10 outubro, 2009

A Vida por Amostragem

Querido Blog:
Dada a inarredável circunstância de que o dia tem 24 horas, mesmo para o povo do Planeta 23, não podemos pensar literalmente que a vida é uma amostragem, mas em boa medida a proposição pede simetrização: a amostragem é que dá vida. Disse, há tempos, Roland Barthes que o amor requer o esquecimento e que -sem esquecimento- a vida seria insuportável. Até hoje indado o que ele quis dizer com isto e sempre respondo: se passas o dia inteiro pensando em teu caniço amado, tua isca amada, tua sacola de lanchinhos amada, teu cortador de unhas preferido, não poderás pensar em teu cachorro preferido, teu cachorro quente preferido, teu sei-lá-o-quê preferido. Ou seja, existe um determinismo que podemos associar, para simplificar a argumentação, ao fato de que o dia tem 24 horas.

Há 30 anos, li uma resenha bibliográfica de Fábio Erber sobre economia da tecnologia que tem uma frase que causou grande alívio em meu cérebro de leitor compulsivo. Aliás, esta idéia de "leitor compulsivo" retirei-a -creio- de um livro de Mark Blaug. Disse Blaug que o leitor compulsivo tudo lê. Mas Erber acalmou-me ao deixar claro que apenas na área da ciência e tecnologia já era impossível tudo o que se escrevera em pleno -digamos- 1979.

Ora, o conhecimento dobra a cada 15 anos. Ou até em menos tempo. No caso dos 15 anos, se um índice medisse esse estoque como igual a 100, teríamos 200 e 400. Se eu não podia ler tudo mas, digamos, 80%, ainda assim, restam 320, o que faz meus 80 original caírem para apenas 20% de todo o conhecimento humano apenas sobre a areazinha da C&T (como abreviam lá eles).

Estas reflexões (considerações, divagações) emergiram de minha constatação de que todos os meus CDs de música oferecem -se bem lembro- dois meses de som ininterrupto. Com 30 gigas, esse volume de conhecimento musical acumulado gastando dois meses, quanto tempo mais eu precisaria para ler -digamos- as obras completas de Machado de Assis na edição que adquiri há um ano? E os outros livros que já adquiri e ainda não li? E os que adquirirei? E os que não adquirirei, mas -ainda assim- existem e também são fundamentais? E os folhetos de museus, batedeiras de bolos, baterias de câmeras fotográficas, bulas de remédio (dimetilfenilaminadimetilpirasolona, e por aí vai), e o senhor etcétera e tal? Qual a fração do que já existe que poderei ler? E qual a fração do que ainda não existe e que, ainda assim, insistirei em ler nos próximos anos, assim que for sendo criada? E.g., a Zero Hora de domingo.

Tenho dito que escolhi Zero Hora e Carta Capital para dar-me a agenda, isto é, para informar-me o que se passa no mundo que meus sentidos não alcançam, e.g., bombas na Lua, no Iraque ou na China (morre um gato na China...). Será mesmo que Barack Obama ganhou mesmo o prêmio nobel da paz? Vi na TV, confirmei na ZH. Será mesmo que Raul Pont (PT) tentou baixar pancada em Zila Breitenbach (PSDB)? Será que ambos leram alguma coisa sobre o debate Habermas-Rorty?

Até que ponto este estilo de "fazer política", inclusive minha política de olhar o mundo por amostragem, dada minha absoluta incapacidade de lidar com o universo inteiro, está levando a vida à ruína? No jornal de hoje tem um artigo assinado em que o autor -entre outras medidas, de maior fundamento- sugrere que a reforma política deve contemplar proibição de pagamento de altos salários pelo senado federal. Eu acho que, se houvesse voto distrital, provavelmente não haveria distorções salariais para nenhum político nem juíz nem promotor, nem motorneiro. Mas seria excesso de ambição pensar em mudar o mundo, todo o universo, dado meu poder de controlar apenas fração reduzidíssima de tudo-o-que-nele-rola.

Claro que novas tecnologias poderão surgir e permitir que tenhamos a ambição de saber tudo sobre tudo. Claro que o Aleph, se for encontrado, poderá ser lido em apenas um átimo e, por conter todos os livros do mundo já escritos e ainda por escrever -inclusive a si próprio- vai resolver este tipo de problema. Sem Aleph, devemos pensar em programas de inteligência artificial que, por exemplo, permitam-me conhecer as obras completas de Machado, Borges, Smith, Ricardo, Marx, Mill, Walras, Marshall, Keynes e o povo moderno. Até que ponto tudo não seria diferente em minha vida se, ao invés de ter lido o livro de Hai-Kais de Millôr Fernandes, eu não tivesse olhado o verbete correspondente na Wikipedia em japonês? Talvez o segredo que deve acompanhar o homem, enquanto sua natureza ainda for mais ou menos assim como a entendemos -e apreciamos-, associe-se à frase que citei há dias:
.a. viver como se fosse morer amanhã
.b. estudar como se não fosse morrer nunca.
De minha parte, hoje às 17h00min00seg, pretendo correr 5km no Parque Marinha do Brasil, a fim de manter o corpo e a alma unidos por mais algum tempo...
DdAB

3 comentários:

maria da Paz Brasil disse...

Amei!
MdPB

maria da Paz Brasil disse...

Oi, Duilio!
Estamos esperando...
Dois dias sem postagem do planeta 23 corresponde a uma sema na do Maria da Paz Brasil.
Kd?
MdPB

... DdAB - Duilio de Avila Berni, ... disse...

oi, MdPB: sinto-me um certo irresponsável por ter fraudado a postagem de ontem. na verdade, minhas estatísticas não saíram bem como eu queria. tenho um ano de blog neste sistema Google e apenas 260 postagens (deletei as primeiras). mas sigo tentando fazê-las diariamente. na de hoje, o que há de mais autêntico é minha velha cultura de menino espírita. felizmente, bygones are bygones.
DdAB