29 março, 2020

Um Manifesto de Esquerda para as Eleições Municipais-2020-2021

Vire à esquerda, presidenta - Blog da Cidadania

Em meu segundo fim-de-semana de confinamento, decidi aproveitar o tempo para pensar nas eleições municipais. Fala-se em adiá-las, mas até seria melhor para vermos se articular uma união das esquerdas.

É inconcebível que uma expressiva fração da esquerda brasileira não possa imitar a uruguaya com sua Frente Ampla ou Portugal com sua Geringonça. Pra dizer a verdade, é bem concebível: há muito tempo acompanho diferentes grupos de esquerda sendo incapazes de dialogar e construir uma plataforma comum.

Acredito que boa parte dos esquerdistas incapazes de dialogar é porque não conhecem o conceito de função de produção de proporções fixas. Explico-a. Estamos falando em uma função de várias variáveis em que, digamos, a geração do valor adicionado de uma comunidade depende dos estoques de capital e de trabalho disponíveis e aptos a cumprirem suas atribuições, diria alguém, teleológicas.

Então podemos dizer que o valor adicionado escrito em sua forma de PIB é:

V = f(K, L)
onde K é o estoque de capital e L é o número de trabalhadores.

Essa função de produção geral tem uma aproximação empírica por meio da seguinte especificação, obedecendo ao título de função de produção de proporções fixas:

V = min (K/k; L/t),

As letras minúsculas k e t representam os coeficientes técnicos de produção. Eles têm a propriedade de transformar as unidades originais (digamos, capital em toneladas de máquinas e trabalho em número de trabalhadores). E como funciona? Por exemplo, se um país tem K = 1.000 e L = 45.000 (algo tipo Índia ou China..., mas também o Brasilzão...). Por comodidade, selecionamos uma economia em que k = 1 e t = 1. Então, depois de dividirmos por k aqueles 1.000 que já veremos se transformam em V (valor adicionado) e os 45.000 também se transformam em V, querendo dizer que, se todos os recursos de trabalho fossem usados, a economia poderia produzir 45.000 unidades de valor adicionado (PIB), digamos, R$ 45.000. Mas, como as proporções são fixas, temos ociosidade em algum fator.

Estamos prontos para escrever a função f(.) como:

V = min (1.000/1; 45.000/1).

E já podemos ver que o valor mínimo entre 1.000 e 45.000 é 1.000, não é mesmo? E isto implica, o que condeno, um desemprego de 44.000 trabalhadores.

Tudo isto para dizer que, a meu ver, cada partido de esquerda deveria escrever um programa especificando objetivos e metas. Por exemplo, com o objetivo de combater o desemprego, fixa-se a meta de criação de 44.000 postos de trabalho. Claro que, se é o governo falando, esses 44.000 cargos deverão ser criados no... governo. Empregos na educação, saúde, segurança e saneamento, para começar a listar. Localizam-se os pontos em comum, renegociam-se outros possíveis e... pronto! Basta preparar o manifesto eleitoral, vencer as eleições e, nesse ínterim, ir, por meio do governo paralelo municipal, organizando o poder executivo em consonância com sua base legislativa para, no dia da posse de nossa gente, estar tudo claro como H^2O.

Nada impede que o manifesto de cada partido tenha linhas mestras que apontam para sua ideologia. No caso, a esquerdista, quem sabe social-democrata e, mais especificamente, igualitarista? O partido que pretendo criar, assim que o de Bolsonaro der, por assim dizer, com os burros n'água, terá muitos prolegômenos e então um pequeno feixe de princípios gerais:

.a luta pela implantação do governo mundial
.b voto universal, secreto, facultativo, periódico e distrital
.c república parlamentarista.

Tem gente que não consegue pensar nestes termos, mas pensa em parte de meu item b: adoram o voto universal, secreto e periódico. Só nós, os mais arrojados reformadores iluministas e progressistas lutamos pelo quinteto de .b. E governo mundial? Tem esquerdista que acha que isto é um ultraje a seu nacionalismo. E parlamentarismo? Idem. Ao mesmo tempo, quem não quer, por exemplo, voto periódico nem pode ser chamado de esquerda. As discussões que se seguirão ao encaminhamento desta proposta ao Papa Francisco dirão quais desses meus três itens serão conditio sine qua non para integrar a frente de esquerda.

