08 julho, 2020

Nasce Quincas Borba: incompreensões bolsonarísticas

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Quem me acompanhou nas observações sobre as leituras que fiz de Érico Veríssimo há de lembrar que andei dando a conhecer coisas aquihttps://19duilio47.blogspot.com/2014/11/a-chegada-de-o-tempo-e-o-vento.html. Falava eu de "O Resto é Silêncio", romance em que a personagem principal é o escritor Tônio Santiago, que nasceu em Sacramento. Anos depois, Érico iria ambientar o país centro-americano a ter o embaixador Gabriel Heliodoro em Washington na terra assim chamada: La República de Sacramiento. E, antes disso, em "O Tempo e o Vento", o "Sobrado" é uma variante da casa da infância de Tônio naquela Sacramento gaúcha. E já outras várias "entradas" para "O Tempo e o Vento". Já me referi longamente ao tema, fazendo longas,  alongadas citações no link que acabo de dar.

Érico não foi o único a insinuar num romance eventos que se inseririam na obra que provavelmente já lhe fervilhava na cabeça. Machado de Assis: não sei o que aconteceu comigo nas leituras anteriores das "Memórias Póstumas de Brás Cubas", o Brasinho, no que diz respeito a constatar e festejar que estava nascendo outro romance, o "Quincas Borba". Pois então. Quincas entra na obra ditada "do alto" pelo Brasinho em vários capítulos. Ele aparece no capítulo 13:

   Um de nós (alunos do prof. Ludgero Barata), o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas, três vezes por semana, havia de deixar na algibeira das calças - umas largas calças de enfiar -, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas de aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.
   Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de toda a cidade. A mãe, viúva, com alguma coisa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que nos deixava gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas nos morros do Livramento e da Conceição ou simplesmente arruar, à toa, como dois peraltas sem emprego. E de imperador! Era gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia qualquer que fosse. Tinha garbo, o traquinas, e gravidade, certa magnificência nas atitudes, nos meneios. Quem diria que... Suspendamos a pena; não adiantemos os sucessos. Vamos de um salto a 1822, data da nossa independência política, e do meu primeiro cativeiro pessoal.

No capítulo 59, há um reencontro com ele:

[...] Alguns minutos depois [de sentar-se em um banco no Passeio Público] vejo encaminhar-se para mim uma cara, que não me pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse donde fosse.
Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era contemporâneo do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes, — ou, literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a um amarelo sem brilho; o pelo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras, enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão de um botim sem
misericórdia nem graxa. Ao pescoço flutuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete, um colete de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.
— Aposto que me não conhece, Senhor Doutor Cubas? disse ele.
— Não me lembra...
— Sou o Borba, o Quincas Borba.
Recuei espantado... Quem me dera agora o verbo solene de um Bossuet ou de Vieira, para contar tamanha desolação! Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de colégio, tão inteligente e abastado. O Quincas Borba! Não; impossível; não pode ser. Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruína fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos tinham um resto da expressão de outro tempo, e o sorriso não perdera certo ar escarninho, que lhe era peculiar. Entretanto, ele suportava com firmeza o meu espanto. No fim de algum tempo arredei os olhos; se a figura repelia, a comparação acabrunhava.
— Não é preciso contar-lhe nada, disse ele enfim; o senhor adivinha tudo. Uma vida de misérias, de atribulações e de lutas. Lembra-se das nossas festas, em que eu figurava de rei? Que trambolhão! Acabo mendigo...
E alçando a mão direita e os ombros, com um ar de indiferença, parecia resignado aos golpes da fortuna, e não sei até se contente. Talvez contente. Com certeza, impassível. Não havia nele a resignação cristã, nem a conformidade filosófica.Parece que a miséria lhe calejara a alma, a ponto
de lhe tirar a sensação de lama. Arrastava os andrajos, como outrora a púrpura: com certa graça indolente.
— Procure-me, disse eu, poderei arranjar-lhe alguma coisa.
Um sorriso magnífico lhe abriu os lábios. 
— Não é o primeiro que me promete alguma coisa, replicou, e não sei se será o último que não me fará nada. E para quê? Eu nada peço, a não ser dinheiro; dinheiro sim, porque é necessário comer, e as casas de pasto não fiam. Nem as
quitandeiras. Uma coisa de nada, uns dois vinténs de angu, nem isso fiam as malditas quitandeiras... Um inferno, meu... ia dizer meu amigo... Um inferno! o diabo! todos os diabos!
Olhe, ainda hoje não almocei.
— Não?
— Não; saí muito cedo de casa. Sabe onde moro? No terceiro degrau das escadas de São Francisco, à esquerda de quem sobe; não precisa bater na porta. Casa fresca, extremamente fresca. Pois saí cedo, e ainda não comi...
Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil réis, — a menos limpa, — e dei-lha. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes de cobiça. Levantou a nota ao ar, e agitou-a entusiasmado.
In hoc signo vinces! bradou.
E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e tão ruidosa expansão, que me produziu um sentimento misto de nojo e lástima. Ele, que era arguto, entendeu-me; ficou sério, grotescamente sério, e pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era alegria de pobre que não via, desde muitos anos, uma nota de cinco mil réis.
— Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu.
— Sim? acudiu ele, dando um bote para mim.
— Trabalhando, conclui eu.
Fez um gesto de desdém; calou-se alguns instantes; depois disse-me positivamente que não queria trabalhar. Eu estava enjoado dessa abjeção tão cômica e tão triste, e preparei-me para sair.
— Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele, escarranchando-se diante de mim.

