31 julho, 2020

Filosofia de Iniciante sobre o Covid-19


Os dias passam como se tivessem 168 horas.
As semanas passam como se tivessem 24 horas.

DdAB
Esta filosofada publiquei-a ontem no Facebook. E nosso Pensador segue ativo.

27 julho, 2020

Quimeras: Laura Carvalho x Zero Hora

A misteriosa lenda da Quimera - O Verso do Inverso

Primeiro veio Jessé Souza dizendo que a tolice da intelligentsia brasileira é não conseguir entender que o verdadeiro problema do Brasil é a desigualdade. Felizmente pensei algo parecido muito antes de ler o livro dele.

Antes dele, contudo, tudo começou quando lecionei pela primeira vez macroeconomia em meados dos anos 1980. Aquela macroeconomia sumiu dos livros texto, mas ficou para mim a herança de forçar-me a estudar profundamente o funcionamento do mercado de trabalho e associar a questão do crescimento com a distribuição da renda. 

Crescimento e distribuição da renda são as áreas que a profa. Laura Carvalho referiu em, sempre ela,

Zero Hora, sábado e domingo, 25 e 26 de julho de 2020.
CADERNO doc 
Entrevista com a profa. LAURA CARVALHO 

Não me considero desenvolvimentista, no sentido compreendido no Brasil a partir das experiências dos anos 1960 e 1970, essa visão industrialista da economia, com isso não me identifico.

Mas ainda faltava algo para mim. Primeiro andei espalhando ter sido enganado por familiares, amigos e professores (da graduação, concluída em 1972), que me levaram a pensar que em meu horizonte de vida, iria viver em um país rico. Talvez implicitamente se falasse em maior igualdade, mas talvez esses familiares e amigos não tivessem consciência de que aquela pobreza que viam nas ruas ou que batiam-lhes às portas de que tudo aquilo respondia a ações humanas e não a maldições celestiais.

Pois não é que não foi que eu também, depois de certa idade e certo grau de educação, comecei a alardear que o Brasil iria desenvolver-se em nosso horizonte de vida. Era mentira! Hoje sei que era mentira. Hoje sei que estamos condenados a pelo menos duas décadas de continuação do modelo desigual e hoje de crescimento rastejante. Isto se a mudança começar a ocorrer amanhã. Como amanhã não ocorrerá nada relevante, então passamos a 20 anos + 1 dia...

Hoje entendo que o mercado de trabalho não pode ser convocado para ajudar a encaminhar a solução da encrenca. Não haverá, como nunca houve, emprego para todos. Aquela quimera da incorporação de capital humano para resolver o problema também, como alertou-me o prof. Cássio Calvete, é fria, pois se todos incorporam, digamos, 45 graus de capital humano, todos ficam no mesmo patamar relativamente aos demais e o desemprego não é abalado. Provavelmente esse ganho de educação tão generalizado implicará um empuxo na sonolenta economia, com um ganho geral de produtividade, mas isto é outra questão que apenas muito tenuemente tem a ver com a solução do problema distributivo por meio do mercado de trabalho. Por outro lado, o crescimento econômico, mesmo com a relação produto/capital vigente, não terá dinheiro suficiente para encaminhar um investimento que empregue todos os 20 milhões de detentores de empregos precários.

Por isso é que apoio desde que ouvi falar a renda básica universal (com implantação gradativa), os fake jobs, empregos estatais na Comissão Comunitária Municipal. E, no mercado de trabalho formal, menos dias de serviço na semana, começando com quatro e, depois de, digamos, 10 anos, reduzindo para três, e assim por diante, para trás, até um ou meio. Jornadas de trabalho mais curtas. Mais dias de férias por ano. Entrada tardia no mercado de trabalho. Saída precoce do mercado de trabalho.

E tem mais. No início de 2010, quando comecei a ver notícias da "reprimarização" com mais frequência, fiquei bastante incomodado, pois desde sempre entendi que o "novo setor primário brasileiro" -soja, boi, minério, petróleo, e por aí vai- nada tem de "primário". Primeiro, a soja tropical é um produto do setor serviços, laboratórios e escritórios da Embrapa, o minério é extraído com tecnologias de deixar aqueles bandeirantes cheios de inveja. Segundo, aí começa minha peroração contra a indústria como fetiche de certos economistas identificados com a "visão industrialista da economia", tão distante do ideal de política de governo da profa. Laura.

