04 novembro, 2010

Literalidades (poucas)

querido diário:
tentando ver-me livre das eleições, ontem andei campeando coisas gracilianescas. hoje passo a algumas machadianas. tudo porque o loteamento dos cargos públicos que vejo iniciar-se nos governos central e regional deixa-me contrafeito. teria dito tia Zulmira, a personagem de Stanislaw Ponte Preta: "ou todos nos locupletamos ou restaure-se a moralidade". [procurei a fonte na Internet, que devo ter lido com ambos meus dois olhos, mas achei apenas citas também ao Barão de Itararé, este já devidamente personagenzado]. eu, claro, como cidadão, prefiro ver a inversão da ordem lexicográfica: restaure-se a moralidade ou todos nos locupletamos, fazendo justiça com as próprias mãos. por isto, depois de muito meditar, lancei a legenda cachorra: "abrace a política: sufoque um político". [esta de "cachorra", parece-me, parece vir de "Incidente em Antares", não é isto?]

bis do primeiro parágrafo: em "Helena", ele não fala no "ambos os dois", de que falei apenas em "ambos meus dois olhos" acima [sem falar que já inventei pilhas de frases com "ambos os três quatro" etc. mas fala ele em "ambos eles". quer ver? folhemos daqui e folhemos dali e cheguemos nas p.438 e 499, para citar apenas as que, fortuitamente, assinalei. na p.438 (capítulo 12), ele diz: "Ambos eles viam que se detestavam cordialmente [...]". isto, claro, cheira a pós-modernismo, não é mesmo? na p.444 (capítulo 26, ambos os dois em romanos), vem: "Ambos eles os baixaram à terra, medrosos de si mesmos." Os, no caso, começando frases com pronomes átonos, quer dizer "os olhos".

primeiro depois do bis: nem sei a página, mas chamou-me a atenção, ao folhar daqui e dali o primeiro volume da nova edição (mais) completa da obra machadiana e vi "vede verso". pensei: toda a vida ouvi e pensei que era "vide verso". fui ao Aurelião e simplesmente a forma "vide" não existe. e não é revide... o mais próximo é "virdes". e que tal em "vir"? também tem um "virdes". pode?

segundo: no texto científico, uma das formas de expressar ideias é usar "entradas paralelas". se digo "por um lado A", segue-se necessariamente "por outro lado ~A", ou até "por outro lado, B, C e D". mas não podemos dizer "por um lado, há apenas um lado", já seria abagunçar, como disse João Bosco, num assunto que não tem absolutamente nada com o presente contexto. se começo uma dissertação de mestrado dizendo "por outro lado...", não apenas tomar-me-ão por louco como, paralelamente, irão reprovar-me. a sorte é que já fui aprovado em dois destes pega-cachorro-louco.

terceiro. vortano a Machado: Machado não diria "vortano", no máximo falaria em "Vulcano", o que tampouco teria algo a ver com o assunto. seja como for, vortano às entradas paralelas, na p.612 (capítulo XVI de Iaiá Garcia),  vemos: "Mas duas circunstâncias a induziam ao desfecho: era a primeira a revelação de Procópio Dias, confirmação de suas suspeitas; a segunda foi o espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos naquela noite, logo depois de se despedir do noivo." sugiro que meu leitor diligente e seu gentil feminino procurem e respondam por Sedex a quem se referem os pronomes: "a", "suas", "se", "lhe" e "se". e que troço é este de "era a primeira" e "a segunda foi"? pretéritos imperfeito e perfeito? para quê?

quarto: de minha parte, se algum dia eu conseguir completar um dos milhares de romances que estou escrevendo, deixarei que leiam:

Assis redarguiu: -Para nós, você e a  vida primitiva que, evolucionariamente, os antecedeu já é um espantoso milagre, equiparado apenas -talvez- com o milagre de os havermos encontrado.

e, dito isto, terei que inventar pilhas de coisas para colocar antes e outros montes depois. se conseguir ir seguir sinuosamente... inclusive este troço dos pronomes "você" e "os".
DdAB

2 comentários:

Sílvio e Ana disse...

"era a primeira" e "a segunda foi" parecem estabelecer mais fortemente a linha de tempo dos acontecimentos. À pessoa que narra, surgem imagens bem claras daquilo que quer contar, e a tradução em palavras sofre os efeitos dessa visualização interior, ocasionalmente criando concordâncias que nos parecem estranhas a primeira vista, mas que descrevem melhor o estado mental do narrador.
Em terceiro lugar...
(Sílvio)

... DdAB - Duilio de Avila Berni, ... disse...

Em terceiro, depois de ter escutado atentamente a argumentação de Assis, Anita apenas olhou-o de soslaio e disse: -Seja como for, jamais cesarrei de louvar o dia em que li tuas mensagens que tanto bem me fizeram. Assis redarguiu, mas Anita imprensou-o contra o segundo reator de neutrinos e pediu para ele parar de redarguir e passar-lhe o baião-de-dois.
DdAB