Querido Blog:
Conversando tecladamente com o Prof. Sílvio dos Santos, consagrado pedagogo da Ciência Matemática, decidi expandir minhas reflexões sobre a medição da felicidade exibida em posts anteriores. Achei que nada seria melhor para ilustrá-las o que a figura acima, que retirei de
http://www.colegiosaofrancisco.com.br/, via Google-Images, com escala mudada. Já sou cliente. Senão vejamos.
O mundo se divide em objetos que podem ser apenas contadas ou objetos que, além de contados, também podem ser medidos. Pelo menos foi isto o que me levou a crer o texto correspondente (que referencio em Planos de Ensino de várias disciplinas que tive a ventura de ministrar) de Siegel, em seu nice and charming livro "Estatística Não-Paramétrica".
OK, claro que talvez o mundo dos objetos também seja composto de coisas que não podem nem mesmo ser contadas.
E isto é uma idéia que não entendo bem. Qual seria, neste caso, o mundo que abrange tanto o-mundo-dos-objetos quanto o mundo-dos-não-objetos, ou seja, o mundo que abrange todos os mundos possíveis? Isto nos remete ao platonesco Teeteto. Se falo em sonetos, por exemplo, que isto tem a ver com "contar" ou "medir"? Acho que posso contar o número de sonetos feitos por Camões, ou por quem lá seja, o número de sílabas em cada um dos versos, letras em sílabas, o que seja. Mas talvez o conceito de soneto é que não seja passível de contagem. Creio não evadir-me da questão caso diga que o "conceito de soneto" é algo sequer passível de contagem, ainda que possa contar quantos sonetos Camões digitou, se é que havia computadores naqueles tempos... Ou seja, o conceito de soneto não é um objeto e, como tal, não pode ser medido. Um triângulo é um objeto e, como tal, podemos contar quantos triângulos podemos imaginar em 25seg ou medir-lhes a extensão dos lados, a área etc..
Deixemos estar e sigamos com o mundo dos objetos, selecionando apenas um de seus aspectos, o de sua mensurabilidade, descartando outras, como a da materialidade, coloração, contingencialidade, e por aí vai. Então, vamos às coisas que podem ser contadas, mas não medidas. O exemplo tradicional é caso dos endereços de meus amigos em minha agenda: sei quantos endereços tenho, quantos amigos tenho, quantos amigos moram no mesmo endereço e tudo o mais. Mas não tenho informação (pelo menos não direta) sobre, digamos, qual dos amigos mora mais perto de minha casa, da Churrascaria Barranco, e por aí vai.
Mas, quando falo em distância, estou contando e medindo simultaneamente, ou -para direcionarmos o assunto- estou usando uma escala de medida para hierarquizar as distâncias de minha casa à de meus amigos. À escala de medida que mede distâncias, quilos, lucros, preços, dedos-da-mão dá-se o nome de "escala racional". A palavra racional originando-se no substantivo razão que -no caso- quer dizer apenas o resultado da divisão de um número por outro. Ou seja, sempre que divido um número por outro, ele está expressando a medida de alguma coisa que obedece a escala racional. Como vemos, esta escala é muito mais rica em conteúdo informacional do que a simples contagem dos amigos. A escala que uso para associar nomes de amigos com seus números telefônicos (dias de aniversário etc.) é chamada de escala nominal. Temos, presumo, o nome do amigo associado a um número despido de significado "numérico". Ou nem mesmo "numérico", pois posso ter Ana-Aquário; Beto-Câncer; César-Leão e por aí vai.
Também posso usar outra escala de medida mais rica do que a simples contagem, mas não tão rica quanto a escala racional. Esta descreve uma forma de medir mais sofisticada do que a simples contagem, ainda que detentora de conteúdo informacional mais pobre do que as medidas passíveis de aferição por meio da escala racional. Neste caso, por exemplo, posso classificar as distâncias entre minha casa e a dos já cansados amigos, entre, digamos, "amigos que moram perto" e "amigos que moram longe". Esta escala é chamada de escala ordinal, pois ela está ordenando as distâncias. Se a, b e c são números, posso usar relações de equivalência, como o >, o < o =",">b, b=c, algo assim. E se A, B e C são, digamos, três mercadorias, ainda que eu prefira abacates a bananas, não posso dizer que A > B, pois a relação de preferências entre duas mercadorias que supostamente estou prestes a consumir (ou escolher) não se expressa por meio de variáveis numéricas, mas de variáveis que obedecem apenas à escala ordinal. Claro que posso dizer que prefiro Queijo a Risoto, o que não quer dizer que Q > R. Posso expressar a relação entre Q e R simbolicamente, por exemplo como Q p R, querendo dizer simplesmente isto: neste momento, prefiro queijo a risoto.
Se eu sei que as distâncias das casas de Ana, Beto e César a minha própria casa são de 30, 8 e 2 blocos, claro que posso dizer que 30 > 8 > 2, ou seja, César mora pertinho e Ana mora longe. Naturalmente, a primeira informação (Beto mora a oito blocos de minha casa e César mora a apenas dois) tem conteúdo informacional maior do que a proposição "Beto mora mais longe".
A escala ordinal tem maior sentido ao ser usada quando estamos medindo (usando o termo num sentido elástico, pois diria que mesmo a contagem é uma forma de medida) outros fenômenos (economistas falam em preferências, mas poderíamos pensar em outras variáveis, como amor, cobiça, sei lá), como a felicidade. Ou seja, ainda que eu possa dizer -como o faço na falação corrente- que Beto mora mais longe, quando digo que 8 > 2, estou dizendo que Beto mora mais longe e muito mais do que isto.
