09 outubro, 2014

Bolsa Família e Voto Facultativo


Querido diário:

Li tanta coisa sobre bolsa família e voto facultativo na ZH de hoje que decidi postar um longo arrazoado sobre o tema. Tudo começou pelo lado alegre. Na página 30, Michel Gralha (e-mail michel@zavagnagralha.com.br) tem um artigo naquela nova seção "Em Dia", levando o título de "Voto Facultativo". Achei genial e decidi escrever a ele, congratulando-o, congratulando-me. Mas também tem o lado escalafobético, representado por centenas de manifestações, digo, uma boa meia dúzia, que vou referir in due time no que segue.

Michel Gralha tem dois pontos que volta e meia defendo neste blog por diferentes linhas de argumentação altamente elegantes (os dele, compreendeu?) e portadora de lógica escorreita:

.a. o programa Bolsa Família é uma realidade perene, pois -diz ele- que:

Os candidatos a presidente, indistintamente, fizeram do programa Bolsa Família seu principal cabo eleitoral. Trata-se de um projeto amplo e que nenhum presidenciável suprimirá da população, e é preciso avaliar seus efeitos no voto.

.b. a obrigatoriedade do voto no Brasil é um constrangimento especialmente significativo para quem recebe estipêndios do programa Bolsa Família:

Há algum tempo já se questiona se os programas assistencialistas influenciam nas eleições. Seria o conflito de interesse, por exemplo, um beneficiário votar? Não seria como votar no patrão? ?Temos muito a refletir. E qual seria a solução? [...] Nesse caminho, poderíamos começar pelo voto facultativo. Essa, que é uma realidade nos países desenvolvidos, talvez melhorasse a qualidade do pleito eleitoral e preservasse um princípio básico: a liberdade dos cidadãos em exercer ou não seu dever cívico.

Que posso comentar? Até já escrevi, com Brena Fernandez (1), sobre isto: em um problema de escolha iterativa sempre que as estratégias disponíveis para um jogador Bina mostram uma delas (e.g., não comparecer às urnas) como melhor do que qualquer outra (no caso, sair de casa, deslocar-se, votar, etc.) independentemente de Dino, no caso, votar ou não votar, dizemos que esta estratégia (Bina vota se quiser) domina a estratégia alternativa (Bina é obrigada a votar). Ou seja, um sistema eleitoral que induz a sociedade a conviver com uma solução distante da estratégia dominante só pode resultar em encrenca!

E que achei genial no insight de Michel Gralha? É que as acusações do uso de uma migalha aos despossuídos para fins eleitoreiros ficaria totalmente sepultado em uma cultura de voto facultativo: vota quem quer, por amor, ódio, a favor do status quo, contra ele, o que bem entender. E, sendo o voto secreto (sem fraude), ele não será individualmente nem beneficiado nem prejudicado por escolher o que bem entender.

E que é ainda mais democrático do que um programa do tipo "dar dinheiro para pobre"? Parece óbvio: dar dinheiro para todos, uma vez que todos são iguais perante a lei. Se um despossuído ganha, digamos, miseráveis R$ 500 por mês a título de renda básica (2), e todos os demais brasileiros (digamos, integrantes da população economicamente ativa) também ganham, então todos são iguais perante a lei. E um cidadão que ganha, digamos, R$ 30.000 + 4.200 mensais (os juízes e seu auxílio moradia), também ganhar esses R$ 500, ele pode descontar os R$ 6.000 anuais do programa Renda Básica de seu imposto de renda.

Obvio que um projeto desta natureza (isto é, a renda básica), diferentemente do voto facultativo que poderia vigorar já nas próximas eleições, precisa ser implantado em mais de um período, pois a sociedade e suas burras devem adequar-se gradativamente. Disse Alfred Marshall: natura non facit saltum. Ou seja, para que um programa de mudança estrutural na distribuição do valor adicionado da sociedade não seja escalafobético, é necessário que o sistema econômico tampouco dê saltos.

E que mais li em Zero Hora? Confesso que nem li... Ou melhor, duas páginas adiante do artigo produzido con la cabeza por Michel Gralha, vem o editorial do jornal. A ementa diz:

O país precisa lutar para que as pessoas saiam do Bolsa família, com estímulo ao estudo e à oferta de emprego, e não para que continuem cativas da ajuda oficial do Estado.

