10 novembro, 2014

A Chegada de "O Tempo e o Vento"


Querido diário:

Como bem sabemos, "O Tempo e o Vento" é a ciclópica (epa!) obra de Érico Veríssimo. "O Continente" veio a público em 1949, "O Retrato", em 1951 e "O Arquipélago", em 1961. Nessa época, eu ainda não era observador participante deste tipo de recorte. Na verdade li os sete volumes (2+2+3) das edições lá do final dos anos 1960s. E reli há poucos meses, talvez nem um ano. E relerei em breve novamente. Como sabemos -e este parágrafo recende ao marcador "Vida Pessoal"-, criei uma rotina de ler a obra completa de Érico nos sucessivos outono-invernos de minha vida.

OK. Talvez eu tenha lido "O Resto é Silêncio", um lindo título shakesperiano (sic) lá naqueles priscos anos de minha  vida. O certo é que adquiri o livro publicado em 1943 (o último antes de "O Continente") em 18/jun/2008 e terminei de lê-lo em 13/julho/2008. E o reli, começando em 18/jul/2014 e terminando em 1st/ago/2014. So what, como diria o próprio Érico, esmerado tradutor da língua de Shakespeare e vivente da cultura americana por vários períodos, um ou outro deles bastante prolongados, quando trabalhou na O.E.A. em Washington, D.C.?

Pois bem. Talvez na releitura deste ano eu tenha começado a anotar (será que sempre notei?) tiradas que -post factum- deixam-nos crer que Érico estava dando dicas sobre o que lhe ia na cabeça, projetos para o futuro. Destaco, claro, o que pude ler em "O Resto é Silêncio". Pois muito bem. Lá na página 158 de minha edição (Porto Alegre: Globo, 1981), diz o narrador onisciente:

A cena parecia passar-se ao mesmo tempo naquela praça de Porto Alegre e no pátio da casa de Tônio em Sacramento.

Ou seja, Tônio nasceu em Sacramento! Sacramento? Tônio? Sim, claro, o romancista que centra um dos polos da história da garota que se jogou (ou foi jogada?) de um edifício na "Rua da Praia" em Porto Alegre e, assumidamente, testemunhado por Érico. Bons tempos em que a "Rua da Praia" e o restante da cidade de Porto Alegre não tinham uma camada de lixo que amorteceria qualquer queda, impedindo os suicídios...

O mesmo nome da República do Sacramento, a terra de Gabriel Heliodoro, o embaixador do título de Sacramento em Washington, D.C., se esta frase não é estranha... Gabriel é um dos sóis de um sistema binário em que o outro é Pablo Ortega, também angustiado, também escritor, também Érico.

Em outras palavras, não foi agora que chegou "O Tempo e o Vento", que já chegara muito antes, mas não é impossível que Érico tenha ido buscar o nome da republiqueta de bananas precisamente no que lhe ia pela alma 20 anos antes. Não é à toa que, duas páginas depois, Érico de "O Resto é Silêncio" vai falar da torre d'O Sobrado de "O Continente", peça importantíssima para o desenvolvimento de toda trama, ou melhor de ambas as tramas, a de nosso livro de hoje e de "O Tempo e o Vento". Portanto:

Número dois. Página 160. Olha só:

   No meio desse mundo [lá o dele...] Tônio crescera caladão e pensativo. A morada dos Santiagos fora construída em 1850, pelo pai de vovô Leonardo, um homem de fantasia excitada e gestos quixotescos. Mandara erguer no centro da casa uma torre da altura do campanário da igreja local; 'Pra quê, seu Mingote?' - perguntaram-lhe. E ele respondeu: 'Pra lá de cima eu olhar a estrada e ver quem vem vindo. Se é inimigo, apronto a minha pistola. Se é amigo, mando preparar a cama e aquentar a água pro chimarrão'. Em Sacramento a casa dos Santiagos ficou sendo conhecida pelo nome de 'a Torre'.