Mas se indago: "quem é mais feliz, a vaca Daslu ou o Dudu?", identifico dois objetos, a vaca e o Dudu. Além do mais, posso pensar que ela é mais feliz ou menos feliz ou igualmente feliz que ele. Além disto, se -digamos- Daslu é mais feliz que Dudu e este é mais feliz do que um pote de leite, poderemos dizer -usando a propriedade da transitividade- que Daslu é mais feliz do que o pote? Claro que estou falando de dois problemas:
.a. posso medir a felicidade (em geral) usando uma escala ordinal?
.b. posso comparar as medidas de felicidade que encontrei para a vaca e para o Dudu?
Em alguns casos, a comparação é complicada, mas em outros é elementar. Por exemplo, prefiro a primeira alternativa e duvido que alguém prefira a segunda (exemplo de Hargreaves-Heap e Varouvakis):
.a. passar as férias em Veneza
.b. ser frito em óleo quente.
Pendência e reelaborações: ainda não falei (está pendendo) na escala intervalar, que mede temperatura, quociente intelectual e, para economistas desde von Neumann, a utilidade esperada. Neste caso, claro que posso dizer que ontem esteve mais quente do que hoje -se for o caso-, mas não posso dizer que, se ontem fez 22 graus centígrados, a temperatura foi o dobro da de hoje, que aqueceu-se apenas a 11 graus. A escala intervalar tem significado apenas para as diferenças. Neste caso, o delta temperatura é que nos interessa. Posso dizer, por exemplo, que a temperatura cairá ou subirá de tantos graus. A luta pela conquista de uma medida de temperatura (von Neumann fala inclusive na dificuldade que os antigos tiveram de diferenciar temperatura e calor) é um dos capítulos fascinantes da história da ciência.
Comentário final: uma vez que posso conceber que a felicidade depende de algumas variáveis conhecidas, por exemplo, meus rendimentos, a auto-avaliação de meu estado de espírito e a avaliação que terceiros fazem de meu grau de felicidade, permito-me combinar estas variáveis e dizer que o resultado da combinação é um índice que mede felicidade. Ou seja, ainda que ela própria -a felicidade- obedeça apenas a uma escala ordinal (e ainda assim talvez não muito inclinada a aceitar comparações interpessoais), o índice que dela derivo também se presta a gerar informação mensurada na escala intervalar. por exemplo, sou proibido de dizer que a felicidade de César aumentou 23,45% quando ele ficou noivo, mas tenho direito legal de dizer que o índice que lhe mede a felicidade aumentou neste montante, se for o caso. Insistindo: 22 graus centígrados não é um índice que mede temperatura, mas é diretamente a medida. Por isto não posso dividir um pelo outro. Seria pior ainda se eu quisesse dividir > por <, encontrar, digamos 123,45 e não desconfiar de nada... Beijos al contado
DdAB
4 comentários:
Pobre Dudu! Ainda tem a ilusão de que tudo pode medir, de que tudo pode entender. O homem só pode entender as coisas mais simples, como a Matemática. Algumas coisas, sempre as feitas pelo próprio homem, têm maior quantidade de Matemática, daí que as entendamos um pouquinho mais; outras, feitas por Deus, jamais entenderemos. ENTENDEMOS OS MODELOS E NÃO OS OBJETOS DE NOSSOS ESTUDOS. A Matemática, na qualidade de uma de nossas criações, e não necessitando de confronto com o mundo, é a única coisa que podemos entender. Mas, quando tentamos aplicá-la aos fenômenos da natureza, temos, no máximo, aproximações, sempre muito grosseiras quando o objeto não é produto do próprio homem. (Sílvio)
Caro/a Sílvio e Ana:
Como sabemos,
M: todo economista é pobre de espírito
m: ora, Dudu é economista
C: logo, Duilio é pobre de espírito.
Este silogismo é válido? Não tenho a ilusão de que tudo pode ser entendido. Ainda assim, distancio-me do nihilismo. Aceito que terá proveito dividirmos o mundo das verdades em:
.a. verdades lógico-matemáticas
.b. verdades factuais.
As ciências empíricas (física, antrolopogia), por serem factuais, requerem uma adaptação ao conceito de verdade, pois tratam de fenômenos contingentes. Mesmo que o Universo seja apoiético, ainda assim, ele deve ser considerado contingente? Ainda assim, a física talvez nunca chegue a uma explicação final. /DdAB/
Mais sobre a finitude humana e os limites de seu conhecimento: o homem já entende coisas muito mais refinadas do que as que encontra ao alcance de seus sentidos (e.g., o que resulta da radioastronomia, conhecimento -digamos- gerado por bens de capital, como os telescópios, programas de computador etc.). Mas insisto no ponto: podemos pensar que tudo pode ser contado ou medido, desde que nos conformemos em usar escalas de medida de diferentes conteúdos informacionais.
DdAB
Terceiro:
Sobre os limites da modelagem feita pelo homem: com a palavra Henri Theil. "Models are to be used, not to be believed". Diga lá, Sílvio: supondo que o Universo seja constituído por quatro dimensões (matéria, energia, espaço e tempo), que acontece se congelarmos o tempo? Também congelamo-nos no Nada?
DdAB
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