Querido diário:
O livro de leitura literária que mais me impressionou entre os que li em 2014 (e em muitos outros anos) foi, sin duda, "El Hombre que Amaba a los Perros", do cubano Leonardo Padura. Algum tempo atrás, falava sobre ele com Juarez Fonseca e na Revolta de Kronstadt (aqui, cidade em que, em 1921, houve um motim de descontentamento contra os primeiros anos do comunismo e que foi severamente reprimido pelos revolucionários de Moscow).
Eu comentava sobre a importância do conhecimento transmitido por este tipo de literatura para dar-nos uma ideia sobre a vida cotidiana durante o comunismo, no caso, na URSS e em Cuba. No livro de Padura, no caso, há largos traços da vida em ambos os países. Este tipo de fonte é que me ajuda a entender as dificuldades dos homens de carne-e-osso em aceitar as ainda maiores dificuldades da construção do mundo melhor que desejamos deixar de herança para nossos netos.
Disse-me Juarez Fonseca que, para saber mais sobre o cotidiano da vida soviética nos anos do entorno da Revolução de 1917, nada melhor do que ler o livro "A Cavalaria Vermelha", de Isac Bábel (aqui e aqui). Há alguns meses, passei a procurar o livro, procurei-o, procurei, procurei, mas não mais o localizei, parece definitivamente esgotado. Em seu lugar, surgiu nova tradução, agora intitulando-o de "O Exército de Cavalaria" (CossacNaivy, em tradução espantosamente boa de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade).
Issac Bábel foi assassinado pelo governo soviético em 1940. Doeria menos se disséssemos "pelo estalinismo"? Claro que aqueles anos dos contos são alguns anteriores à Revolução de Outubro, mas outros são posteriores, chegando até ao início dos anos 1920. Intriga-me conhecer alguma coisa da literatura posterior, saber se há críticas. Em meus tempos de admirador do comunismo e, especialmente, dos romances que me emprestou o primo Sílvio Garcia Jantzen, adquiridos à Editorial Vitória, aquelas editoras, eu conhecia a literatura laudatória, como "A Colheita", de Galina Nicolaieva (histórias nos kolkhoses e adjacências) e o grande Iliá Ehremburg (1), de quem lembro ter lido "A Tempestade" (II Guerra). Talvez tenha cometido um engano em recusar-me a ler a literatura de contestação de Alex Soljenitzin. Mas li o afamado "Dr. Jivago", que não lembro bem, talvez nem mesmo a propaganda anti-soviética quer-me ter parecido severa. E a Julie Christie está belíssima no filme. E conheço uma boa meia-dúzia de garotas chamadas Lara!
A verdade verídica é que eu, naquela linha do "não gosto de chuva nem gosto de sol", ou do "sofro com o desenvolvimento do capitalismo e também com sua ausência" (2), vejo no comunismo soviético um progresso para a humanidade e uma simultânea e tenebrosa marcha à ré. Por contraste ao "comunismo", entendo como vitorioso o marxismo como a "filosofia da prática" e como humanismo: é preciso revolucionar a propriedade privada e a distribuição da renda. E será apenas a partir dele -destas duas revoluções- que se conseguirá este intento de redenção humana.
Se "A Cavalaria Vermelha" -como "Vidas Secas", outro "romance desmontável"- mostra um tempo grotesco, depois a burocracia e "os órgãos de segurança" eliminaram qualquer fagulha de "revolução na revolução", como teorizou Trótski.. Hoje fujo da revolução, mas também fujo de qualquer organização política que centre o poder no partido único. Para não falar de presidentes reeleitos ad eternum.
Como é que sei que Bábel amava a revolução? Ele atesta, com desenvoltura mas sem exagero, a existência de Trótski, o homem que criou a teoria da revolução permanente. Que, aliás, tampouco faz minha solução para o caminho do igualitarismo. Parece que não iria dar certo, mesmo que Trótski não tivesse sido fragorosamente derrotado por Stálin, como naqueles piores pesadelos de que um ser humano pode ser vítima.