E como vim a entender isto? Foi num paper tentando entender se havia mesmo desindustrialização que constatei que precisamente os setores de serviços configurando bens públicos (saúde, saneamento, segurança, etc.) e bens de mérito (educação, saúde) são os que detêm a chave não apenas de parte do emprego hoje ocioso (professores, enfermeiros, policiais, etc.). Naquele endeavour (uso o inglês para dar caráter científico ao que vou dizer...), vim a entender também que aquela quimera de valorizar a indústria por causa de seus elevados encadeamentos é... quimera. Isto porque um pila gasto em elevação da demanda final da educação gera o mesmo volume de insumos primários, mesmo que com baixos encadeamentos. E a química, com elevadíssimos encadeamentos, também gera o mesmo 1 pila, se sua demanda final se eleva em uma unidade.

Q.Q.D.

DdAB
P.S. Para termos uma ideia de como as quimeras assustam as criancinhas, estou apresentando aquele bicho louco lá em cima: parece a alma de Bolsonaro.

22 julho, 2020

Filosofia em Drágeas


Dias atrás, para meu indizível contentamento, fui indagado sobre o que se deve ler para iniciar os estudos de filosofia. Eu, logo eu, que vivo dizendo ser especialista em "Introdução à Filosofia". Bem, ok, o fato é que tive/tenho uma professora que é verdadeira mestra e doutora no ramo: Brena Fernandez. Ela, um bom tempo atrás, indicou-me o livro

NAGEL, Thomas (2007) Uma breve introdução à Filosofia. São Paulo: Martins Fontes.

Li uma, li duas, li três vezes, volta e meia releio esta linda obra que fala em problemas filosóficos, mas deixa intocada a história da filosofia, como fazem tantos outros autores de livros introdutórios. Quer saber quem foi Sócrates ou Plotino? Procure em outro canto. Mas eu tenho uma sugestão sobre em qual canto do palacete do saber procurar mais sobre o assunto. Há anos (afinal, tenho 73...) achei naquele SóLer ou SóDeLer da Rua Senhor dos Passos de Porto Alegre uma obra que veio a juntar-se a outra, também comprada de segunda mão:

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires (2009) Filosofando; introdução à filosofia. 4ed. São Paulo: Moderna.

COTRIM, Gilberto e FERNANDES, Mirna (2010). Fundamentos de filosofia. São Paulo: Saraiva.

Resta-nos responder a pergunta: "mas tchê tu tem cara de pau para ficar indicando livros para quem quer começar a estudar filosofia?" A resposta é: foi a Brena. E, no quarto da frente daquele palacete do saber, tenho uma lição que o prof. Enéas de Souza passou a mim e a de seus outros epígonos também muitos anos atrás. Em certa medida, a indicação de Enéas é mais barata que a que agora passo à rede deste blog. 

Disse-nos o consagrado professor de filosofia, economia, cinema e outras especializações que seria fastidioso citar: 

Queres estudar filosofia? que poderia haver de melhor que o livro que tens mais próximo a tuas mãos? Ao lê-lo, verás temas e debates que certamente te levarão a outros temas e debates e nunca chegarás à resposta final. A filosofia não dá resposta final. Mas, depois de algum tempo de boas leituras, poderás fazer um plano verdadeiramente teu par seguir os estudos.

Mais uma palavra sobre minhas duas indicações adicionais ao nome de Thomas Nagel. Quando encontrei o primeiro desses livros no alfarrabista citado, vim a entender a importância que pessoas intelectualmente educadas e eticamente decentes dão ao ensino da filosofia no nível médio. Aliás, este é o público a que Thomas Nagel se dirige. Os dois livros são duas verdadeiras obras de arte, o primeiro deles postando-se em ligeira posição de destaque relativamente ao segundo: forma e conteúdo, id est, pura arte.

Pois tem mais para o novato no campo, coisa que não sou, como sabemos, pois já li uns bons 20 ou 30 livros deste nível e as tentativas que fiz de ler algo mais refinado deram, por assim dizer, com os burros nágua. Seja como for, farei o registro de dois deles, conforme ensinou-me Eduardo Grijó.

O primeiro que representa uma survey da filosofia pré-modernista:

CIRNE-LIMA, Carlos Roberto (2003) Dialética para principiantes. 3ed. São Leopoldo: Unisinos. [Já tem mais outras edições também da Unisinos.]

O segundo faz a survey da filosofia contemporânea, conforme a percebe um expoente da filosofia analítica.

RORTY, Richard (1988) A filosofia e o espelho da natureza. Lisboa: Dom Quixote. [Tem tradução brasileira pela Relume-Dumará, livro feiinho que nem mesmo tem um índice analítico.]

Pois então, e apenas então pois então. E, falei em Sócrates e Plotino. Quem são? Não precisamos ir longe para saber. Basta olhar a Wikipedia. Mas quem quer algo mais substancioso sobre montes de assuntos da filosofia pode procurar a Stanford Encyclopedia of Philosophy (aqui).

