03 junho, 2013

A Barganha por S. Bernardo

Querido diário:
Todos sabemos que S. Bernardo (1934) é o segundo romance de Graciliano Ramos? Segundo, pois Caetés (1933) veio antes e Angústia (1936) viria depois. E depois vieram outros que li e não li. Como? Li Vidas Secas (1938), Infância (memórias/1945), Insônia (contos/1947, do qual tenho esta edição mesmo, meu ano de nascimento...) e Memórias do Cárcere (1953). E, claro, ele produziu outras obras que não li.

Segue-se logicamente que, depois de conseguir que o sr. Luís Padilha se endividasse com ele, Paulo Honório exigiu que o proprietário lhe fizesse um preço pela fazenda, eis que as dívidas eram, confessadamente, impagáveis. Seria uma hipoteca de 20 contos de reis (veja só, cassaram o acento dos reais daquele tempo). Seria e foi, mas não foi paga. Então começou a barganha (p.28-30 da edição Record de 2005):

   -Faça preço.
   Para começar, Luís Padilha pediu oitenta contos.
   -Você está maluco! Seu pai dava isto ao Fidélis por cinquenta. E era caro. Hoje o engenho caiu, o gado dos vizinhos rebentou as porteiras, as casas são taperas, o Mendonça vai passando as unhas nos babados...
   Perdi o fôlego. Respirei e ofereci trinta contos. Ele baixou para setenta e mudamos de conversa. Quando tornamos à barganha, subi a trinta e dois. Padilha fez abate para sessenta e cinco e jurou por Deus do céu que era a última palavra. Eu também asseverei que não pingava mais um vintém, porque não valia. Mas lancei trinta e quatro. Padilha, por camaradagem, consentiu em receber sessenta. Discutimos duas horas, repetindo os mesmos embelecos, sem nenhum resultado.
   Resolvi discorrer sobre as minhas viagens ao sertão. Depois, com indiferença, insisti nos trinta e quatro contos e obtive modificação para cinquenta e cinco. Mostrei generosidade: trinta e cinco. Padilha endureceu nos cinquenta e cinco, e eu injuriei-o, declarei que o velho Salustiano tinha deitado fora o dinheiro gasto com ele, no colégio. Avancei a quarenta e afirmei que estava roubando a mim mesmo. Nesse ponto cada um puxou para o seu lado. Finca-pé. Chamei em meu auxílio o Mendonça, que engolia a terra, o oficial de justiça, a avaliação e as custas. O infeliz, apavorado, desceu a quarenta e oito. Arrependi-me de haver arriscado quarenta: não valia, era um roubo. Padilha escorregou a quarenta e cinco. Firmei-me nos quarenta. Em seguida roí a corda:
   -Muito por baixo. Pindaíba.
   Descontado o que ele me devia, o resto seria dividido em letras. Padilha endoideceu: chorou, entregou-se a Deus e desmanchou o que tinha feito. Viesse o advogado, viesse a justiça, viesse a polícia, viesse o diabo. Tomassem tudo. Um fumo para o acordo! Um fumo para a lei!
   -Eu me importo com lei? Um fumo!
   Tinha meios. Ia à tribuna da imprensa, reclamar os seus direitos, protestar contra o esbulho. Afetei comiseração e prometi pagar com dinheiro e com uma casa que possuía na rua. Dez contos. Padilha botou sete contos na casa e quarenta e três em S. Bernardo. Arranquei-lhe mais dois contos: quarenta e dois pela propriedade e oito pela casa. Arengamos ainda meia hora e findamos o ajuste.
   Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia, cedo,  ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e cinquenta mil-reis. Não tive remorso.

DdAB

P.S. tornou-se claro que a vida deste romance já experimentou três mudanças na ortografia da língua que se fala no Brasil e ainda se insiste em chamá-la de português, com aqueles delírios infantiloides da Academia Brasileira de Letras?

Imagem: aqui.

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