Pensei que apenas esta sentença inviabiliza, na visão de meu cardiologista, que eu leia o restante. É tanta sandice, tanto "o que deve ser" que fiquei pensando que será que eu mesmo não estou neste vagão dos que querem que seu voto ou opinião sejam dominantes (os ditadores esclarecidos de Keneth Arrow)? Claro que não: sempre que se adota uma estratégia dominante, não há dúvida de que ninguém pode ficar melhor se adotar uma estratégia alternativa. No voto é óbvio: não sendo obrigado votar, nada me impede de fazê-lo. E na Renda Básica também: se não quero gastá-la em bebida, posso abatê-la de meu imposto de renda, algo assim, ou mesmo ter o crédito feito pelo Tesouro Nacional em minha conta realizado apenas após minha autorização: não devo ser obrigado a receber a grana.

Então chega do editorial. Mas na página seguinte, já tropiquei no artigo da juíza Naele Ochoa Piazzeta, desembargadora do TJRS), cujo título é "O Pulso ainda Pulsa":

Um país não pode ter suas políticas voltadas unicamente aos menos favorecidos. 

Pensei: é, è vero, não pode. Afinal, se um rapaz como Fernandinho Beira-Mar é milionário, as políticas públicas, de alguma forma, também devem contemplá-lo e dar-lhe tratamento digno. Por exemplo, um dentista na cadeia e mesmo um professor de filosofia moral e outro de filosofia política.

No mesmo parágrafo, a juíza aditou:

Deve [o país] atender a todos os estratos da população. E foi isto que fez o indivíduo que tem teto, que tem terra, que tem emprego, que paga impostos, que não faz baderna, que bate ponto, que cumpre as regras sociais: ergueu a voz e o título de eleitor firme no desejo por mudanças. [...] Escolheu dizer não ao fisiologismo, ao paternalismo que cabresteia, ao sumidouro sem fim do dinheiro público desviado de obras essenciais para o bolso de políticos, empresários, empreiteiras.
   Escolheu a manutenção do auxílio aos menos favorecidos com a perspectiva de que não o será para sempre. Escolheu educação, saúde e segurança pública. Escolheu um país livre de grilhões.

Claro que esse tipo de abordagem sempre me deixa contrafeito. Primeiro, inspirado na medicina baseada em evidência, indago, como saberá a juíza que o indivíduo que tem teto, etc. escolheu mesmo viver em um país sem grilhões (3)? Uma coisa é ter pensamento normativo: quero o fim da impunidade. E outra é eu adivinhar ou saber por fontes de validade interpessoal que "o povo quer impunidade, ou seu fim, só uma das duas e não ambas". Parece que a juíza deseja, no país do índice de Gini de 0,50, ter em sua casa "o abrigo inviolável do indivíduo" (era isto?), em seu emprego uma fonte de realização e afirmação social, bater seu pontinho quatro vezes por dia (ida e frida), votar, gritar por mudanças. Mas como ela sabe que eu também quero isto? Como sabe o que pensam os demais indivíduos que têm teto, etc.? "O indivíduo" tem o quantificador universal "todo indivíduo", que difere de quase todos, muitos, alguns, poucos, nenhum, e por aí vai.

Mas tem algo interessante nesta fala privilegiada. Primeiro, de acordo com a lei federal n. 10835 (nota 2 lá embaixo), os menos e os mais favorecidos terão o auxílio da Renda Básica a perspectiva de terem esse estipêndio para sempre, para um tempo em que a produtividade do trabalho não cessa de crescer, em que a barreira das necessidades fundamentais já está varrido, a fome acabou. Precisamente por causa do estonteante crescimento da produtividade foi que John Maynard Keynes falou no final dos anos 1920 em "desemprego tecnológico" (4). Ou seja, a fala da juíza não consegue perceber que não estamos mais no mundo do emprego para todos (até parece que acredita no milagre luleiro do mais baixo desemprego da história, milagre compatível com 20 milhões de empregos precários).

Agora o aspecto verdadeiramente interessante que retiro das reflexões que fiz sobre o artigo da sra. Naele. Uma vez que hoje contamos com uma extraordinária base de dados internacionais (países, suas regiões, municípios, cidades, seus bairros), muitas daquelas questões que há tempos foram objeto de controvérsia hoje têm respostas da mais alta qualidade permitida pelas técnicas estatísticas (amostragem, estimação). Uma delas, de importância fundamental para os defensores do igualitarismo (e até seus antagonistas, por que não?), diz respeito à relação entre crescimento e desigualdade. Parece haver maior complementaridade entre as sociedades portadoras das virtudes (aqui e ali) destacadas pela juíza (posse de teto, terra, emprego, capacidade de consumo, ordem) são precisamente as que mais crescem! E aí vem o problema: menos desigualdade se consegue com mais imposto de renda e gasto público universal. No primeiro caso, voto em alíquotas progressivas mais acentuadas do que estes 15% de 27,5% do Brasil contemporâneo. E no segundo, voto no SUS, nas cadeias para todos (os meliantes, destacando os políticos), no serviço municipal (emprego para todos os que querem ganhar mais que a renda básica e menos que o salário mínimo de mercado). Voto no futuro (e no presente acho que meu voto não serve para nada, não serviu para nada)!