Claro que, com esse monte de referências que estou dando e as duas de consulta, não precisamos esperar declarar-nos Doctors of Philosophy antes de muito esforço. Em meu caso, declaro-me especialista, como acabamos de ler anteriormente, em "Introdução à Filosofia". E até posso citar um complemento especialmente recomendado para estudiosos das ciências humanas e sociais, profissionais ou observador: a abordagem das capacitações de Amartya Sen e Martha Nussbaum. Tudo na Stanford Encyclopedia ou na Wikipedia!

DdAB

21 julho, 2020

Distribuição da renda: não é apenas o Covid-19 que baixa o astral

Confira naves espaciais famosas de filmes, séries e desenhos ...

Lidando com o conceito de tempo quântico, um bit daqui, outro bit dali, concluí a leitura de

SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de (2018) Uma história de desigualdade; a concentração de renda entre os ricos no Brasil - 1926-2013. São Paulo: Hucitec.

que fiz entre 27 de agosto de 2019 a hoje, 21 de julho de 2020. Não fosse o Covid-19, talvez eu não tivesse devotado tantos bits à leitura e, neste caso, estaria impossibilitado de dar o suco da história. Não necessito mais de duas citações para colocar-nos em desespero:

Páginas 379-380
Só um louco acharia que é possível alcançar a prosperidade em um estalar de dedos ou com base em 'vontade política'.

Claro que o autor está falando primariamente na distribuição da renda. De minha parte, aceitei renovar a lição de que minhas preferências pessoais não devem comprometer minhas previsões sobre os destinos da desigualdade no Brasil. E talvez até no mundo. Nos tempos de Covid-19 e esboroamento da social-democracia planetária, também duvido um pouco que seu retorno se dará pacificamente. Mas não quero falar em revolução. Falo, e lá vai pau no PT, na ação da sociedade civil, associações de trabalhadores e moradores, isto é, a inserção profissional das pessoas e sua inserção comunitária.

Página 382: a última frase do livro
Não há motivos para sermos otimistas nem alternativas mais fáceis. Esperar que o crescimento puro e simples resolva nossa questão distributiva não funcionou no passado e dificilmente funcionará no futuro.

Por que acabei de falar em pau, pau e mais pau no PT? Parece óbvio: os demais partidos não mereciam nem merecem a menor credibilidade como possíveis condutores da social-democracia brasileira. O PT me decepcionou ex post, quero dizer, apenas muito tempo depois de 8 de janeiro de 2004, ou seja, o início do segundo ano do mandato do metalúrgico:

Art. 1º É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário.
Brasília, 8 de janeiro de 2004; 183º da Independência e 116º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Antonio Palocci Filho
Nelson Machado
Ciro Ferreira Gome
s

Também parece óbvio que, com tais signatários auxiliares, a encrenca não poderia ter dado certo.

DdAB
P.S. Para mostrar meu otimismo, falo no blog em "povos astronautas" e, só apenas podemos pensar em realmente sermos um deles, se cultivarmos a consigna de liberdade, igualdade e fraternidade. E ilustro esta postagem com uma nave maneira, investida de tecnologias que ainda nem se pensa em poder criar.
P.S.S. E apenas agora, ao digitar o título do livro que acabei de ler é que me dei conta: o Brasil tem uma história que se confunde com a desigualdade, o Brasil tem uma história que se nutre e sustenta a desigualdade. E tenho colegas economistas que sonham que a solução deste problema (que, diz Jessé Souza, sua negação é prova da tolice da inteligentzia brasileira) é mais industrialização e não mais provisão pública de bens públicos (saneamento, segurança) e bens meritórios (educação, saúde).
P.S.S.S. Aquela encrenca de "pau, pau e mais pau" tem uma explicação aqui: (https://19duilio47.blogspot.com/2016/01/pau-pau-e-mais-pau-casos-da-abl-e-da.html).

17 julho, 2020

Pedantes também Leem Zerro Herra: temperatura elevada

Não sou leitor sempre atento do jornal que, às vezes, mais atilado, chamo de Zerro Herra. A maior foi registrada neste blog: um homem assassinado com três tiros, ..., ou seja, uma facada na barriga. Parece até que tenho esta sentença documentada. Hoje faço uma crítica que não posso chamar de pedante, mas não reclamo se alguém o fizer. Vejamos o caso a ser julgado escrito na página 20 do jornal de hoje:

[...] Porto Alegre pode marcar 27oC amanhã e no domingo, 10 vezes mais que o registrado na quarta-feira, quando a capital teve a menor temperatura do ano.

Ou seja, 10 vezes menos de 27 é 2,7. Mas a operação de divisão ou a de multiplicação, ambas, são proibidas quando se mede a temperatura em escalas sem zero absoluto, ou seja, nossas conhecidas medições em graus centígrados (que grafei como 27oC, pois não sei fazer sobrescrito neste blog).