Retomo. Filosofia da miséria, Pierre-Joseph Proudhon, com Karl Marx e sua Miséria da filosofia? Pois vejamos. As "Memórias Póstumas" foram publicadas "por volta de 1880", ao passo que a "Miséria da Filosofia" é de 1847 na redação original em francês. Podemos começar a intuir que a fase realista de Machado de Assis ocorreu apenas após ele ter lido Marx. Ou vice-versa?

E tem mais Quincas, agora no capítulo 60, inspirando Aldir Blanc e João Bosco. Despedindo-se de Brás Cubas, Quincas Borba como que lhe rouba um abraço, deixando como saldo a frase que fecha o capítulo:

   Meto a mão no colete e não acho o relógio. Última desilusão! O Borba furtara-mo no abraço.

Como não lembrar aquele 

"Bati-lhe a carteia, nem notou. 
Levou meu relógio e eu nem vi. 
Já não há mais lugar para amador." 

Mas tem mais Quincas Borba antes do romance-continuação-de-certa-forma das "Memórias Póstumas". Ele é citado ainda nos capítulos 61 e 62.

Por tudo isso, guardei para o final uma passagem que evocou-me nosso presidente da república, hoje, no dia 7 de julho, acometido por corona vírus - covid-19. Ele, que tanto desprezo lançou a esta moléstia assassina. No capítulo 12, intitulado "Um episódio de 1814" (Marx nasceria dali a quatro anos, aqueles 05.05.1818), lemos o terceiro parágrafo:

Chegando ao Rio de Janeiro a notícia da primeira queda de Napoleão, houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas nenhum chasco ou remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo público, julgaram mais decoroso o silêncio; alguns foram além e bateram palmas. A população, cordialmente alegre, não regateou demonstrações de afeto à real família; houve iluminações, salvas, Te Deum, cortejo e aclamações.

Pensei em trocar o nome de Napoleão por Bolsonaro, quatro sílabas cada um. E, com isto, ver-lhe a queda para o covid-19 e quem sabe a renúncia ao mandato que tanto aplauso trouxe e que, concluída a queda, tantas palmas traiçoeiras hão de soar. Tá cheio de gente que, vencida, escolheria o decoroso silêncio, mas vejo também milhares de trânsfugas simplesmente a bater palmas. A perfídia humana é desumana...

DdAB
P.S. Trechos transcritos do livro que estou lendo e outros copiados do PDF da Biblioteca Nacional.

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