31 outubro, 2009

O Problema da Transformação dos Valores em Preços

Querido Blog:
Primeiro, devemos ter presente que existe uma diferença fundamental na forma como o homem se apropria da natureza, comparativamente, por exemplo, a uma abelha. Em segundo lugar, também no que diz respeito à apropriação da produção. O abelheiro tem regras de distribuição bastante simples, mas que foram deixadas para trás pelos vertebrados. O mapa do Brazil que selecionei do Google Images mostra uma distribuição da produção, ou das belezas turísticas.

Mas, quando falamos na distribuição entre os indivíduos, começamos a ver a perversidade da simetria com a distribuição entre as abelhas. A desigualdade é enorme entre os humanos, em parte devido a uma peculiaridade da sociedade rica: se pouco existe, pouco será distribuído. É a idéia de Simon Kuznets para explicar a regularidade parabólica entre renda per capita e índice de Gini.

Entre as abelhas, há divisão do trabalho que não chega a permitir qualquer comparação nem com lobos nem com humanos. Ficando com os humanos, já sabemos que esta, a divisão do trabalho, gerou enormes possibilidades de crescimento da produtividade. Com isto, gerou-se mais abundância, mais bem estar, mais divisão do trabalho, maiores ganhos de produtividade. Tudo isto implica que o conteúdo de trabalho de cada mercadoria reduz-se ao longo do tempo. Claro que a massa de valores que hoje vemos gerada em qualquer economia é muito maior do que aquela que existia sob condições ridículas de produtividade, mas o conteúdo de trabalho para cada equivalente é menor. N'est ce pas?

Por que Marx acabou o primeiro capítulo do Capital com uma seção intitulada "O Fetichismo da Mercadoria e seu Segredo"? Segundo muitos pensadores importantes, a razão da existência desta seção é a própria raison d'être do próprio capítulo e de toda a teoria do valor marxista. Ou seja, precisamos pensar numa economia monetária simples para podermos entender sua evolução e, como tal, a crescente divisão do trabalho, os ganhos de produtividade e a queda no valor das mercadorias. Insisto: o valor total deve estar crescendo, pois há novas mercadorias, e tudo o mais. Ademais, mesmo que a negadinha trabalhe menos, digamos, daqui a 10 anos, o valor poderá seguir crescendo. O trabalho cada vez torna-se mais produtivo (reduzindo o valor), mas a massa de mercadorias torna-se cada vez mais volumosa em virtude da redução do -lá no dizer dele- do exército industrial de reserva.

E qual a relevância de pensarmos no problema da transformação dos valores em preços? Na economia muito simples do volume 3 do Capital, há indicações da solução do problema, o qual foi definitivamente sepultado pelo "sistema de emprego do modelo de Leontief" e, se tivesse ainda sobrado algo insepulto, o livro da teoria da produção de Luigi Pasinetti teria dado a pá de cal. Não entendo tanto do livro de Pasinetti quanto entendo da singeleza cristalina do sistema de emprego de Leontief. Se tu me acompanhas:
L = m^D x B x f
onde L é o vetor do emprego dos setores (produtores da MaCS), m^D é a matriz diagonal cujo elemento característico é o coeficiente de emprego por quantidade-monetária (valor $ da produção), B é a inversa de Leontief, ou seja, segurando os requisitos diretos e indiretos da produção de cada mercadoria e f é o vetor da demanda final pelos produtos dos setores produtivos (e "x" é a operação de multiplicação de matrizes e vetores).

Claro que nesta visão leontiefiana estou equalizando os elementos do vetor L com os do vetor f. E claro que na visão puramente algébrica isto se deve a duas arbitrariedades:
.a. joguei na parada a matriz B
.b. joguei na parada a diagonal m^D.
Não há muito a falar sobre B, exceto as considerações feitas em qualquer livro texto de respeito. Mas vale a pena pensarmos um pouco no elemento característico de m e os correspondentes elementos de f e L. Os elementos de f são medidos em quantidades monetárias, ou seja, reais, ou seja, preços vezes quantidades. Os elementos de L são medidos em horas de trabalho.

Claro que temos um problema dimensional de conversão de $$$ em hhh. E claro que ele é resolvido pelas matrizes de transição m^D e B. Mas há algo ainda mais interessante na matriz L. Este algo aponta para o fato de que a solução matemática do sistema de equações simultâneas (nomeadamente, L = m^D x B x f), quando alcançado (e, uma vez que pudemos montar nossa tabela de insumo-produto, concluímos que ele foi efetivamente alcançado), implica que o problema da transformação já está -como não poderia deixar de ser- simultaneamente resolvido.