Claro que não posso esperar isto de um jornalista, embora saiba haver tantos outros que conheçam muito mais sobre escalas de medida que eu próprio, que já li um tanto sobre o assunto. Como assim? Dependendo do mundo em que habitamos, podemos falar em quatro e apenas quatro escalas de medida, diferindo entre si pelo conteúdo informacional. Na ordem em que vou apresentar, elas exibem crescentes intensidades de informação:

Escala nominal - dá um importante conteúdo informacional, associando nomes a números, por exemplo, o nome dx amigx e seu dia de aniversário, ou número do CPF e o nome do beneficiário do auxílio emergencial do mister Guedes.

Escala ordinal - aquela que não foi adequadamente ensinada e ajudou milhares de gerações de esquerdistas a desprezar a teoria ordinal da utilidade. Neste caso e em milhares de outros, podemos dizer, por exemplo, que gostamos mais de igualitarismo que de escalafobetismo (o leque salarial é de centenas de vezes). Posso dizer gostar mais de pêssego que de bolo, ser indiferente entre pêssego e bolo ou ainda preferir bolo a pêssego. Quando digo "gosto mais de mamãe que de papai" estou fazendo uma comparação usando a escala ordinal. E tem escalas ordinais sabidas, como a de Likert, que atribuem valores de 1 a 5 (notate bene que não tem zero absoluto). Claramente, 5 não vale cinco vezes mais que 1, pois estes números, arbitrários, estão apenas dizendo em números algo como: gosto muito, gosto, gosto pouco, desgosto, desgosto muito.

Escala intervalar - pois é ela: a escala com que se mede temperatura. E, tchan, tchan, tchan... a utilidade esperada. Quando falamos que a escala centígrada tem a água gelada com temperatura de 0 graus centígrados como zero e, ao ferver, atribuímos-lhe 100 graus centígrados, estamos atribuindo valores arbitrariamente. Da mesma forma, a temperatura medida em graus Fahrenheit estamos arbitrando um mínimo e outro valor dentro de um intervalo adequado.

Escala racional - como sabemos, esse racio do racional vem de ratio, o próprio conjunto de números racionais é dado por uma fórmula tipo p/q, em que p e q são inteiros e q é diferente de zero (é isto?), ou seja, a razão entre p e q. Claro que esta escala é a mais usada em economia (mas não esqueçamos a intervalar e a utilidade esperada), pois, como disse Deirdre McCloskey e eu usei esta frase como epígrafe de minha tese de doutorado: 

A sentença final diz, na tradução do Google:

Repleta de preços e lucros, acres e mãos, a vida econômica é a mais mensurável das atividades humanas.

Então podemos dizer que o Banco Thief tem um lucro de R$ 1 bilhão (um banco um tanto mirradinho), e usamos a escala nominal, nome e número. Mas podemos acrescentar que esse lucro é maior que os R$ 1.000 que o sr. Ernesto Honest ganha mensalmente para estrucar 44 horas semanais como jardineiro de uma praça privatizada, usando a escala ordinal. Ao mesmo tempo, podemos dizer, agora usando a escala intervalar, que o lucro do Thief é maior que o do Honest em 999.999.000 unidades. Acabamos de usar a escala ordinal. Mas também podemos dizer que Thief fatura 1 milhão de vezes mais que Honest.

E Zero Hora? Leio-a com frequência e sempre que termino de fazê-lo fico a indagar-me: por quê li? E sempre fico pensando em que ela faria se achasse erros neste blog.

DdAB
P.S. Fiz mais lucubrações sobre essa frase de da profa. McCloskey aqui.

13 julho, 2020

Barganha versus Obstinação: mais aprendizado com Brás Cubas

Foto Noticia Principal Grande

Dedicado axs leitorxs que amam a leitura literária.
(E desejo sucesso ao pessoal de Valparaíso que comparecer a essa feira em agosto de ano não informado)

Tempos atrás, já autor de um livro introdutório à teoria dos jogos, relendo (pois li pela primeira vez tipo em 1965) o romance "S. Bernardo" de Graciliano Ramos, defrontei-me com uma barganha mortal entre Paulo Honório, o narrador da história da fazenda com esse nome e o vizinho Luis Padilha, um agricultor decadente cuja fazenda vizinhava. Lá depois de minha assinatura, reproduzi o processo, para quem não quiser olhar a peça inteira aqui (https://19duilio47.blogspot.com/2013/06/a-barganha-por-s-bernardo.html). Como sabemos, a barganha tem como requisito fundamental que os negociadores, digamos, dois deles, têm interesse preservação do objeto, um vaso, um quadro, uma quadra de terra, um automóvel Chevrolet, o que for.

Na pandemia, tenho expandido meu hábito de reler, o prazer de reler, reler romances e até livros de economia que me marcaram. No outro dia, falei em

MACHADO DE ASSIS ([1880], 2014) Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Penguin Classics [Companhia das Letras].

