19 outubro, 2009

Volumosas Referências Culturais

Querido Blog:
Postagem longa (pode fazer-se acompanhar de fofocas). Acima, vemos Veneza, o sol nasceu para todos (The sun also rises, é um título de Heminguay, Robert Cohen, na Espanha, cai e trata de recompor-se). Canaleto, canaletos, pintores, vielas, becos, passeios, o sol do verão, o frio do inverno, a água. Mare nostrum. Marca dágua. Mar ou lagoa? Laguna, dizque. Chatices.

Canaletto taí em cima, Veneza, pintores, Portinari, agnosticismo. Vejamos. Marca-d'água, Joseph Brodsky, CosacNaify, 2006. Tradução (excelente, que receberá comentários abaixo) de Júlio Castañon Guimarães, meu parente, pois meu nome também pode ser grafado com três acentos: Duílio de Ávila Bêrni). Talvez por isto é que entraram um travessão, um apóstrofo e um acento agudo na expressão original Watermark do título em inglês.

1987 pegou-me -22 anos atrás, portanto- um tanto distraído em outubro, o mês de minha preferência para viver o ano inteiro. Ainda assim, lembro da crise financeira japonesa em que sumiram US$ 5 trilhões de dólares, não repetiu-se a grande depressão e o mundo kept going round. Teve Prêmio Nobel de Economia, que me passou. E de literatura, Joseph Brodsky. Apenas ontem é que vim a registrar, de modo perene, que ele -Brodsky- laureou-se com esta honraria. E por que logo ontem? Pois foi o dia em que acabei de ler Marca-d'água e -depois de fazê-lo- li as duas 'orelhas'. Vi que já morreu, vi que era russo, vi que era dissidente do PCUS, vi que foi preso, vi que foi expulso da URSS, vi que fez carreira artística e acadêmica nos EUA. Como cheguei a Brodsky -e não Brodowsky-? Marinês Grando disse-me que Luiz Roberto Targa lhe disse que quem quere que seja que tenha ido, esteja ou deseje ver Veneza deve ler este livro. Li-o e fui-me afeiçoando gradativamente. No começo, não estava entendendo bemos contornos integrais e diferenciais da obra.

A postagem é longa. A primeira sentença do livro (p.9) é: "Muitas luas atrás, o dólar valia oitocentas e setenta liras e eu tinha trinta e dois anos." Primeiro, insurgi-me contra o autor ou o tradutor, que não terão assimilado os conhecimentos transmitidos no livro "Técnicas de Pesquisa em Economia; transformando curiosidade em conhecimento", (São Paulo: Saraiva, 2002, organizado por mim; lá diz 'autoria'), que recomendaria dizermos "Muitas luas atrás, o dólar valia 870 liras e eu tinha 32 anos." Seja como for, lembrei-me imediatamente do início de um conto de meu irmão Paulo Guedes: "Eram 7h00 da manhã e ela era feia", algo assim, que a memória cede espaço à vivacidade no olhar... Eu já sabia (a Econ. Grando me dissera tratar-se de um livro declarando amor a Veneza, amor conquistado por Joseph ainda na URSS, quando -disse ela- ele recebeu um cartão postal de seu irmão, em viagens ocidentais, o.s.l.t.. Mas o primeiro parágrafo acusa apenas que ele chegou "na cidade", sem declarar qual. Podia ser "Leningrado", assim grafada num romance de Josué Guimarães, o que teria antecedido até, creio, o nascimento de Vladimir Ilianov, pois a ambientação deste gaúcho buscava reconstituir eventos do século XIX, o Major Scherer, se me não falham as reminiscências São Petersburgo, cidade em que Joseph Brodsky nasceu, segundo a segunda orelha. Postagens longas são casca grossa. A primeira vez em que as seis letrinhas de Veneza são escritas ocorre na p.12, se lhe não pulei alguns canais antes...