Vou parar e comentar. Primeiro eu já notara que ele não coloca vírgulas que hoje nos são familiares, como a que omiti entre "primeiro" e "eu já notara". Segundo, lá n'O Sobrado, também amigos eram identificados na Torre e inimigos eram observados e rechaçados, quando fosse o caso. Olha "os Santiagos". Lembrar disto, ao reler "O Resto é Silêncio" permitiu-me dizer que se tratava mesmo de uma releitura, pois fiquei com esta imagem daqui e de outras obras de Érico, que faz o adjetivo concordar com o substantivo, como hoje em dia não mais fazemos. Eu, primeiro, achara pernóstico, meio americanizado em excesso. E depois fiz o raciocínio que acabo de repetir: se o adjetivo está no plural só pode ser que o substantivo que o rege esteja no plural, não é mesmo? Novo parágrafo:

   A respeito dela ['a Torre'] Tônio ouvia contar histórias que lhe eram gratas à imaginação. Dizia-se que um remoto Santiago, desgostoso com a morte da mulher, passara vinte anos enclausurado na torre sem descer, sem receber amigos e sem mesmo olhar para a rua. Só deixara o sombrio refúgio depois de morto, metido num esquife fechado. Corria também de boca em boca a história dum tio-avô solitário e esquisitão, que costumava ir encerrar-se no quarto da torre, ficando lá dentro horas e horas, num absoluto silêncio. Quando tornava a descer, vinha assobiando baixinho, de olho alegre. O que ele fazia assim escondido, ninguém sabia com certeza. 'Vai contar dinheiro...' - afirmavam uns. 'Não - retrucavam outros - ele deve ter um vício secreto. Um dia, acharam-no morto, caído de borco sobre a mesa, por cima dum papel escrito. Julgaram que fosse um testamento. Era apenas um soneto. Encontraram ao pé do defunto, num baú de lata, maços e maços de papeis com versos. O homem se fechava para fazer 'aquilo', e não dizia a ninguém!

   Mas entre todas as histórias da família, a de que Tônio mais gostava era aquela espécie de lenda que se tecera em torno de tia Glória, uma velhinha magra, de voz branda, gestos duma delicadeza acanhada e um sorriso permanente na boca de lábios murchos. Contava-se que aos dezesseis anos ficara noiva dum capitão. Veio, porém , a guerra com o Paraguay e o noivo marchou para a frente de batalha com o seu regimento de lanceiros. Um ano depois chegou a Sacramento a notícia de que ele havia desaparecido na ação. Morto? Prisioneiro? Ninguém sabia. Um sargento que voltara mutilado, garantia tê-lo visto traspassado por um tiro. Mas tia Glorinha recusou-se a botar luto. 'Tenho o pressentimento de que ele vai voltar...' - dizia ela com seu sorriso tímido. Todas as tardes subia ao mirante da torre e lá ficava até o anoitecer, escrutando a estrada, esperando avistar o vulto do seu cavaleiro, do seu belo capitão de barba castanha. Fez isso todas as tardes, durante quase trinta anos. Depois, não teve mais forças para subir as escadas da torre e, caduca, começou a confundir o noivo com o rei Dom Sebastião de Portugal. Tônio guardava ainda uma doce lembrança dessa tia quase lendária, cujo retrato ainda conservava. Recordava-se de tê-la visto um dia encolhida e enrolada num xale, junto duma vidraça, mascando fumo e olhando a chuva de setembro cair lá fora...

   Para Tônio a torre era um território mágico. Gostava de sua sala circular, de suas paredes onde o tempo, a umidade e a poeira haviam desenhado figuras fantásticas. Os móveis antigos (céus, aquele espelho de moldura bronzeada dava à gente medo de se mirar nele), os móveis também tinham uma fisionomia particular que não era bem deste mundo; contavam histórias, prometiam segredos. Para a imaginação de Tônio a torre era sucessivamente o esconderijo do tesouro dum pirata, refúgio dum gênio bom, farol, ilha, barco, balão... Uma hora era o deserto africano, na outra transformava-se numa cidade da China, num navio perdido no mar ou num planeta povoado de monstros. Tônio enfurnava-se na torre para ler novelas e folhetins, velhas brochuras amareladas com cheiro de coisa antiga. João de Calais e a Princesa Magalona, Os Três Mosqueteiros, Cinco Semanas em Balão...