Mas também falei na edição LePM e na da Biblioteca Nacional? O texto que vou citar é desta última, pois a Penguin tem cada uma... Por exemplo, quiseram atualizar o texto, corrigir pecadilhos machadianos e vieram com "cousa' e "dous" para "coisa" e "dois". Pode? Outra hora vou falar mais agressivamente sobre isso.

Esta é uma barganha estranha, pois um dos negociantes preferiria morrer a ceder o bem que estava sendo disputado. Eu já ia explicando quem é o Viegas, mas achei melhor usar a descrição do próprio Brás Cubas:

[... ] um parente de Virgília [de acordo com Brasinho, sua amante], o Viegas, um cangalho de setenta invernos, chupado e amarelado, que padecia de um reumatismo teimoso, de uma asma não menos teimosa e de uma lesão do coração: era um hospital concentrado.

Nestes tempos de corona-vírus Covid-19, sensibilizei-me com o parente que entrou na fila do grupo de risco em várias cláusulas, inclusive tendo cometido o pecado de estar vivo há 70 anos.

Pois então, Brasinho testemunhou a -por assim dizer- barganha entre Viegas e "um sujeito magro". Vai aqui a transcrição do capítulo LXXXIX inteirinho, conforme o arquivo da Biblioteca Nacional:
CAPÍTULO 89
In extremis
— Amanhã vou passar o dia em casa do Viegas, disse-me ela uma vez. Coitado! não tem ninguém...
Viegas caíra na cama, definitivamente; a filha, casada, adoecera justamente agora, e não podia fazer-lhe companhia. Virgília ia lá de quando em quando. Eu aproveitei a circunstância para passar todo aquele dia ao pé dela. Eram duas horas da tarde quando cheguei. Viegas tossia com tal força que me fazia arder o peito; no intervalo dos acessos debatia o preço de uma casa, com um sujeito magro. O sujeito oferecia trinta contos, o Viegas exigia quarenta. O comprador instava como quem receia perder o trem da estrada de ferro, mas Viegas não cedia; recusou primeiramente os trinta contos, depois mais dois, depois mais três, enfim teve um forte acesso, que lhe tolheu a fala durante quinze minutos. O comprador acarinhou-o muito, arranjou-lhe os travesseiros, ofereceu-lhe trinta e seis contos.
— Nunca! gemeu o enfermo.
Mandou buscar um maço de papéis à escrivaninha; não tendo forças para tirar a fita de borracha que prendia os papéis, pediu-me que os deslaçasse: fi-lo. Eram as contas das despesas com a construção da casa: contas de pedreiro, de carpinteiro, de pintor; contas do papel da sala de visitas, da sala de jantar, das alcovas, dos gabinetes; contas das ferragens; custo do terreno. Ele abria-as, uma por uma, com a mão trêmula, e pedia me que as lesse, e eu lia-as.
— Veja; mil e duzentos, papel de mil e duzentos a peça. Dobradiças francesas... Veja, é de graça, concluiu ele depois de lida a última conta.
— Pois bem... mas...
— Quarenta contos; não lhe dou por menos. Só os juros... faça a conta dos juros...
Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas, como se fossem migalhas de um pulmão desfeito.
Nas órbitas fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada. Sob o lençol desenhava-se a estrutura óssea do corpo, pontudo em dois lugares, nos joelhos e nos pés; a pele amarelada, bamba, rugosa, revestia apenas a caveira de um rosto sem expressão; uma carapuça de algodão branco cobria-lhe o crânio rapado pelo tempo.
— Então? disse o sujeito magro.
Fiz-lhe sinal para que não insistisse, e ele calou-se por alguns instantes. O doente ficou a olhar para o teto, calado, a arfar muito: Virgília empalideceu, levantou-se, foi até a janela. Suspeitara a morte e tinha medo. Eu procurei falar de outras coisas. O sujeito magro contou uma anedota, e tornou a tratar da casa, alteando a proposta.
— Trinta e oito contos, disse ele.
— Am?... gemeu o enfermo.
O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na mão, e sentiu-a fria. Eu acheguei-me ao doente, perguntei-lhe se sentia alguma coisa, se queria tomar um cálice de vinho.
— Não... não... quar... quaren... quar... quar...
Teve um acesso de tosse, e foi o último; daí a pouco expirava ele, com grande consternação do sujeito magro, que me confessou depois a disposição em que estava de oferecer os quarenta contos; mas era tarde.

