03 novembro, 2010

Ironias: nos escritos e na economia política

querido diário:
como sabemos, meus "marcadores" de postagens não são excessivamente úteis: Economia Política, Escritos e Vida Pessoal. mais de uma vez, recorri a todos eles, de sorte a dar conta de uma postagem ou outra específica ou também. vejamos hoje alguma coisa dos dois primeiros. para ambos os dois primeiros, escolhi a imagem que retirei daqui. será que a liberdade é o antônimo do paraíso? será apenas uma contrariedade? uma contradição irremediável? apenas dois bairros com nomes inspirados em noções que nos movem a querer ser livres e a ganhar o paraíso?

Escritos
Essas moças tinham o vezo de afirmar o contrário do que desejavam. Notei a singularidade quando principaram a elogiar o meu paletó cor de macaco. Examinavam-no sérias, achavam o pano e os aviamentos de qualidade superior, o feitio admirável. Envaideci-me: nunca havia reparado em tais vantagens. Mas os gabos se prolongaram, trouxeram-me desconfiança. Percebi afinal que elas zombavam, e não me susceptibilizei. Longe disso: julguei curiosa aquela maneira de falar pelo avesso, diferente das grosserias a que me habituara. Em geral me diziam com franqueza que a roupa não me assentava no corpo, sobrava nos sovacos. Os defeitos eram evidentes, e eu considerava estupidez virem indicá-los. Dissimulavam-se agora num jogo de palavras que encerrava malícia e bondade. Essa mistura de sentimentos incompatíveis assombrava-me e pela primeira vez ri de mim mesmo. A doçura picante não me reformava, é claro, mas exibia-me como eu poderia ter sido se a natureza e o alfaiate me houvessem dado os recursos indispensáveis. Satisfazia-me a ideia de que a minha figura não provocava inevitavelmente irritação ou desdém, e as novas amigas surgiram-me compreensivas e caridosas.

em mais de uma oportunidade, creio, referi o texto de Graciliano Ramos, que acabamos de ler, em postagens anteriores. mas nunca tivera a meu lado o próprio livro: Infância, São Paulo, Rio de Janeiro: Editora Record, (circa 1995), p.184-185. ao transvrevê-la agora, vi-me corrigindo o Graça: onde ele escreveu "vantagens", eu assinalara "virtudes". achei melhor, mas ele não... isto não o faz, a meus olhos menos perfeito. ele é, na verdade, mais que perfeito! há dias li que alguém acha que "Infância" é seu melhor livro. ele foi publicado originalmente em 1945, 12 anos depois de "Caetés", que -sabemos- levou alguns anos entre a conclusão e a publicação. nessa ordem se bem lembro e me não falham as fontes, veio "São Bernardo", em 1934, "Angústia", em 1936, [...], "Insônia", em 1947, "Vidas Secas", em 1938, mais [...], o próprio "Infância", outro [...] e "Memórias do Cárcere", de 1954 ou 1955 e mais um ou mais [...], fora algum omitido.

eivada por pleno esplendor da mais pura coincidência, "Insônia" foi o primeiro livro que li (se é que não o fiz antes com a dupla "Vidas Secas" e "São Bernardo", por motivações sinuosas), do ano de meu nascimento. não quero dizer que li ainda analfabeto, nem que tenha nascido alfabetizado, you know... e se não o li em 1947 e se tampouco foi o primeiro, o certo é que juro que o li na Biblioteca do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, e isto poderia ser comprovado (o certo é que não disse que é "certo", mas que é "certo que juro") nos registros que assinávamos ao entrar e sair, e a ficha estará facilmente localizável nos arquivos dos anos 1962 (quando entrei) e 1966 (quando saí), ainda que não tenha ficado por lá preso todos esses anos. aliás, não me chamo "Dilma" e, portanto, nunca fui parar no xilindró, mesmo tendo lido algo subversivo ("Memórias do Cárcere", por exemplo) naquela fase.

Economia Política
CC: Que outros temas seriam interessantes na reforma política?
EC: Calendário eleitoral único, como eleições municipais, estaduais e federais. Fim da reeleição. O PSB já se posicionou contra a reeleição e favorável ao mandato de cinco anos. 

o fato de que eu reproduzo este "CC", de Carta Capital, na p. 31 da edição desta semana e este "EC", de Eduardo Campos, governador reeleito de Pernambuco, não é ironia: é pura crítica mesmo. a ironia, talvez, foi -na postagem de ante-ontem- eu ter-me referido a ele como um político (ergo...) que poderia levar o Brasil adiante, sob o ponto de vista da modernização. seu menino, este cabra parece-me defender um programa de atraso. ele foi incapaz de falar no voto obrigatório, no voto proporcional, no presidencialismo, em um monte de coisas retrógradas. se algo há de progressista nesta herança dos escombros de democracia pós ditadura militar (e pré também...) é precisamente o programa que o Mr. Fields deseja botar abaixo: assincronia entre as eleições. já imaginou a concentração do poder político se todo mundo for eleito ao mesmo tempo, do vereador e prefeito aos deputados e presidente e ainda juízes do supremo tribunal? ele quer é um arremedo de reforma política. inclusive -depois de ter sido reeleito- o fim da reeleição. e, a exemplo do Marechal Ernesto Geisel, o mandato de cinco anos. não seria melhor o de seis, como Geisel presentou a Figueiredo? ou apenas dois, como Sarney propôs e, mudando de ideia, ficou cinco? não daria para entender que tanta reeleição como tem acontecido no país significa apenas que o povo gostou do mecanismo?

deixe-me recuperar o bom-humor, a esperança de galgar o pé de feijão e alcançar o paraíso. volto a Graciliano. quê que tu achas da frase: "A doçura picante não me reformava, é claro, mas exibia-me como eu poderia ter sido se a natureza e o alfaiate me houvessem dado os recursos indispensáveis." claro que isto merece também o marcador de "Economia Política", pois é uma introdução à análise contrafactual ("poderia ter sido"). e mesmo economia política propriamente dita: a natureza (da terra) é a mãe e o (trabalho do) alfaiate é o pai da riqueza. (como pude ver em Marx citando William Petty, no finalzinho do oitavo parágrafo da segunda seção do capítulo 1 do primeiro volume do Capital; mas não fui capaz de achar em Petty proper).
DdAB
p.s.: o alto astral é o político João Agripino -oslt- querer dialogar e encaminhar alianças a favor da modernização. e o baixo astral é o filho de político Nelson Marchezan dizer que a popularidade de Lula assemelha-se à de Hitler. a direita é estranha, mas o corte -talvez- seja entre neuróticos e oportunistas.

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