Em L temos horas hhh de trabalho, em f temos reais $$$ realejos. Um (hhh) transformou-se no outro ($$$) e o outro (hhh) gerou o outro ($$$), como diz a velha piadinha da região localizada a oeste da Espanha e da França. Mas voltemos a pensar em que mesmo é que é mais interessante na matriz L. É que, entre os elementos de L, vemos horas de trabalho também dedicadas a atividades improdutivas, como é o caso das obturações dentárias, cirurgias cardíacas, cortes de cabelo, essas irrelevâncias da vida cotidiana declaradas improdutivas pelos economistas clássicos e especialmente por Marx. Em outras palavras, para produzir $$$ 1 em dinheiro gasto em cortes de cabelo, são necessárias, digamos, 1hhh horas de trabalho. Claro que agora o adjetivo "necessárias" diz respeito a uma simples equiparação algébrica. Ou seja, não nos estamos referindo à concepção de "trabalho necessário e trabalho excedente", ainda que estejamos examinando a complicada (e, parece, errada) questão da relevância da distinção entre "trabalho produtivo e improdutivo".

Em outras palavras, a questão do trabalho necessário x trabalho excedente é improcedente para o caso e a do trabalho produtivo e improdutivo é irrelevante. O fato é que o modelo de Leontief permitiu-nos rastrear todos os requisitos diretos e indiretos de trabalho socialmente necessário, inclusive aqueles alocados nas horas de trabalho declaradas improdutivas (como os cortes de cabelo realizados -comprados e vendidos- no mercado)

Claro que não estou dizendo que esta equação resolveu o problema da transformação dos valores em preços, não é isto? (ou eu disse acima e agora estou corrigindo?). Seja como for, é evidente que estamos vendo correspondências entre a demanda final de cada setor e o número de horas de trabalho direta e indiretamente necessários para produzi-la (à demanda final daquele setor). Ou seja, o problema da transformação não foi resolvido em negrito, mas ele foi resolvido num sentido mais mundano: uma hora de trabalho vale uma unidade monetária. Claro que também este "vale" foi escrito em negrito, pois também este verbo tem dois significados (vale quantidades monetárias e vale quantidades de trabalho social).

O que estou certamente dizendo é que o sistema de preços que faz com que os elementos de f compareçam precisamente com os valores que por lá podemos ler depende de todos os demais preços de todos os demais elementos de f, ou seja, tudo está sendo criado simultaneamente. Ou melhor, tudo foi criado simultaneamente. Neste caso, devemos lembrar que, ainda que a equação L = m^D x B x f seja "equação de comportamento", os valores de L e f do ano passado não foram "de comportamento", mas valores verdadeiros reais verídicos. Assim mesmo é que eles foram gerados pelo mundo.

O mercado foi aberto, digamos, no primeiro dia de janeiro e iniciou-se um processo de ajustamentos, algumas transações sendo realizadas e outras sendo postergadas para o dia 2. No dia 3, tudo repetiu-se, e assim por diante, até o dia 365, quando o mercado foi fechado e nada mais será vendido ou comprado. Nesse momento, por exemplo, as horas de trabalho despendidas na extração de ouro que não foi comprado (e que tem meia-vida de apenas um segundo) simplesmente não geraram valor, ou seja, foram desperdiçadas.

Talvez meu argumento ainda seja insuficiente para tirar duas conclusões, mas estou certo de poder fazer todas as mediações para chegar a elas. A primeira implicação é que o banco central é que determina a massa de valor (monetário, monetário, meu!) a ser distribuída entre os diferentes "ramos" industriais (os setores, id est, produtores da MaCS). Ao mesmo tempo, ao falarmos assim, estivemos pensando apenas como a figura que nos ilustra na postagem de hoje: divisão geográfica num lado e divisão setorial no outro. Ou seja, estamos deixando de referir que o valor adicionado pode ser distribuído geograficamente, mas além disto também terá lá sua distribuição setorial, pessoal etc.. Em outras palavras, o valor adicionado terá três maneiras de ver sua distribuição mensurada: a ótica do produto, a da renda e a da despesa.

A segunda impliação é mais contundente para a orientação da política pública (tenho em mente a sindical, pois todo político é ladrão e não adianta falar nada sério com essa corja). Não existe exploração de um trabalhador individual específico por um capitalista individual específico. Ou seja, ao falarmos de exploração, estamos pensando na ótica do produto da mensuração do valor adicionado? Claro que não podemos falar nisto, pois -neste caso- teríamos que dizer que um trabalhador de um setor é mais explorado do que o de outro, coisas assim. E isto é um inominável absurdo. O que, obviamente, podemos dizer é que o trabalhador da indústira química (ascensoristas) tem produtividade maior do que o da educação (motoristas), se ambas forem mensuradas em quantidades monetárias. E isto não implica que L seja igual a f, claro, né? Assim, oh, é que os valores -dados em horas de trabalho- que são iguais, depois de certas correções corriqueiras, foram fetichizados pelo mercado. E os preços de mercado que fetichizaram os valores emergiram precisamente da solução do problema de equações simultâneas que Marx buscou afanosamente lá no Livro III. Não é isto?
DdAB

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