DdAB
P.S. Aqui temos o texto pertinente que agora copiei de meu próprio blog:
-Faça preço.
   Para começar, Luís Padilha pediu oitenta contos.
   -Você está maluco! Seu pai dava isto ao Fidélis por cinquenta. E era caro. Hoje o engenho caiu, o gado dos vizinhos rebentou as porteiras, as casas são taperas, o Mendonça vai passando as unhas nos babados...
   Perdi o fôlego. Respirei e ofereci trinta contos. Ele baixou para setenta e mudamos de conversa. Quando tornamos à barganha, subi a trinta e dois. Padilha fez abate para sessenta e cinco e jurou por Deus do céu que era a última palavra. Eu também asseverei que não pingava mais um vintém, porque não valia. Mas lancei trinta e quatro. Padilha, por camaradagem, consentiu em receber sessenta. Discutimos duas horas, repetindo os mesmos embelecos, sem nenhum resultado.
   Resolvi discorrer sobre as minhas viagens ao sertão. Depois, com indiferença, insisti nos trinta e quatro contos e obtive modificação para cinquenta e cinco. Mostrei generosidade: trinta e cinco. Padilha endureceu nos cinquenta e cinco, e eu injuriei-o, declarei que o velho Salustiano tinha deitado fora o dinheiro gasto com ele, no colégio. Avancei a quarenta e afirmei que estava roubando a mim mesmo. Nesse ponto cada um puxou para o seu lado. Finca-pé. Chamei em meu auxílio o Mendonça, que engolia a terra, o oficial de justiça, a avaliação e as custas. O infeliz, apavorado, desceu a quarenta e oito. Arrependi-me de haver arriscado quarenta: não valia, era um roubo. Padilha escorregou a quarenta e cinco. Firmei-me nos quarenta. Em seguida roí a corda:
   -Muito por baixo. Pindaíba.
   Descontado o que ele me devia, o resto seria dividido em letras. Padilha endoideceu: chorou, entregou-se a Deus e desmanchou o que tinha feito. Viesse o advogado, viesse a justiça, viesse a polícia, viesse o diabo. Tomassem tudo. Um fumo para o acordo! Um fumo para a lei!
   -Eu me importo com lei? Um fumo!
   Tinha meios. Ia à tribuna da imprensa, reclamar os seus direitos, protestar contra o esbulho. Afetei comiseração e prometi pagar com dinheiro e com uma casa que possuía na rua. Dez contos. Padilha botou sete contos na casa e quarenta e três em S. Bernardo. Arranquei-lhe mais dois contos: quarenta e dois pela propriedade e oito pela casa. Arengamos ainda meia hora e findamos o ajuste.
   Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia, cedo,  ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e cinquenta mil-reis. Não tive remorso.

08 julho, 2020

Nasce Quincas Borba: incompreensões bolsonarísticas

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Quem me acompanhou nas observações sobre as leituras que fiz de Érico Veríssimo há de lembrar que andei dando a conhecer coisas aquihttps://19duilio47.blogspot.com/2014/11/a-chegada-de-o-tempo-e-o-vento.html. Falava eu de "O Resto é Silêncio", romance em que a personagem principal é o escritor Tônio Santiago, que nasceu em Sacramento. Anos depois, Érico iria ambientar o país centro-americano a ter o embaixador Gabriel Heliodoro em Washington na terra assim chamada: La República de Sacramiento. E, antes disso, em "O Tempo e o Vento", o "Sobrado" é uma variante da casa da infância de Tônio naquela Sacramento gaúcha. E já outras várias "entradas" para "O Tempo e o Vento". Já me referi longamente ao tema, fazendo longas,  alongadas citações no link que acabo de dar.

Érico não foi o único a insinuar num romance eventos que se inseririam na obra que provavelmente já lhe fervilhava na cabeça. Machado de Assis: não sei o que aconteceu comigo nas leituras anteriores das "Memórias Póstumas de Brás Cubas", o Brasinho, no que diz respeito a constatar e festejar que estava nascendo outro romance, o "Quincas Borba". Pois então. Quincas entra na obra ditada "do alto" pelo Brasinho em vários capítulos. Ele aparece no capítulo 13:

   Um de nós (alunos do prof. Ludgero Barata), o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas, três vezes por semana, havia de deixar na algibeira das calças - umas largas calças de enfiar -, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas de aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.
   Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de toda a cidade. A mãe, viúva, com alguma coisa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que nos deixava gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas nos morros do Livramento e da Conceição ou simplesmente arruar, à toa, como dois peraltas sem emprego. E de imperador! Era gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia qualquer que fosse. Tinha garbo, o traquinas, e gravidade, certa magnificência nas atitudes, nos meneios. Quem diria que... Suspendamos a pena; não adiantemos os sucessos. Vamos de um salto a 1822, data da nossa independência política, e do meu primeiro cativeiro pessoal.

