27 dezembro, 2014

O Julgamento da Juíza: a vida imita a arte


Querido diário:

Sabem meus acompanhantes a opinião que formei sobre a eficiência do funcionamento do sistema judiciário brasileiro (do juiz do supremo tribunal ao porteiro do necrotério). O menor de meus pontos de objeção é que o estamento jurídico, por ganhar R$ 36 mil mensais, é suspeito para julgar uma população cuja renda per capita é de R$ 2 mil.

E quem sou eu para julgar todo um sistema? E para julgar uma juíza? No caso da juíza, julgá-la com apenas uma sentença (ou que nome tenha lá o expediente) de 50 palavras? Julgue-me o leitor do blog. Ela sentença está na capa de Zero Hora de hoje. Cito verbatim:

verifico que, como se cuida de homidício,
infração material que deixa
vestígios e, como inexiste qualquer prova
idônea que efetivamente demonstre a 
materialidade do delito, já que a autoridade 
policial não acostou ao expediente o atestado 
de óbito da vítima, na forma 
do art. 158 do CPP, 
inviável a homologação

Acho a juíza um tanto quanto como direi. E o delegado que não provou que a mulher estava mesmo morta? Mulher? Como sei isto? Delegado? Juíza? Jornal? Solipsismo? Sigamos Occam, ficando com a hipótese mais simples: a mulher foi mesmo morta por um motorista, ou melhor, não há saída, foi lançada de uma moto por um automóvel conduzido por um homem. A moto, que não respirava, permaneceu neste estado, a mulher, que o fazia, cessou de fazê-lo. Morreu? Como saber, como provar? Só mesmo alegando a veracidade das possibilidades literárias do evento (cito de memória).

.a. Moreira da Silva canta um samba de breque de acordo com o qual, a certa altura, "havia um cheiro de cadáver se espalhando". Ou seja, se havia cheiro, diria até mesmo David Hume, provavelmente havia um cadáver do qual o cheiro exalava.

.b. Mais assertivo, numa das novelas de Campos de Carvalho, nosso herói (que, se não me engano, a certa altura, mudou o nome e passou a chamar-se Ruy Barbo) encontra um cadáver à beira do Sena (ou que rio fosse lá o que margeava aquele "hotel"), e tenta vendê-lo, creio que a uma faculdade de medicina. O recepcionista pede um atestado de óbito, ao que redargúi nosso Ruy Barbo: "não é necessário, pois o homem está morto mesmo".

DdAB
Imagem daqui, recortada por mim. A juíza que, aparentemente não pensa ser deus, não sentiu o cheiro do cadáver, como a garota da imagem que selecionei ao pedir o verso da canção do Kid Morangueira.

P.S. Adendo de 31/dez/2014. Ainda no outro dia, olhei o código de processo penal de que nos fala a juíza que não sentiu o cheiro do cadáver (e se o tivesse sentido?). Diz esta iluminura da cultura brasileira o seguinte:

CAPÍTULO II
DO EXAME DO CORPO DE DELITO, E DAS PERÍCIAS EM GERAL
Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.
Art. 159. O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 1o Na falta de perito oficial, o exame será realizado por 2 (duas) pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 2o Os peritos não oficiais prestarão o compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 3o Serão facultadas ao Ministério Público, ao assistente de acusação, ao ofendido, ao querelante e ao acusado a formulação de quesitos e indicação de assistente técnico. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 4o O assistente técnico atuará a partir de sua admissão pelo juiz e após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelos peritos oficiais, sendo as partes intimadas desta decisão. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 5o Durante o curso do processo judicial, é permitido às partes, quanto à perícia: (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
I – requerer a oitiva dos peritos para esclarecerem a prova ou para responderem a quesitos, desde que o mandado de intimação e os quesitos ou questões a serem esclarecidas sejam encaminhados com antecedência mínima de 10 (dez) dias, podendo apresentar as respostas em laudo complementar; (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
II – indicar assistentes técnicos que poderão apresentar pareceres em prazo a ser fixado pelo juiz ou ser inquiridos em audiência. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 6o Havendo requerimento das partes, o material probatório que serviu de base à perícia será disponibilizado no ambiente do órgão oficial, que manterá sempre sua guarda, e na presença de perito oficial, para exame pelos assistentes, salvo se for impossível a sua conservação. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 7o Tratando-se de perícia complexa que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, poder-se-á designar a atuação de mais de um perito oficial, e a parte indicar mais de um assistente técnico. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
abcz

Pois bem: quem se dá o trabalho de ler tudo isto? Eu li e a conclusão é mesmo que a juíza é estranha e mais ainda, o sistema judiciário, que se vale de tal tipo de texto, só serve mesmo para nos incentivar a usar uma das exclamações cachoeirenses deste Planeta 23: só bebendo! Pois não é que me pareceu que a juíza não leu o artigo 159 e seu parágrafo primeiro. Ou foi o delegado? Ou a juíza estava de mal com o delegado e não pôde dialogar com ele para que a justiça fosse promovida, ou seja, para que, na ausência do perito, pintassem os dois diplomados, etc.? E fiquei a imaginar que ocorreria se o delegado escondesse o cadáver, dada a ausência do perito, o que evitaria a aquiescência do perito relativamente à morte do cadáver?

E, dado o adiantado da hora, acho que o negócio é mesmo beber champanha e esperar um 2015 menos avaro em matéria de promoção da sociedade igualitária.

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