Pois bem. Estamos falando em eleições municipais. E que elas têm a ver com, por exemplo, governo mundial? Claro que vereadores e prefeitos não têm poder para dialogar com os países amigos tentando formatar esse projeto de governança global. Mas podem se articular com os deputados distritais dos municípios ou regiões que eles -no voto distrital- representam e levar esta metodologia ao congresso nacional. Da mesma forma, o segundo item de que vou falar também requer muito mais autonomia que a hoje dada para os municípios. E nossa frente deverá lutar por eles com os representantes no congresso nacional, claro.

Andando para o lado mais prático da vida, pensei em alguns itens. De pouco adianta sonhar se não houver recursos. Então inicio falando na receita:

RECEITA MUNICIPAL
. generalização do estacionamento pago para todas as ruas da cidade. Quer automóvel estacionado em locais públicos? Paga!
. aumento do IPTU
. aumento do ISQN
. aumento das transferências pelos estados e pela união
. amortização da dívida, se possível zerando-a.

DESPESA MUNICIPAL
. os tradicionais gastos de custeio da máquina pública (sem roubos!!!)
. prioridade à limpeza urbana, pois teremos ruas ajardinadas e limpas, dando emprego a menos qualificados, também induzindo-os a estudar e abandonar a condição de burro, especialmente aqueles carregadores do lixo urbano deixado a seu critério pelos prefeitos coniventes com a terceirização perversa
. moradia para cidadãos de baixa renda
. educação de adultos
. transmissão de energia elétrica com fiação subterrânea
. criação-expansão de centros de lazer comunitários.

Dará o que falar, dará para o começo.

DdAB

26 março, 2020

Irrealidade Cotidiana



EPÍGRAFE:
As pessoas de bem vão continuar votando nos canalhas [...].
Maia, personagem de Número zero, o romance impagável de Umberto Eco. Tá na p.207, a última.

Meu amor por Umberto Eco iniciou há uns bons 35 anos, quando li "Viagem na Irrealidade Cotidiana", que me foi emprestado por Maria Lucrécia Callandro, ex-colega de FEE e PUCRS. Depois li mais montes do autor italiano, patrimônio da humanidade. E até o vi num ciclo de conferências em Oxford, tipo 1992. E foi à luz desse carimbo de irrealidade cotidiana que interpretei a fala do presidente da república no outro dia, menosprezando o que dizem os estudiosos sobre a letalidade do novo corona vírus, agora o covid-19. Duas barbaridades: primeiro, falar em gripezinha e resfriadinho. Parece louco, resfriadinho, matando mais que raticida? Depois, querendo que os jovens voltem às escolas e os trabalhadores às fábricas. Parece louco, querendo que pelados e maconheiros submerjam nas garras da doença, do contágio ativo e passivo? Bolsonaro, a meu ver, é um herdeiro das mais trágicas e apavorantes histórias de ficção científica que já foram escritas e bota-nos nessa irrealidade cotidiana em que vive com a inserção mais distópica que alguém poderia imaginar. Não é à toa que Maia disse aquilo: um canalha que foi eleito por gente que não pensa cientificamente.

E que é comportar-se como quem já tem algum lustro de pensamento racional e científico. Não precisamos ser cientistas para entender o significado brasileiro da palavra ignorante. Andei escrevendo que não posso ser chamado de ignorante por desconhecer, por exemplo, a distância média do Sol a Saturno, ou mesmo quantos satélites tem o planeta romântico, ou ainda a palavra "chorro". O que faz um ignorante de escol é desprezar a opinião dos cientistas, dos terráqueos que estudam os diferentes assuntos. Para Bolsonaro, não importa se o seguidor é, lá vem o velho Discepolo, "ignorante, sábio o chorro, todo es igual".

Quem serão aqueles 35% dos brasileiros entrevistados no outro dia pelo Datafolha que apoiam o tratamento dado pelo Bolsonaro à crise do covid-19? "35%, e logo, pensei cá comigo, estamos perdidos." Mas isto não é tudo, isto não começou ontem. E havia mais de 30% que apoiavam sua candidatura a presidente da república em 2019, se a memória não falha nesses dois números.