DdAB
(1) Tá na página 77 de:
BÊRNI, Duilio de Avila e FERNANDEZ, Brena Paula Magno (2014) Teoria dos jogos; crenças, desejos, escolhas. São Paulo: Saraiva.
Um interessante exemplo de estratégia dominante associado à política decorre do preceito da constituição brasileira, que trata da obrigatoriedade do voto. O voto facultativo é uma estratégia dominante, pois obriga todos os que querem votar responsablemente y con la cabeza a fazerem-no, desobrigando do voto aqueles que não querem votar, independentemente de ser com a cabeça. Com o voto voluntário, quem quiser usar a cabeça ao votar, que use. Ao mesmo tempo, quando a cabeça nos impulsiona a não votar, não estamos diminuindo as opções eleitorais de quem deseja votar. Na verdade, parece existir uma caminhada inexorável rumo à implementação da estratégia dominante do voto facultativo. Primeiramente, por analogia à Lei dos Sexagenários, que deu um golpe na escravatura, o voto se tornou facultativo para maiores de 70 anos. Na linha da Lei do Ventre Livre, este também ganhou caráter facultativo para cidadãos com idade entre 16 e 18 anos. O preço nacional à desobediência à estratégia dominante do voto facultativo ainda se expressa em um divertido paradoxo: pelas atuais condições, não votar é crime, mas o criminoso tem seu direito de voto cassado. Se não votar, pode ser condenado a... não votar.

(2) A renda básica é um benefício da cidadania resultante de uma lei em vigor no país e que não tem sido cumprida neste país de encantadora bondade e maligna hipocrisia, pois simplesmente parece que a sociedade (ou melhor, seu segmento decisor das escolhas públicas) não é capaz de conviver com a ideia de "dar dinheiro para pobre". Que lei? Olha o que diz a Wikipedia aqui:

No Brasil, a lei n° 10.835/2004, de autoria do Senador Eduardo Suplicy, que institui a Renda Básica de Cidadania, foi aprovada por unanimidade no senado e sancionada pelo então Presidente da República em 8 de janeiro de 2004. De acordo com a lei, a aplicação deve ser feita de forma gradual começando pelos mais necessitados, com a evolução de programas de transferência de renda como o Bolsa Família.

(3) Depois de haver cantado aquela parte dos grilhões que nos forjava do hino da independência, decidi ir ao dicionário. E eis a terceira acepção do Aurelião: "corrente que prende os condenados, cadeia, algema". E fiquei pensando em que a juíza está falando? Em corrente, algema, ou -dada a impunidade resultante de um sistema judiciário ineficiente- em cadeias, cadeias de xilindró, país sem xilindró?

(4) Ver o maravilhoso artigo Possibilidades econômicas para os nossos netos, disponível aqui.

(5) A imagem veio daqui. E achei bonitinha e erradinha. Igualdade não é tratar a todos da mesma forma, mas diferenciar as oportunidades de acordo com as necessidades dos indivíduos. Ao ganhar os dois degraus na escadinha lá de cima, o baixinho está colocado em igualdade de condições com os demais. A matemática já ensina: igual não é sinônimo de idêntico. Um imposto de renda progressivo de alíquota de, digamos, 80% para quem ganha mais de R$ 50.000 mensais, iguala os primeiros R$ 1.000 do rico aos do pobre: ambos são isentos.

POST SCRIPTUM (20h de 2/nov/2014):
Nem sei bem como passei por aqui e decidi aditar isto. Aquela foto lá de cima mostra a "igualdade" de caixotes e não de meninos. E o que ele designa por "justiça" nada mais é do que tratar desigualmente os desiguais. Alguém acharia sensato obstruir a visão do pequenino dando-lhe um único caixote? Ou o melhor mesmo seria rebentar aquela cerca? Em outras palavras: justiça é que significa igualdade. Tratando os desiguais desigualmente, estamos tornando-os todos iguais perante uma norma mais inteligente do que a de tratar todos como se fossem caixotes.

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