No capítulo 59, há um reencontro com ele:

[...] Alguns minutos depois [de sentar-se em um banco no Passeio Público] vejo encaminhar-se para mim uma cara, que não me pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse donde fosse.
Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era contemporâneo do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes, — ou, literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a um amarelo sem brilho; o pelo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras, enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão de um botim sem
misericórdia nem graxa. Ao pescoço flutuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete, um colete de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.
— Aposto que me não conhece, Senhor Doutor Cubas? disse ele.
— Não me lembra...
— Sou o Borba, o Quincas Borba.
Recuei espantado... Quem me dera agora o verbo solene de um Bossuet ou de Vieira, para contar tamanha desolação! Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de colégio, tão inteligente e abastado. O Quincas Borba! Não; impossível; não pode ser. Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruína fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos tinham um resto da expressão de outro tempo, e o sorriso não perdera certo ar escarninho, que lhe era peculiar. Entretanto, ele suportava com firmeza o meu espanto. No fim de algum tempo arredei os olhos; se a figura repelia, a comparação acabrunhava.
— Não é preciso contar-lhe nada, disse ele enfim; o senhor adivinha tudo. Uma vida de misérias, de atribulações e de lutas. Lembra-se das nossas festas, em que eu figurava de rei? Que trambolhão! Acabo mendigo...
E alçando a mão direita e os ombros, com um ar de indiferença, parecia resignado aos golpes da fortuna, e não sei até se contente. Talvez contente. Com certeza, impassível. Não havia nele a resignação cristã, nem a conformidade filosófica.Parece que a miséria lhe calejara a alma, a ponto
de lhe tirar a sensação de lama. Arrastava os andrajos, como outrora a púrpura: com certa graça indolente.
— Procure-me, disse eu, poderei arranjar-lhe alguma coisa.
Um sorriso magnífico lhe abriu os lábios. 
— Não é o primeiro que me promete alguma coisa, replicou, e não sei se será o último que não me fará nada. E para quê? Eu nada peço, a não ser dinheiro; dinheiro sim, porque é necessário comer, e as casas de pasto não fiam. Nem as
quitandeiras. Uma coisa de nada, uns dois vinténs de angu, nem isso fiam as malditas quitandeiras... Um inferno, meu... ia dizer meu amigo... Um inferno! o diabo! todos os diabos!
Olhe, ainda hoje não almocei.
— Não?
— Não; saí muito cedo de casa. Sabe onde moro? No terceiro degrau das escadas de São Francisco, à esquerda de quem sobe; não precisa bater na porta. Casa fresca, extremamente fresca. Pois saí cedo, e ainda não comi...
Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil réis, — a menos limpa, — e dei-lha. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes de cobiça. Levantou a nota ao ar, e agitou-a entusiasmado.
In hoc signo vinces! bradou.
E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e tão ruidosa expansão, que me produziu um sentimento misto de nojo e lástima. Ele, que era arguto, entendeu-me; ficou sério, grotescamente sério, e pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era alegria de pobre que não via, desde muitos anos, uma nota de cinco mil réis.
— Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu.
— Sim? acudiu ele, dando um bote para mim.
— Trabalhando, conclui eu.
Fez um gesto de desdém; calou-se alguns instantes; depois disse-me positivamente que não queria trabalhar. Eu estava enjoado dessa abjeção tão cômica e tão triste, e preparei-me para sair.
— Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele, escarranchando-se diante de mim.

Retomo. Filosofia da miséria, Pierre-Joseph Proudhon, com Karl Marx e sua Miséria da filosofia? Pois vejamos. As "Memórias Póstumas" foram publicadas "por volta de 1880", ao passo que a "Miséria da Filosofia" é de 1847 na redação original em francês. Podemos começar a intuir que a fase realista de Machado de Assis ocorreu apenas após ele ter lido Marx. Ou vice-versa?

E tem mais Quincas, agora no capítulo 60, inspirando Aldir Blanc e João Bosco. Despedindo-se de Brás Cubas, Quincas Borba como que lhe rouba um abraço, deixando como saldo a frase que fecha o capítulo:

   Meto a mão no colete e não acho o relógio. Última desilusão! O Borba furtara-mo no abraço.

Como não lembrar aquele 

"Bati-lhe a carteia, nem notou. 
Levou meu relógio e eu nem vi. 
Já não há mais lugar para amador." 

Mas tem mais Quincas Borba antes do romance-continuação-de-certa-forma das "Memórias Póstumas". Ele é citado ainda nos capítulos 61 e 62.