Esses dois números são assustadores. O segundo, aqueles 30% de apoio incondicional, não foram claramente entendidos pelo lulismo, que manteve aquela utopia de Lula, em plena cadeia, poder ser candidato, e -mais inexplicável ainda- não ter revelado o nome de seu candidato a vice-presidente, não ter apresentado manifesto eleitoral, essas coisas... eleitorais. Ainda desconsolado com a acachapante derrota de Fernando Haddad no segundo turno em 2018,  em julho de 2019, comprei o livro, publicado em 2019 mesmo, e que nas páginas 121, 122 e 124 fala em abril de 2019. Ou seja, comprei o livro ainda com a tinta da impressão fresquinha. Bom e mau...

MOURA, Maurício e CORBELLINI, Juliano (2019) A eleição disruptiva; por que Bolsonaro venceu. São Paulo: Record.

Não vou cuspir no prato..., ainda que não esteja com as coisas boas do livro na cabeça, neste momento. Però, esse contexto de boa base documental me fez pensar naquele ponto que levantei: como é que Lula andava levando a sério sua candidatura, ainda meio ano antes da eleição se nem tinha indicado chapa, sua chapa, seu companheiro de chapa, seu candidato a vice-presidente?

Pois então. Aqueles 30% de apoio a Bolsonaro equivalem a outros 30% de apoio incondicional à candidatura petista. E mesmo os coeficientes de rejeição nas pesquisas pré-eleitorais para Lula e Bolsonaro eram mais ou menos as mesmas com também 30%. E fiquei pensando na análise FOFA (forças, oportunidades, fraquezas e ameaças, o SWOT, strenghts, weaknesses, opportunities e threats). Vou falar resumidamente: o que nos enfraquece e o que fortalece nossos adversários.

FRAQUEZAS:
. a não-candidatura de Lula e o amorcegamento do processo eleitoral.
. a incapacidade de varrer da esquerda para a direita, dado profundo ódio de boa parte do eleitorado (inclusive negros, mulheres, LGTBs, e tudo que é tipo de grupo de excluídos).
. o fato de que a esquerda não ingressou unida no pleito, pois tem muito partido e, portanto, muito ego, no sistema político brasileiro.

OPORTUNIDADES LÁ DELES:
. essa plasticidade dos 40 partidos políticos que infestam o território nacional veio a navegar num bandwagon effect, quanto mais gente se associava à candidatura Bolsonaro, mais gente era atraída e mais partidos nanicos pulavam no colo dele. Nesses 35% de apoio ao "isolamento vertical" tem mesmo gente autoritária, outra simplesmente neoliberal e -creio- uma boa percentagem de ignorantes, gente que, como Bolsonaro, não estuda e não vê os méritos dos que estudam, dos que prezam a ciência para resolver problemas mundanos.
. o anti-petismo, o anti-lulismo, que levaram gente a preferir escolher o diabo a verem Lula, ou o PT, novamente ungidos à definição dos rumos da vida brasileira.

Não estou dizendo que o lulismo fez pouco. Fez muito, deixou de fazer, especialmente no campo da política, mas também da honestidade, muito. O que fez deu-me a lista que publiquei em (https://19duilio47.blogspot.com/2018/02/lula-la-e-sem-roba.html).

O que fez de errado ainda preciso compilar aqui e ali, embora considere que essa tarefa deva caber a um cientista político de esquerda e não a um economista político de esquerda. Tenho dito que sou tão da esquerda, mas tão da esquerda e tão inquieto que já têm-me acusado de ter iniciado a vida com uma posição de esquerda, ter dado um giro em todo espectro político, virando direita. Respondo que, se o fiz, foi para, cartesianamente, repensar tudinho desde o princípio. E, em assim sendo, certamente fiz os 360 graus completos, só que hoje ocupo uma posição de infinitamente pequena distância do ponto original. Mais sabidinho, claro. Isto significa, na filosofia política, o igualitarismo e, na economia política, o emprego.

E o covid-19? E as eleições municipais? Parece óbvio: "as pessoas de bem vão continuar votando nos canalhas."

DdAB
Aquele trio da imagem lá do início é meu trio de ouro, ou múltiplas consignas para um verdadeiro programa de esquerda. Aliás, entendo que hoje a OMS é a mais legítima representante do governo mundial. E entendo que este vai demorar, pois a mobilidade da mão-de-obra é um fantasma, um fantasma que assola a Europa, o mundo, um fantasma que vai dar samba!

