13 julho, 2020

Barganha versus Obstinação: mais aprendizado com Brás Cubas

Foto Noticia Principal Grande

Dedicado axs leitorxs que amam a leitura literária.
(E desejo sucesso ao pessoal de Valparaíso que comparecer a essa feira em agosto de ano não informado)

Tempos atrás, já autor de um livro introdutório à teoria dos jogos, relendo (pois li pela primeira vez tipo em 1965) o romance "S. Bernardo" de Graciliano Ramos, defrontei-me com uma barganha mortal entre Paulo Honório, o narrador da história da fazenda com esse nome e o vizinho Luis Padilha, um agricultor decadente cuja fazenda vizinhava. Lá depois de minha assinatura, reproduzi o processo, para quem não quiser olhar a peça inteira aqui (https://19duilio47.blogspot.com/2013/06/a-barganha-por-s-bernardo.html). Como sabemos, a barganha tem como requisito fundamental que os negociadores, digamos, dois deles, têm interesse preservação do objeto, um vaso, um quadro, uma quadra de terra, um automóvel Chevrolet, o que for.

Na pandemia, tenho expandido meu hábito de reler, o prazer de reler, reler romances e até livros de economia que me marcaram. No outro dia, falei em

MACHADO DE ASSIS ([1880], 2014) Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Penguin Classics [Companhia das Letras].

Mas também falei na edição LePM e na da Biblioteca Nacional? O texto que vou citar é desta última, pois a Penguin tem cada uma... Por exemplo, quiseram atualizar o texto, corrigir pecadilhos machadianos e vieram com "cousa' e "dous" para "coisa" e "dois". Pode? Outra hora vou falar mais agressivamente sobre isso.

Esta é uma barganha estranha, pois um dos negociantes preferiria morrer a ceder o bem que estava sendo disputado. Eu já ia explicando quem é o Viegas, mas achei melhor usar a descrição do próprio Brás Cubas:

[... ] um parente de Virgília [de acordo com Brasinho, sua amante], o Viegas, um cangalho de setenta invernos, chupado e amarelado, que padecia de um reumatismo teimoso, de uma asma não menos teimosa e de uma lesão do coração: era um hospital concentrado.

Nestes tempos de corona-vírus Covid-19, sensibilizei-me com o parente que entrou na fila do grupo de risco em várias cláusulas, inclusive tendo cometido o pecado de estar vivo há 70 anos.

Pois então, Brasinho testemunhou a -por assim dizer- barganha entre Viegas e "um sujeito magro". Vai aqui a transcrição do capítulo LXXXIX inteirinho, conforme o arquivo da Biblioteca Nacional:
CAPÍTULO 89
In extremis
— Amanhã vou passar o dia em casa do Viegas, disse-me ela uma vez. Coitado! não tem ninguém...
Viegas caíra na cama, definitivamente; a filha, casada, adoecera justamente agora, e não podia fazer-lhe companhia. Virgília ia lá de quando em quando. Eu aproveitei a circunstância para passar todo aquele dia ao pé dela. Eram duas horas da tarde quando cheguei. Viegas tossia com tal força que me fazia arder o peito; no intervalo dos acessos debatia o preço de uma casa, com um sujeito magro. O sujeito oferecia trinta contos, o Viegas exigia quarenta. O comprador instava como quem receia perder o trem da estrada de ferro, mas Viegas não cedia; recusou primeiramente os trinta contos, depois mais dois, depois mais três, enfim teve um forte acesso, que lhe tolheu a fala durante quinze minutos. O comprador acarinhou-o muito, arranjou-lhe os travesseiros, ofereceu-lhe trinta e seis contos.
— Nunca! gemeu o enfermo.
Mandou buscar um maço de papéis à escrivaninha; não tendo forças para tirar a fita de borracha que prendia os papéis, pediu-me que os deslaçasse: fi-lo. Eram as contas das despesas com a construção da casa: contas de pedreiro, de carpinteiro, de pintor; contas do papel da sala de visitas, da sala de jantar, das alcovas, dos gabinetes; contas das ferragens; custo do terreno. Ele abria-as, uma por uma, com a mão trêmula, e pedia me que as lesse, e eu lia-as.
— Veja; mil e duzentos, papel de mil e duzentos a peça. Dobradiças francesas... Veja, é de graça, concluiu ele depois de lida a última conta.
— Pois bem... mas...
— Quarenta contos; não lhe dou por menos. Só os juros... faça a conta dos juros...
Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas, como se fossem migalhas de um pulmão desfeito.
Nas órbitas fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada. Sob o lençol desenhava-se a estrutura óssea do corpo, pontudo em dois lugares, nos joelhos e nos pés; a pele amarelada, bamba, rugosa, revestia apenas a caveira de um rosto sem expressão; uma carapuça de algodão branco cobria-lhe o crânio rapado pelo tempo.
— Então? disse o sujeito magro.
Fiz-lhe sinal para que não insistisse, e ele calou-se por alguns instantes. O doente ficou a olhar para o teto, calado, a arfar muito: Virgília empalideceu, levantou-se, foi até a janela. Suspeitara a morte e tinha medo. Eu procurei falar de outras coisas. O sujeito magro contou uma anedota, e tornou a tratar da casa, alteando a proposta.
— Trinta e oito contos, disse ele.
— Am?... gemeu o enfermo.
O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na mão, e sentiu-a fria. Eu acheguei-me ao doente, perguntei-lhe se sentia alguma coisa, se queria tomar um cálice de vinho.
— Não... não... quar... quaren... quar... quar...
Teve um acesso de tosse, e foi o último; daí a pouco expirava ele, com grande consternação do sujeito magro, que me confessou depois a disposição em que estava de oferecer os quarenta contos; mas era tarde.