   Quando o pai e a mãe ralhavam com ele, ou quando alguma tristeza ou preocupação o assaltava, era na torre que ia chorar as mágoas, desabafar a cólera ou esquecer os cuidados. Descia de lá de alma leve, alegre ,feliz, novo...

   Mas não era sempre que gostava de subir para o refúgio.; A maior parte do tempo vivia fascinado pelo movimento da casa, pelas pessoas com quem vivia Tinha um desejo permanente e alvoroçado de conhecê-las melhor, de saber como eram por dentro. Acariciava a esperança de apanhá-las um dia num movimento desprevenido e descobrir-lhes os segredos mais íntimos.

E segue ainda alguns parágrafos falando do casarão. Tia Glória, velhinha, esperando um noivo perdido na guerra do Paraguay? Capitão? Guerra do Paraguay? Estamos falando de um proto-capitão Rodrigo! Mascando fumo, caduca? Só podia ter inspirado a velha Bibiana. O espelho que até dava medo? Seria a proto-pintura de "O Retrato"? E o próprio Tônio não é Érico, da mesma forma que Florêncio, Pablo e tantos intelectuais de seus futuros romances?

Olha a página 170:

   Talvez eu possa escrever o romance dessa pobre menina. Uma história humana, compreensiva...
   Mas uma outra parte de seu eu exclamou: O que queres é apenas pretexto para um livro. Confessa que te alegras com os dramas do mundo, pois sem eles não alimentarias o teu apetite de contador de histórias.

Olha só: Érico viu o salto da moça para o abismo da Praça Senador Florêncio [Florêncio???], como ele mesmo diz no prólogo do romance, terá percebido o silêncio que restou. Fez Tônio fazer sua autocrítica, como volta e meia as personagens alter do narrador fizeram, fariam, seu voyareurismo confessado no trecho que transcrevi.

Página 211-2. Falei em Rodrigo Cambará, no capitão Rodrigo? Pois olha:

Aristides não respondeu. Era justamente aquilo o que ele temia. Imaginava o velho na estância do Cambará, querendo mandar em tudo, entrando em conflito com o capataz, despedindo empregados e - quem sabe? - criando casos com os vizinhos.

Estância Cambará? Sobrenome de Rodrigo? Very suspicious... E que vem mais?



Página 318:

[...] Às vezes [Tônio] ficava eufórico, comunicativo, desejoso de ver gente, de falar com as pessoas, de dizer-lhes coisas agradáveis. Eram os momentos em que predominavam os Santiagos, espadachins imaginosos até a mitomania; os Santiagos homens de sociedade (e nem por isso menos personalistas) que sabiam ser amáveis e fazer-se queridos. Em muitas horas, porém, Tônio sentia no sangue os antepassados do lado materno. Os Terras eram bisonhos homens do campo, práticos e secos, destituídos de imaginação, fanáticos do trabalho, da honra e do cumprimento do dever.

Pois não é direto o Florêncio? O próprio dr. Rodrigo, o capitão Rodrigo? Mitômano? Pois aí temos declaradamente o prof. Libindo, mitômano de "Incidente em Antares" e os Terras, antepassados do lado materno. Os Terras? Pode ser mais "O Tempo e o Vento", Juvenal, Flora, a mãe de Floriano? Pois então, para concluir:

Página 401, sabendo que o livro termina na p.407:

   Ao embalo da música ( o scherzo tinha ainda uma nota melancólica; era a alegria constrangida do homem que pressente os instantes dramáticos que estão para vir) o romancista [nomeadamente, Antonio Santiago, Tônho] ficou a pensar na qualidade novelesca da vida e na misteriosa riqueza daquele minuto - soma de milhões de outros momentos através do tempo e do espaço, dos sonhos e das almas.

   No princípio eram as coxilhas e planícies desoladas, por onde os índios vagueavam nas suas guerras e lidas. Depois tinham vindo os primeiros missionários; mais tarde, os bandeirantes e muitos anos depois os açorianos. Sob o claro céu do sul processara-se a mistura das raças. Travaram-se lutas. Fundaram-se estâncias e aldeamentos. Ergueram-=se igrejas. Surgiram os primeiros mártires, os primeiros heróis, os primeiros santos...