24 março, 2020

Meus Amores com Érico


EPÍGRAFE
Olhos e ouvidos atentos, Clarissa vê e ouve tudo o que se passa a seu redor. Nada lhe escapa à percepção. A galinha carijó bota mais ovos que a galinha preta; a galinha amarela, porém, bota menos ovos que a galinha preta. Ontem o Mandarim [o papagaio da casa] estava mais alegre que hoje. A semana passada o Barata [hóspede da pensão de d. Eufrasina, a.k.a. Zina] estava com mais apetite que nesta semana. Nos canteiros há mais papoulas que rosas. Faz quatro dias que as crianças da casa vizinha não brincam de roda no jardim. Este mês só choveu dois dias.
   É como um prisioneiro que - privado do espetáculo integral da vida, das paisagens livres e largas - se distrai com examinar detidamente os detalhes mínimos de sua cela.
CLARISSA, páginas 152-153. [edição da Companhia das Letras.]

O gaúcho, quando faz um elogio, mete logo uma crítica antes ou depois. Gosto muito mais de Graciliano Ramos que de Érico Veríssimo. Mas vou falar do segundo. Há cerca de 10 anos, fiz um voto de ler Érico no outono, todos os outonos. Tudo começou em meu primeiro ano de aposentadoria da PUCRS. Naquele ano, comprei Clarissa em 15/abr/2008 e concluí a leitura em uma semana. Talvez tenha sido esta a única atividade a que me dediquei, sei lá. Depois segui em meu périplo anos afora. Já li a lista que já vou mostrar umas duas ou três vezes.

Dias atrás, em pleno verão, dei-me por saudoso daquela família Terra-Cambará de O Tempo e o Vento. Mas decidi começar do começo (beguin the beguin, not to be confounded with beguin the beguine), o meu começo, o que defini como "meu  primeiro Érico":

"Meu primeiro Érico"

1933 - Clarissa.
1935 - Caminhos cruzados. 
1936 - Música ao longe.
1936 - Um lugar ao sol.

Trata-se das histórias de dois pares românticos: Clarisse e Vasco e Fernanda e Noé. Dizem que Fernanda está no grupo das grandes mulheres da literatura de Érico, ao lado de Ana Terra, Biana Cambará e Maria Valéria Terra Cambará.

"Meu segundo Érico"
1938 - Olhai os lírios do campo 
1943 - O resto é silêncio

Eliminei deste meu segundo Érico o livro Saga, de 1940, pois, segundo entendo, o próprio Érico abjurou-o. Agora temos dois pares românticos independentes. Primeiro vêm Olívia e Eugênio e em segundo lugar, não se trata bem de uma dupla romântica, pois temos a história da garota suicida e Tônio Santiago, este sendo, talvez, o primeiro e grandioso physique du rôle do próprio Érico. Tônio tem um filho que parece ter os genes de Eduardo, de O  arquipélago. Especialmente O resto é silêncio leva-me a crer que a composição de O Tempo e o Vento já estava fermentando na cabeça do escritor cruz-altense, gaúcho e brasileiro.

"Meu terceiro Érico"
1941 - Gato preto em campo de neve.
1946 - A volta do gato preto.
1957 - México.
1969 - Israel em abril.

Pra quem não sabe, este é o ciclo dos livros de viagem que ele escreveu. Ainda há, nas memórias (lá em "Meu quinto Érico"), uma boa aproximação do esmero com que ele parece ter planejado suas viagens. Desta vez, especialmente Portugal e depois outros países europeus. Em boa medida, meu doutorado no exterior tem muito a ver com o primeiro "Gato Preto". Ao ler sobre uma visita que o romancista fez à Fundação Rockfeller (?) em Nova York, as diferentes nacionalidades ali presentes, pensei que meu paraíso chegaria no dia em que eu morasse e estudasse no exterior. Tentei montes e, em 1977, com cinco anos da graduação em economia e o mestrado porto-alegrense, fui-me à University of Sussex, de onde saquei meu M.A.. E depois voltei...

"Meu quarto Érico"
[Trilogia que compõe a obra "O Tempo e o Vento" em sete volumes]
1949 - O Continente.
1951 - O Retrato.
1961-62 - O Arquipélago.

O leitor refinado sabe que estou falando da trilogia que compõe "O tempo e o vento." E era dessa turma que revelei lá no início estar saudoso.

"Meu quinto Érico"
1965 - O senhor embaixador.
1971 - Incidente em Antares.
1973-1976 - Solo de Clarineta.

