercado de serviços dos fatores de produção, mas de redistribuições e crédito. E no sentido de que a participação do governo, produzindo bens públicos ou bens de mérito também é muito expressiva. Para dificultar as coisas na modelagem de Ferreira Gullar, eu ainda acrescentaria que a parte da produção-provisão de bens públicos ou de mérito por parte do governo nada tem a ver com o mercado, ao passo que a simples provisão é que usa o mercado como importante mecanismo alocativo.
Vejamos mais:
O capitalismo não é uma teoria. Ele nasceu da necessidade real da sociedade e dos instintos do ser humano. Por isso ele é invencível. A força que torna o capitalismo invencível vem dessa origem natural indiscutível. Agora mesmo, enquanto falamos, há milhões de pessoas inventando maneiras novas de ganhar dinheiro. É óbvio que um governo central com seis burocratas dirigindo um país não vai ter a capacidade de ditar rumos a esses milhões de pessoas. Não tem cabimento.
No outro dia, eu andei espalhando não haver nada de mais pernicioso para a vida social do que um cientista que não sabe que está trabalhando com modelos (mas, muito melhor do que esta sentencinha, ver espantosa postagem do Bípede Pensante bem aqui). O capitalismo, claramente, é uma teoria, ou seja, existe um conceito, isto é, um construto da mente humana, que diz que, sob determinadas condições de produção, alocação e distribuição, uma sociedade que se dedica à produção de bens materiais em larga escala (para além das necessidades imediatas da sobrevivência) alcança uma etapa chamada de capitalismo. E não seríamos excessivamente criativos em conceber que um dia destes poderíamos começar a chamar este tipo de articulação original e suas variantes de pós-capitalismo.
Em resumo, como é que Ferreira Gullar poderia saber um coisa destas? Por que o capitalismo seria invencível se o próprio Sol será vencido pela segunda lei da termodinâmica? É? Uma lei vence um astro? Claro que não, não é mesmo? A realidade, do jeito que uma teoria científica a captura, vê uma previsão confirmar-se ou não. Esta do colapso do Sol está para ser testada. Esta da eternidaded do capitalismo foge totalmente ao paradigma da física contemporânea. Nâo é impossível que a humanidade consiga escapar-se do colapso do Sol, e ainda retenha relações de trocas de mercadorias. O que é muito contestável é que tal arranjo de realização futurista possa ser definido com o mesmo termo que usamos hoje para modelar as economias monetárias contemporâneas.
Por fim, não posso deixar de falar um pouco sobre a concepção de empresa do octagenário poeta. Ou melhor, passar a palavra a meu colega, o professor (prêmio Nobel) James Meade. Trata-se de notas que fiz para as aulas que dava sobre a microeconomia do mercado de trabalho.
Como lembrarei daqui a 20km, ou seja, na segunda postagem do dia,
A grande questão do paper é responder à pergunta: “Qual o efeito da diferentes formas de organização da produção sobre a eficiência econômica?”
DdAB
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