   Passeando o olhar pelo teatro, Tônio pensava na distância que ia do primitivo "Presídio do Rio Grande" àquele exato momento em que remotos descendentes de índios, portugueses, paulistas e espanhóis escutavam o allegro da Quinta Sinfonia. Como podia alguém dizer que a vida era monótona e sem sentido? Para verificar o absurdo dessa afirmação, bastava examinar o conteúdo de cada simples segundo.

   Muitas vezes, nas suas horas de cepticismo, Tônio sentira-se inclinado a dizer que sua geração havia herdado dos antepassados apenas retratos de generais e estâncias hipotecadas. Mas não! era uma afirmativa falsa, além de literária. Os retratos de generais valiam como História. A hipoteca das estâncias podia ter um sentido social, pois talvez significasse o princípio do fim do latifúndio.

   Quantos milhares de homens tinham lutado, sofrido e morrido para mante a fronteiras da pátria? Que soma de sacrifício, de fé, esperança e coragem havia sido necessária para que o Brasil continuasse como território e como nação?

   Sim, ele não devia esquecer os homens que tinham construído cidades e desbravado sertões, repelido o invasor e criado ou consolidado uma tradição.

   A essas reflexões o espírito de Tônio se enchia de quadros e cenas, vultos e clamores. Ele via o primeiro trigal e a primeira charqueada. Pensava na solidão das fazendas e ranchos perdidos nos escampados, nas mulheres de olhos tristes a esperar os maridos que tinham ido para a guerra ou para a áspera faina do campo. Imaginava os invernos de minuano, as madrugadas de geada, as soalheiras do verão e a glória das primaveras. As lendas que iam surgindo nos matos, nas canhadas nos socavões da serra, nos aldeamentos dos índios e nas missões. As povoações novas que surgiam e as antigas que cresciam, transformando-se em cidade. Refletia também sobre o fascínio das planuras largas que convidavam às arrancadas e à vida andarenga. E sobre a rude monotonia da rotina campeira - parar rodeio, laçar, domar, carnear, marcar, tropear, arrotear a terra, plantar, esperar, colher. Pensava também na luta do homem contra os elementos e as pragas. Por sobre tudo isso, sempre e sempre o vento e a solidão, os horizontes sem fim e o tempo. A cada passo, o perigo da invasão, o tropel das revoluções e das guerras. E ainda as criaturas tristes e pacientes esperando, vendo o tempo passar com o vento, e o vento agitar os coqueiros e os coqueiros acenar para as distâncias.

   Havia ainda mulheres de luto pelos homens mortos na última guerra quando chegaram os primeiros colonos da Alemanha e mais tarde da Itália. De novo processaram-se mistura. Vieram novas revoluções. Cresceram as cidades e os cemitérios. Os primeiros trilhos da estrada de ferro foram deitados no solo do Rio Grande. Ergueram-se os primeiros postes telegráficos. E o vento eterno levou para as nuvens a fumaça das locomotivas.

[...]

   Tônho olhou para [sua caçula filha] Rita. Por parte de Lívia [sua esposa], corria nas veias da menina sangue italiano e alemão, de mistura com o sangue do negociante Mingote Santiago e do tropeiro Simeão Terra, descendente dos índios minuanos. Não seria de admirar se aquela criaturinha de pele de leite e olhos azuis fizesse um gesto, dissesse uma palavra ou tivesse um desejo que lembrasse os remotíssimos ancestrais que havia trezentos anos andavam a cavalgar potros semi-selvagens e a bolear avestruzes nas campinas do Quaraí.

"Através do tempo?" O tempo e o vento? Lívia com ascendentes alemães e italianos não seria, agora vem biografia novamente, Mafalda, a esposa de Érico? Tropeiro Simeão Terra? Tá na hora de parar. Depois de "O Resto é Silêncio", Érico publicou "A Volta do Gato Preto", relato da segunda viagem aos Estados Unidos, em 1946. E lembremos o que já referi, publicou "O Continente" em 1949.

DdAB
Esta capa feinha é a de meu próprio livro.

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