O primeiro foi o primeiro... romance que li em tipo 1967. Claro que, ao terminá-lo, já de curso pré-universitário concluído, decidi ser embaixador. Felizmente para a paz mundial, mudei de ideia... Este é o livro que reli mais vezes, talvez umas cinco, fora a que, com o novo corona vírus, lerei, digamos, até setembro. Por aquela época, li quase tudo de meus vários Éricos, uma que outra exceção em algum deles. O senhor embaixador é o que mais conheço, mas costumo dizer que meu preferido é Incidente em Antares, que li e reli apenas umas três vezes.

Minha epígrafe não pode ser mais Planeta Terra que poderíamos imaginar. O novo corona vírus (covid-19) vai mudar tudo. E já começou mantendo-nos enclausurados em nossas próprias moradias, levando-nos a considerar qualquer detalhe do dia-a-dia como algo merecedor de atenção e referência: hoje, ao escovar os dentes, caiu-me a tampinha do creme dental no chão com a boca virada para cima... O que mais espero é que meus queridos fiquem vivos, em segundo lugar, que conhecidos e desconhecidos também o façam e, em terceiro e humildemente que eu mesmo permaneça vivo e pensante.

DdAB
Imagem: Érico Veríssimo. Antigamente eu publicava a fonte das imagens, até que entendi que o leitor curioso pode facilmente rastreá-la na internet.

P.S. Ele tem o romance "O Prisioneiro" que nunca li nem lerei.

P.S.S. Às 12h15min de 26/mar/2020, fiz edições maiúsculas na postagem.

22 março, 2020

Ditos Gaúchos: tá no livrinho.

Resultado de imagem para dicionário gaudério

Puxa vida! Andei dizendo palavrões nas redes sociais por causa de uma postagem no blog sobre ditos gaúchos (aqui: http://19duilio47.blogspot.com/2020/02/ditos-gauchos-velhos-novos-e-inventados.html). Depois de ter falado em flato e seus sinômimos pauvres, voltei a minha condição circunspecta e não mais os falarei, ainda que não me furte a reproduzi-los para fins de direito. A viajação sobre os ditos começou com um desafio feito por Juarez Fonseca em seu mural do Facebook. Em continuação, entrei em contato com o livro:

FISCHER, Luis Augusto e ABREU, Iuri (2011) Dicionário gaudério; a sabedoria gaúcha em frases definitivas. Caxias do Sul: Belas Letras.

Organizado por temas, o dicionário tem uma variedade de formas de expressão desse povo solerte e altivo (ver nota 1). O primeiro tema, lógico, intitula-se "Abertura" e seu primeiro dito é:

Se abrir como fole de gaita.

Isto me interessa para o que farei lá adiante nesta postagem. Rigorosamente falando, entendi que há várias formas de expressão dos ditos gaúchos. Parece que eu mesmo, em noite de cachaça, escrevi o seguinte:

A saudade é como o minuano: seca os olhos, mas corta até a alma.

Não lembro se a frase é minha, mas se o for, tê-la-ei escrito/transcrito tipo em 1977 na vila Falmer da cidade de Brighton, no Reino Unido.

Mas chamam quase toda minha atenção os ditos que exemplifico ainda com o grupo "Abertura" com também com uma relação de equivalência, substituindo a igualdade sinonímica (?) por outra de hierarquia:

Mais arreganhado que cabeça de leitão assado.

Então comecei a viajar com duas relações de equivalência:

"... como...", que identifiquei com "=", igualdade e "Mais... que...", associada com ">", maior que. Por exemplo,

Aberto como cercado de pobre

transformei em

Mais aberto que cercado de pobre. 

Pois bem, na transcrição (ver Nota 2) transcrevi para uma planilha ~Excel (isto é, a planilha do Libre Office, do Ubuntu) todos os ditos no formato "Mais... que...", encontrando 496 sentenças, se não me enredei nas macegas. Ao converter aqueles do formato "... como...", achei mais 1040, contagem agora mais arbitrária. E ainda ficaram centenas de ditos que não se enquadram nas duas relações de equivalência que selecionei. Em uma boa meia dúzia delas, é possível que tenha faltado habilidade de minha parte para chegar a finais luzidios.