Com efeito, o livro "O Exército de Cavalaria" tem três citações a Trótski (se bem conto), localizadas nas páginas 153, 181 e 204. Já seria suficiente para condenar o negão à morte, não é mesmo? Mas agora olha estes diálogos que retirei do conto "Guedáli" (aliás, o nome do pai de um amigo, judeus brasileiros ambos). Lá no finalzão, página 238, diz-se deste conto: "[...] publicado no jornal Isviéstia (Odessa, 1923), com o subtítulo 'Do livro O Exército de Cavalaria', o local e a data (Jitómir, junho de 1920)." [Os parênteses estão no original. E Jitómir, eu não sabia, é uma cidade da Polônia e não da Rússia/URSS].
Em particular, estamos nas páginas 56 e 57:
[...]
-A Revolução? Nós diremos sim a ela. Mas e ao sabá, por acaso teremos que dizer não ao sabá?- assim começa Guedáli, e ele me enreda com as cordas de seda em seus olhos embaçados. -"Sim", grito eu para a revolução, eu grito "sim" para ela, mas ela se esconde de Guedáli, e manda para frente apenas a fuzilaria...
-A luz do sol não penetra em olhos fechados - respondo ao velhinho -, mas nós abriremos os olhos fechados...
-O polonês fechou meus olhos - sussurra o velho, com voz quase imperceptível. -O polonês é um cão maldito. Ele agarra o judeu e arranca a barba dele, ah, o cachorro! E eis que agora batem nele, nesse cão maldito. Isto sim, é que é belo, esta sim, é que é a Revolução! E depois, quando aquele que bateu no polonês me diz: "Entregue-nos seu gramofone em troca disso, Guedáli...", eu respondo à Revolução: "Mas eu gosto de música, senhores"... "Mas você, Guedáli, não sabe do que você gosta. Vou atirar em você, e aí você vai saber. Porque eu não posso fazer outra coisa a não ser atirar, porque eu sou a Revolução...".
-Ela não pode deixar de atirar, Guedáli - digo eu ao velhinho -, porque ela é a Revolução...
-Mas o polonês estava atirando, meu caro pan, porque ele era a contrarrevolução. E vocês atiram porque são a Revolução. Mas a Revolução é alegria. E a alegria não gosta de ter órfãos pela casa. O homem bom faz boas obras. A Revolução é uma boa obra de homens bons. Mas os homens bons não matam. Então, quer dizer que quem faz a revolução são os homens maus. Mas os poloneses também são homens maus. Quem dirá a Guedáli de que lado está a Revolução e de que lado está a contrarrevolução? Um dia eu estudei o Talmude, e gosto dos comentários de Rachi e dos livros de Maimônides, e há pessoas inteligentes em Jitómir. E eis que nós todos, pessoas instruídas, levamos o rosto ao chão e gritamos numa única voz: "Ai de nós! Onde está a doce Revolução?...".
O velho calou-se. E nós vimos a primeira estrela que atravessar a Via Láctea em toda a sua extensão.
[...]
Eu fiquei tão embasbacado com esta passagem e dezenas de outras que desejei saber mais sobre a vida cotidiana nos países que amaram a revolução. E li aquele livro dos Cisnes Selvagens, o que me deixou, além de embasbacado, desabotinado e escabelado. Talvez eu deva passar a usar como lema a linda frase de Guedáli:
Mas a Revolução é alegria. E a alegria não gosta de ter órfãos pela casa.
Se eu pudesse corrigir este senhor, apenas grafaria "revolução" e "Alegria".
DdAB
(1) Está cheio de Ilyá Ehremburg pela internet. Mas da Galina Nicolaieva encontrei apenas isto:
(2) Estou citando a canção "Ligia", de Tom Jobim e, presumo, Vinicius de Moraes. E depois Karl Marx nada mais nada menos que em "O Capital".
P.S. E aqui a capa do livro que li:
E olha o que eu achei aqui:
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