Por tudo isso, guardei para o final uma passagem que evocou-me nosso presidente da república, hoje, no dia 7 de julho, acometido por corona vírus - covid-19. Ele, que tanto desprezo lançou a esta moléstia assassina. No capítulo 12, intitulado "Um episódio de 1814" (Marx nasceria dali a quatro anos, aqueles 05.05.1818), lemos o terceiro parágrafo:

Chegando ao Rio de Janeiro a notícia da primeira queda de Napoleão, houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas nenhum chasco ou remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo público, julgaram mais decoroso o silêncio; alguns foram além e bateram palmas. A população, cordialmente alegre, não regateou demonstrações de afeto à real família; houve iluminações, salvas, Te Deum, cortejo e aclamações.

Pensei em trocar o nome de Napoleão por Bolsonaro, quatro sílabas cada um. E, com isto, ver-lhe a queda para o covid-19 e quem sabe a renúncia ao mandato que tanto aplauso trouxe e que, concluída a queda, tantas palmas traiçoeiras hão de soar. Tá cheio de gente que, vencida, escolheria o decoroso silêncio, mas vejo também milhares de trânsfugas simplesmente a bater palmas. A perfídia humana é desumana...

DdAB
P.S. Trechos transcritos do livro que estou lendo e outros copiados do PDF da Biblioteca Nacional.

05 julho, 2020

Gaia é Gaúcha


Título da postagem: homenagem àquele coro de 40 anos atrás rugindo "ucho, ucho, ucho, o papa é gaúcho".

Ilustração da postagem: o quinteto para clarinete e cordas em si menor de Johannes Brahms. Homenagem a Érico Veríssimo, por razões que rapidamente se tornarão óbvias, pois este concerto inspirou nosso autor a assim nomear sua autobiografia "Solo de Clarineta".

Conteúdo da postagem:
Será que, ao escrever "Música ao Longe", publicado no ano de 1935, Érico já tinha em mente homenagear o quinteto para clarinete? E, ao escrever o que cito da página 104, Érico já sabia que aquela encrenca originária da fusão da ciência e da tecnologia herdadas do século XIX iria engripar o planeta?

Então, pois então. Nestes tempos de óbvia mudança climática planetária e a praga do Covid-19, fiquei confinado, mas não ao ponto de ser impedido de ler. Li que te li, li daqui, li dali e cheguei à quarta leitura (não tudo chundo...) de... "Música ao Longe", em sua página... 104. A história mostra o final da decadência da família de Clarissa, exercendo papel lateral de primeira ordem o sr. Leocádio, um mitômano interiorano (parece-me que o primeiro que notei foi lá no fim da obra de Érico, no livro "Incidente em Antares", mas parece agora, sem os livros por perto, que também tinha mitômanos no "O Tempo e o Vento"). Agora, ao transcrever, fico em dúvida se Leocádio lera ou não lera Bento Espinosa e seu panteísmo:

-Mas você não acredita em Deus, Leocádio... - observa tia Zezé, rematando as palavras com sua risadinha afônica.
-Claro! Nesse Deus barbudo de vocês não acredito. Quando falo em Altíssimo, refiro-me a essa força misteriosa que rege o Universo. A propósito: vocês sabem que o mundo é um grande, um enorme bicho de que nós fazemos parte, assim... assim, como cabelinhos, pequenas partículas?
Expressões de surpresa. Leocádio continua, satisfeito consigo mesmo:
-A teoria é minha. A Terra é um enorme bicho. Vejam os vulcões. São tumores por onde jorra o pus das lavas. E esse passeio maravilhoso que o bicho faz através do infinito? Formidável! Os demais planetas e sóis são outros bichos. Se um dia eles inventares de guerrear, estamos bem aviados. Vai ser um cataclismo nunca visto. Pois é isso mesmo, o mundo é um bicho. Agora descubro uma definição melhor para o homem. O homem é um parasita do grande bicho. Alimenta-se dele, assim como o carrapato se alimenta do gado. Mas um belo dia o bicho come o parasita. É quando o homem morre e vai para baixo da terra...

Gaia, Espinosa, Érico. Este, em 1935 tinha lá seus 30 anos de idade, talvez ainda não maduro o suficiente para saber de Espinosa. E a "hipótese Gaia" ainda não ganhara mundo, não em 1935. Naturalmente em 1935 era impossível a Érico ou a qualquer outro terráqueo ter notícia da hipótese, em vias de formulação pelo duo James Ephraim Lovelock e Lyn Margulis, por volta de 1972. Que ela andou afirmando? Que a Terra é... um bicho.

Por falar em bicho, na pandemia, também li/reli as "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de que falarei em breve. E lembro, desde já, sua epígrafe:

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas

Pois então. Volta e meia cito nestas paragens minha médica clínica, a doutora Carmen Daudt. E um dia falei para ela na cadeia alimentar, conceito antropomórfico de acordo com o qual o homem ocupa o lugar superior na cadeia alimentar. Ela, com modéstia, disse que o homem não é mais que a matéria orgânica que vai nutrir aquele verme machadiano, ou melhor, brás-cubano.

DdAB