Pois vou publicar no que segue uma relação de 50 dessas "transformadas" que nem posso dizer serem minhas preferidas. Obviamente estou certo que meus leitores não apenas possuem o "Dicionário Gaudério" como tê-lo-ão (diria o velho Temer) "compulsado" compulsivamente e feito suas próprias viajações naquela inspirada publicação. Então sigamos nas 50 transformadas que selecionei (examinar a Nota 3).

1Mais à vontade que chancho no barro.
2Mais achatado que pelego de arreio de gordo.
3Mais agressivo que tigre baleado.
4Mais ancho que tacho pra guarapa.
5Mais antigo que manivela de poço.


6Mais apreciado que beijo de prima.
7Mais ardido que sova de urtiga.
8Mais atrapalhado que cusco em procissão.
9Mais bêbado que padre velho.
10Mais boca-aberta que burro que comeu urtiga.


11Mais carregado que pau de enchente.
12Mais coloreado que pasto de charqueada.
13Mais conhecido que teto de barbearia.
14Mais desesperado que cusco abichado no ouvido.
15Mais duro que ovo pra salada.


16Mais enrolado que linguiça pra presente.
17Mais esticado que suspensório de louco.
18Mais fácil de quebrar que rabo de lagarto.
19Mais farto que pulga em cachorro edêntulo.
20Mais feio que desmaio de corvo.


21Mais firme que prego em polenta.
22Mais ganicento que cusco que levou água fervendo.
23Mais gauderiante que cigano e candidato.
24Mais grosso que papel de enrolar prego.
25Mais grosso que rolha de poço.


26Mais grudado que carrapicho em cavanhaque de cabrito.
27Mais judiado que milho em pilão.
28Mais mal mandado que piá em churrasco.
29Mais mentiroso que guri pra entrar em baile.
30Mais nervoso que mascate multado.


31Mais pareio que um espeio.
32Mais parelho que letra de moça.
33Mais pesado que colar de melancia.
34Mais pestanuda que boneca de louça.
35Mais pobre que o anu que nem ninho tem.


36Mais preguiçoso que gato de açougue.
37Mais retesado que um arco estirado.
38Mais revolteado que bolacha em boca de velha.
39Mais revolteado que chapa em boca de velho.
40Mais risonho que acordeonista louca.


41Mais sabido que burro velho.
42Mais sério que bode em canoa.
43Mais sério que um tamanco.
44Mais sério que viúva em retrato.
45Mais sofrido que porco para subir em barranco.


46Mais tironeado da sorte como cola de matungo.
47Mais trovejante que turco caloteado.
48Mais velho e feio que tormenta de raio.
49Mais vergado que árvore nova na tormenta.
50Mais vergonhoso que cair do cavalo.

Como disse o prof. Fernando Ferrari, e la nave va.

DdAB
Nota 1 Ainda que outro tanto, diferentemente dos solertes e altivos, seja tosco e bizarro, pois acabo de ler que, em plena pandemia, a Unicef divulgou que três quartas partes da população mundial não tem acesso a água e sabão, not to speak of álcool gel.
Diz o JB:
Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), na média brasileira, 83,5% da população é servida por rede de água e apenas 52,4% tem o esgoto coletado, do qual somente 46% é tratado, conforme os dados mais recentes divulgados em fevereiro.
Ver aqui (https://www.jb.com.br/bem_viver/2020/03/1022911-dia-mundial-da-agua--bilhoes-nao-tem-acesso-a-agua-e-sabao.html).
Ok, ok, esta nota está mesmo virando um paper. Então vou acrescentando, podia ser outra nota, outra postagem, que volta e meia, ao entrar no mundo guasca do Rio Grande do Sul, lembro meu amado professor de História do Colégio Júlio de Caudilhos, o inesquecível Hugo Ramirez. Ele dizia que a tradição gaúcha não é para cultivar a turma espernear em torno de uma lança, mas para usar tecnologias modernas voltadas a elevar sua produtividade, se assim me expressando lhe reverendo a memória.
Segue-se logicamente que, quando faço troça de meus colegas que, a meu ver, têm o fetiche da industrialização, tenho em mente que um país desejoso de implementar a chamada indústria quatro ponto zero precisava antes ter esgotos. Quero dizer, todos os 100% da macacada. E não aqueles 46% que são privilegiados com o tratamento de seus dejetos. E álcool gel nas escolas  e papel higiênico nas escolas e, principalmente, escolas.