Na p.10, já entendi que o tradutor sabe inglês e português, duas línguas fundamentais para quem quer ler na primeira e transcrever na segunda, coisa rara no plantel de tradutores brasileiros. Valtensir Dutra é um e Aulyle Rodrigues (Gonçalves?) é outra, para o clube dos destaques negativos. Ele já disse barbaridades que não lembro (parece até que, nuns rascunhos de posse de um menino de rua cuja autenticidade não testei, iria traduzir "O Capital", e entendeu que "a classe trabalhadora explora a classe capitalista"). Ela destruiu um texto maneiro de Edward Nell num livrinho da Editora Zahar sobre metodologia nas ciências sociais. E depois, só de pirraça, traduziu um livro cujo título em inglês é "O Médico" por "O Físico", um falso cognato dos mais elementares.

Seja como for, o bom tradutor de Joseph Brodsky marcou sua primeira bobeira na própria página de abertura, ou na seguinte. Pois vejamos. Na p.10, ele manda ver um rodapé para dizer quem é um Montale, que escreveu um poema. É uma referência cultural que não me atrapalharia a leitura, quem sou eu para pensar que sei os nomes e sobrenomes de todos os poetas vivos, mortos e por-vir? Esse troço de rodapés me cansa, pois já vi horrores. Por exemplo, invoquei-me com a página 16 lá de outro livro, que explica no rodapé o que é comprovinciana. Eu já disse que o melhor amigo do homem é o dicionário. E hoje nem olhei na Wikipedia o que é "montale", pela simples razão de que não acho que tenha a menor importância, para a questão das águas de Veneza, ou das volumosas referências culturais, tema desta longa -avisei, aviso, avisarei- postagem. Qual é o outro livro? Quem escreveu "comprovinciana"? O autor é Machado de Assis, himself, ao passo que o tradutor, epa, não é tradutor, apenas a dupla da "seleção, introdução, atividades e glossário", nomeadaemente, Sergius Gonzaga e João Armando Nicotti.

Qual meu problema com "comprovincianos"? É que acho que eles prejulgaram a ignorância do leitor de "Contos Definitivos", de M. de A., com a quinta edição (de 2004) pela Editora Leitura XXI, de Porto Alegre. Qual meu critério? O critério oficial que não usei, mas usarei num crítica que farei aos "Contos" de Simões Lopes, é ver um dicionário de palavras mais usadas e registrar apenas o que nele não consta. Por exemplo, eu diria que um ignorantão de porte ligeiramente maior do que o meu não se atrapalharia menos com "lisonja", nesta mesma página. Vou parar por aqui com relação ao conto "A Cartomante", pois já sabemos que vai pintar sujeira, na p.22, mas Machadão era volumoso culturalmente: na p.11 falou em odor di femina, prontamente traduzido pelos adaptadores como "cheiro de mulher", contrariando o próprio italiano "profumo di donna". de Victório Gassmann ou o "scent of woman", de Al Pacino...

Sigo com o tradutor de Joseph. Para um neguinho que ensina quem é Maledetto (não era isto?), não custaria ensinar o que é o Borsalino lá dele. Eu vi um filme chamado precisamente de "Borsalino", e pensei que fosse o nome do neguinho. Como o autor vestia uma "capa London Fog branca" e seu (lá dele autor) "Borsalino", pensei que não se tratasse de operação com matrizes ou receita de doce de abóbora (com lasquinhas de castanhas de caju, o que seja). A Wikipedia em português já respondeu, o que -otherwise- eu não iria procurar: devia ser o chapéu do velhinho. Agora chega também de meter a mão com o tradutor. Mas, já que estamos na língua italiana, não vou levá-lo totalmente aliviado, eu que comecei elogiando-o: "tradutore è tradittorre", mas ele é bom!