DdAB
P.S. Aqui temos o texto pertinente que agora copiei de meu próprio blog:
-Faça preço.
   Para começar, Luís Padilha pediu oitenta contos.
   -Você está maluco! Seu pai dava isto ao Fidélis por cinquenta. E era caro. Hoje o engenho caiu, o gado dos vizinhos rebentou as porteiras, as casas são taperas, o Mendonça vai passando as unhas nos babados...
   Perdi o fôlego. Respirei e ofereci trinta contos. Ele baixou para setenta e mudamos de conversa. Quando tornamos à barganha, subi a trinta e dois. Padilha fez abate para sessenta e cinco e jurou por Deus do céu que era a última palavra. Eu também asseverei que não pingava mais um vintém, porque não valia. Mas lancei trinta e quatro. Padilha, por camaradagem, consentiu em receber sessenta. Discutimos duas horas, repetindo os mesmos embelecos, sem nenhum resultado.
   Resolvi discorrer sobre as minhas viagens ao sertão. Depois, com indiferença, insisti nos trinta e quatro contos e obtive modificação para cinquenta e cinco. Mostrei generosidade: trinta e cinco. Padilha endureceu nos cinquenta e cinco, e eu injuriei-o, declarei que o velho Salustiano tinha deitado fora o dinheiro gasto com ele, no colégio. Avancei a quarenta e afirmei que estava roubando a mim mesmo. Nesse ponto cada um puxou para o seu lado. Finca-pé. Chamei em meu auxílio o Mendonça, que engolia a terra, o oficial de justiça, a avaliação e as custas. O infeliz, apavorado, desceu a quarenta e oito. Arrependi-me de haver arriscado quarenta: não valia, era um roubo. Padilha escorregou a quarenta e cinco. Firmei-me nos quarenta. Em seguida roí a corda:
   -Muito por baixo. Pindaíba.
   Descontado o que ele me devia, o resto seria dividido em letras. Padilha endoideceu: chorou, entregou-se a Deus e desmanchou o que tinha feito. Viesse o advogado, viesse a justiça, viesse a polícia, viesse o diabo. Tomassem tudo. Um fumo para o acordo! Um fumo para a lei!
   -Eu me importo com lei? Um fumo!
   Tinha meios. Ia à tribuna da imprensa, reclamar os seus direitos, protestar contra o esbulho. Afetei comiseração e prometi pagar com dinheiro e com uma casa que possuía na rua. Dez contos. Padilha botou sete contos na casa e quarenta e três em S. Bernardo. Arranquei-lhe mais dois contos: quarenta e dois pela propriedade e oito pela casa. Arengamos ainda meia hora e findamos o ajuste.
   Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia, cedo,  ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e cinquenta mil-reis. Não tive remorso.

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