Querido Blog:
Esta não é uma postagem de economia política, logo esta Sapucaia -que floresceu entre 1808 e 1874 não é a do roubo das merendas escolares (ou era Sapiranga?). Sapucaia, se é árvore, derruba-se a machado; político, se é ladrão (e é óbvio que é), derruba-se da mesma forma. Seja como for, "As Primas de Sapucaia!" é um dos mais primorosos contos de Machado de Assis, pois citamo-lo eis que lemo-lo, à p.254 do livro de contos selecionados editado por John Gledson, referindo-se à "bela Adriana":
Veio no dia seguinte, consigo mesma, sem marido, sem sociedade, sem escrúpulos, tão-somente consigo, e fomos dali viver juntos. Nem ostentação, nem resguardo. Supusemo-nos estrangeiros, e realmente não éramos outra coisa; falávamos uma língua, que nunca niguém antes falara nem ouvira. Os outros amores eram, desde séculos, verdadeiras contrafações; nós dávamos a edição autêntica. Pela primeria vez, imprimia-se o manuscrito divino, um grosso volume que nós dividíamos em tantos capítulos e parágrafos quantas eram as horas do dia ou os dias da semama. O estilo era tecido de sol e música; a linguagem compunha-se da fina flor dos outros vocabulários. Tudo o que neles existia, meigo ou vibrante, foi extraído pelo autor para formar esse livro único - livro sem índice, porque era infinito - sem margens, para que o fastio não viesse escrever nelas as suas notas, - sem fita, porque não não tínhamos precisão de interromper a leitura e marcar a página.
Este conto foi publicado (diz Gledson à p.480) na Gazeta de Notícias de 24 de outubro de 1883. E eu andava preocupado com minha agilidade ao teclado. Volta e meia, imagino o que seria do problema da transformação dos valores em preços, se Marx soubesse álgebra linear ou apenas usar o Excel. E quanto tempo eu levaria para "passar a limpo" suas obras completas, ou as mais de 6 mil páginas das obras completas de Machado de Assis. Isto que sou um dos mais rápidos digitadores do Departamento de Prestidigitadores do MAL*. At the same time, lembro que muito apreciei a frase de Stephen Pinker: "escreve-se como se lê e não como se fala". Digo isto a propósito da ênclise em "Supusemo-nos". Tem muito neguinho -hoje em dia- que não hesitaria em escrever "Nos supusemos". Obviamente, se algum neguinho escreve com próclise neste contexto, saímos do MAL* (Movimento pela Anistia aos Ladrões de Colarinho Branco) e entramos no MFP (Movimento Me Faz Próclise, Te Chamo de Castaelhano). Da mesma forma, os pronomes átonos embutidos no meio de locuções verbais (e.g., tínhamo-nos deleitado) devem ser lidos e escritos ancim (ou era ansim que eles escreviam assim?).
O Prof. Chomsky enviou-me um telex informando que -"em sua modesta opinião"- língua é o que se fala e não o que se escreve, razão que levou minha modesta opinião a desprezar os literatos da academia brasileira de letras que, a cada quarto de século tacam fogo nas bibliotecas das escolinhas de Angola, Brasil, Portugal, Algarves, Aligators e alhures. Ou seja, não haveria maiores dificuldades em lermos o português camoneano, ainda que palavras que ele usou há 10.000 anos (era isto?) tenham caído em desuso desde, digamos, a sagração da burguesia ao poder dos estados da Europa, da França e da Bahia. Aliás, Bahia é tasca! Tudo era baía, exceto a Bahia, agora já nem sei se é baia ou baía e a Bahia segue sendo Bahia, mesmo com todos os coronéis devidamente cadastrados por lá, desafetos e cupinchas de Jorge Amado e associados. Cupinchas, sô? Tá no Aurelião Eletrônico (o velho, pois a ABL tacou fogo também no CD correspondente).
Em resumo, a maravilhosa maestria que adquiri com as letras do teclado QWERTY pode dar com os burros nágua (ou n'água) quando fizermos programas de inteligência artificial que permitam ao computador ouvir-me dizer "fizemos ele pagar as merenda", em perfeito gauchês compatível com um neguinho de meu porte, e printar na tela: "Fizemo-lo pagar pelas merendas, que -anyway- ele não deveria ter roubado das criancinhas de Sapucaia (ou era de Sapiranga?)", que o computador não me permitiria caluniar um papa, ou um reitor, um deputado essas coisas.
Ocorre que Carlo Ginzburg (ou era Ginsburg?) deixou claro que muito do provavelmente a humanidade aprendeu a ler antes de aprender a escrever. Mas também talvez não mais se faça necessário ler, pois o programa de inteligência artificial -instado por, digamos, um coice, a fazê-lo- poderá ler tintim por tintim tudo o que quisermos. Então, os que hoje já desaprenderam de escrever, digitar e ler estão certos? Não posso assegurar que não, ainda que volte a pensar em estudos e testes organolépticos, a fim de entender os limites dos sentidos humanos, não é isto? Por exemplo, claro que maneta não datilografa, cego não lê, surdo não ouve, e por aí vai. Mas será que o programa de inteligência artificial não pode dar um jeito de fazer cego entender "como se lesse", maneta ter seus textos digitados "como se datilografasse", e assim por diante? Tampouco atrever-me-ia a dizer que não, nem que sim, nem que talvez, nem que sabe-se lá o quê. Feliz Aniversário, primas de Sapucaia, Sapiranga e Sapucaí!
DdAB
Nenhum comentário:
Postar um comentário