O livro seduziu-me completamente com a frase que usei como título da postagem de hoje. Ela, completa, está na p.49: "Eu gostava do [Ezra Pound no] original por seu frescor juvenil e seu verso tenso, por sua temática e diversidade estilística, por suas volumosas referências culturais, então fora de meu alcance." Claro que não entendo bem o que Joseph quer dizer com isto: Ezra dá rodapés dizendo o que é e onde se situa o Beaubourg (p.73)? Não creio ser bem esta a idéia. Se a Econ. Marines Gando não tivesse levado-me a ele, em 1977, e eu quisesse mesmo saber se isto é um crepe ou quepe (esta é da Lourdette...), iria para a Wikipedia. Por exemplo, ainda na p.11, tem a palavra "íctus", que eu desconhecia: "o próprio [...] que ocasionou esta civilização." Gostei, fui a meu melhor amigo, o Aurelião eletrônico:
[Do lat. ictus (nom.), 'marcação de compasso'.] S. m. 2 n. 1. V. icto. 2. Med. Choque (12), golpe, acesso, ou ataque súbito.Não tivesse olhado, continuaria achando que o livro era mesmo sobre o amor de Brodsky por Veneza, sô.

Tomemos outro exemplo, de meu conhecimento. Na p.15, ele fala em "um bando de ciclopes adormecidos". Se eu não conhecesse aquele blim-blim-blim do Polifemo, o Aurelião ou a Wikipedia matariam a questão. Onde foi mesmo que aprendi esses traços ulissescos? Talvez com Kirk Douglas, ou com o próprio Homero, sei lá. Não digo Kirk Douglas, mas Dirk Bogarde está no livro sendo resenhado (epa, isto não era "Vida Pessoal" etc.?). Claro que era obrigatório que o Joseph citasse o filme de Thomas Mann, ele -autor- que avisou que queria morrer em Veneza e que -não o conseguindo- fez-se lá enterrar (é o que diz a segunda orelha). Vida, felicidade e morte: são três temas do livro e -como tal- de meus pensamentos. Nesta parte de morte, pensei em que é mesmo que desejo, sob este ponto de vista da disposição de meu cadáver. Claro que doar os órgãos que ainda prestarem, uns dizem que sou um bocudo, logo pode ser que alguém se beneficie de um transplante.

Em outras palavras, estou entrando num assunto pesado pela lateral. Um dos pontos que eu desejava levantar é a questão da religiosidade do garoto soviético que virou Prêmio Nobel. Não gosto de referências religiosas fora do ambiente adequado. Carrego a antinomia de que:

.a. Deus não existe,
.b. o que nos impede de ficar tomando Seu Santo nome em vão.

Seja como for, parece-me casca grossa ficar dizendo "O Todo Poderoso", essas coisas, essas maiúsculas. Joseph o faz. Deixem-no, ainda assim. Seja como for, ao dar-me conta destas repetidas remissões à religião é que me veio à cabeça a rima de Brodsky com Brodowsky. E as aulas de história da arte (e mais que arte) que recebi de Luiz Lopes saltaram-me à memória de primeiro nível, um troço assim. Memória incompleta, por sinal, mas que me levou a dar uma viajada sincera na Wikipedia (as acima foram, digamos, estratégicas).

Liguei o todo poderoso com esse troço de que "eu também tou do lado de Jesus, só que acho que ele se esqueceu de dizer que na Terra a gente tem que arrumar um jeitinho prá viver". Com o comunismo, Stálin, com Minas Gerais, com a cultura, o Aleijadinho, o roubo de quadros de igreja, com o Portinari roubado (algum político, é evidente), mas -antes dele- com a Igreja da Pampulha. Disse Luiz Lopes que lá (era isto?) existem esculturas de Portinari (ou pinturas?) que têm pés enormes, indicando que o negócio (isto é, nega-se o ócio da contemplação estelar) é manter os pés bem aqui na terra: festa, trabalho e pão.

O Google Images não me deu os pés maiúsculos da Pampulha, o maior que achei está abaixo, mas antes dele, vemos o que não sei se é portinaresco, uma espécie de alegoria de Luiz Lopes, pois o santo está pisando num canteiro de terra, grama e flores.

Quer dizer, Brodsky rima com Brodowsky, que rima com Portinari, o homem que colocou os pés dos homens no chão ao tratarem com Deus.

Mas estas considerações estão longe de serem perfunctórias, pois volto à morte, à hora da morte. Sempre pensei em armar o maior banzé na hora de minha morte. Mas há alguns anos, andei mudando de idéia, achando que tudo pode ser feito discretamente. É por isto que achei ter entendido a frase da p.68: "É uma virtude, vim a acreditar há muito tempo, não fazer um drama a partir da vida emocional." Não sei se entendo, se bem entendo há dois desdobramentos:
.a. não devemos levar-nos excessivamente a sério
.b. devemos relativizar nossos dramas, que eles não são nada, quando comparados com o pior possível.

E nem quero dizer que o pior possível sejam as chamas eternas do inferno. À propos, ele cita uma amiga romana que ele diz que ela diz:

'A única coisa de que discordo em Dante ', costumava observar, 'é o modo como ele descreve o Inferno. Para mim, o Inferno é frio, muito frio. Eu manteria os círculos [lá do inferno dantesco], mas os faria de gelo, com a temperatura caindo a cassa espiral.'

Descontado o probleminha geométrico de que círculos e espirais são blim-blim-blins diferentes. Graças a Deus (epa, santo nome em vão...), a palavra 'blim-blim-blim' safou-me de mais uma, pois não disse o que são, o certo é que círculos são figuras, ao passo que espirais são linhas. A espiral está para a circunferência assim como o plano em que espiral assenta está para o plano em que o círculo assenta, se é que isto não é roubar nas comparações. Por contraste, vida, morte, felicidade, amor e arte fundem-se na seguinte sentença (p.76): "[...] esta cidade não tem condições para ser um museu, já que ela própria é uma obra de arte, a maior obra-prima que nossa espécie produziu." Se bem entendo, andar por Veneza, construções sobre a terra, pontes de suspiros e barcos sobre as águas, é andar por dentro de uma enorme escultura-pintura, uma obra de arte monumental, a mais charmosa de todas as já construídas pela humanidade.

Pois bem, esta postagem é longa e vou conter-me, uma vez que fiz anotações que me permitiriam multiplicar-lhe os toques digitados por, pelo menos 3,1416. E trazer imagens venezianas em número ainda maior, talvez um pi vezes um e, sei lá. Mas desejo concluí-la fechando o motto campineiro:
.a. viver como se fosse morrer amanhã
.b. estudar como se não fosse morrer nunca.
Lembro que há alguns anos, eu indagava a intelectuais que se queixavam de falta de que fazer durante o horário do expediente: "já leste todos os livros do mundo"? Era elaboração na linha do que postei sobre Erber e a impossibilidade, com nossos 10 mil anos de história, de lermos tudo o que está armazenado na Biblioteca Pública.

Ora, estudar não é apenas abdicar da ignorância, pois é a forma eficaz de enveredarmos pelos caminhos das chavelhas, das chaves e dos chavões (como este...) do entendimento do mundo e, como tal, principalmente de nós mesmos. No outro dia, falei em alguns conjuntos simples e poderosos, como
.a. modelo de equilíbrio geral walrasiano com contratos perfeitos
.b. modelo de contratos imperfeitos e suas implicações sobre as relações econômicas
.c. modelo de Marx da concorrência capitalista (o blim-blim-blim que o leva a pensar na queda da taxa de lucro, com a primeira decomposição de uma equação de definição feita por um indivíduo humano).

Mas no outro dia, sugeri a uma pessoa que gosta de Nietzche e de história da vida privada que procure enlaçar suas reflexões por meio do estudo lateral da teoria dos jogos. As interações humanas podem ser modeladas, da mesma forma que as interações entre dois -digamos- pássaros ou duas colônias de bactérias. Não que a teoria dos jogos a tudo salve, mas ela é uma forma encantadora de tomar velhas drágeas da sabedoria humana de formalizá-las, o que permite que usemos as regras da lógica para gerar mais proposições, a partir de certas premissas devidamente domesticadas.

Por fim, no outro dia, vi a postagem das 22h36min do blog de Marcelo de Oliveira Passos, do dia 12/out/2009, com uma referência maravilhosa a minhas coisas deste Planeta 23. Cito suas volumosas referências culturais, listando o que apresentou como sendo "[...] a regra da educação kantiana: primeiro a disciplina, depois a educação, a cultura e, por fim, o refinamento." A verdade é que já fui mais tosco e, mais que nunca, hoje entendo que devo estudar como se não fosse morrer nunca.
DdAB

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