Nota 2 Hoje em dia postagens longas equivalem àquele senhor que, sem ter o que fazer em casa, contou os grãos de arroz de um pacote, constatando haver 8888 unidades. Contou de outro e se declarou prejudicado, pois encontrou apenas 8886. Para mim não foi esforço digitar boa parte das sentenças do dicionário de Fischer e Abreu.

Nota 3 O research programme criado a partir da postagem de JF deve continuar, em primeiro lugar, com a correção de meus eventuais deslizes. Depois, comparar a lista das 275 frases que publiquei com as "puras" de LAFIO e, por fim, comparar as que abandonaram o formato "... como..." com o original e examinar duplicações com as anteriores. De minha parte, comecei a comparação JF x LAFIO, mas tive que contar grãos de feijão em dois sacos ditos de 1kg que a mercearia acaba de entregar.

Notas avulsas:
Obviamente quem não entender alguma coisa do vocabulário que selecionei deve retornar ao "Dicionário Gaudério". o qual também serve como texto complementar à História Antropológica do Rio Grande do Sul.

Vim a presumir que naquela listagem que chamei de JF houve contribuições que se originaram de LAFIO e mesmo, o que é mais importante, quem fez a transposição da igualdade para a hierarquização.

A seleção dos 50 ditos que lancei aqui abandonou um critério que me pareceria mais justo: selecionar números aleatórios e escolher as frases de meu rol que lhes obedecessem.

20 março, 2020

O Peido e o Futuro do Planeta


Aparentemente perdi a vergonha de usar "nomes feios" nas redes sociais. Mas agora falo apenas o chulo nome que designa traques, puns, flatos ou meteorismo. Tanto sinônimo... Pois vou fazer uns cálculos que podem ter impacto sobre o futuro do planeta. Já me ouviram falar que "havia gente de mais"? Pois falei aqui (https://19duilio47.blogspot.com/2014/08/o-problema-humano-muita-gente.html):

Pois então há hoje sete bilhões de habitantes na "Espaçonave Terra".

E li na Superinteressante (referência volatilizou-se...) que cada ser humano produz, em média, 22 flatos por dia. 22 flatos por dia, um monte, um balão enorme, enquanto aquele "cheirinho" não esquenta. Ora,

7.000.000.000 habitantes x 22 traques por habitante por dia
= 154 bilhões de traques por dia

têm uma desagradável influência sobre a camada de ozônio. Olha o que disse a Wikipedia sobre o flato:

Este é um gás facilmente inflamável, incolor e contribui 21 vezes mais do que o dióxido de carbono para o efeito estufa.

Há ou não há gente demais? O que segue está escrito no Facebook e na postagem de 16 de março de 2020:

"Em boa medida, nesta questão, sou neo-malthusiano: com a tecnologia hoje existente, não se pode ter qualidade de vida com tanta gente. Prezo o conceito de "capacidade de carga do planeta". Mas a solução que vejo como democrática é dar aos pobres condições para ter o mesmo número de filhos que os ricos, nomeadamente, torná-los também ricos. Mas nem precisa serem tão ricos assim: basta pagar-lhes uma renda básica da cidadania que vão acabar-se tanto as migrações quanto a procriação irracional."

Agora cá entre nós, pensar em educação, saúde, segurança e saneamento para esses mais de sete bilhões, em tempos de revoltas chilenas e o novo corona vírus ambulante é o maior breve já produzido contra o neo-liberalismo. Renda básica universal, universalização da saúde (o SUS no Brasil é exemplo raro, ainda que os neo-liberais estivessem desesperados para acabar com ele), dos esgotos (serviços industriais de utilidade pública) e das cadeias (inclusive para juízes e políticos ladrões) é uma necessidade vital. E eu espero que os povos do planeta consigam entender que precisam transformar sua insatisfação em partidos que defendem este tipo de plataforma.

Sou metamorfósico ambulante, pois aqui reproduzi minha fé na impossibilidade de crescimento econômico ilimitado com a tecnologia existente. Ou troca-se o planeta ou desenvolve-se a tecnologia. Ou seja, um iluminista blogueiro. Por contraste entre neo-malthusiano e iluminista, vou levando a vida que estou escolhendo.

DdAB
A imagem não é o que você está pensando... É de um "aglomerado estelar", que assumirá, penso, o formato de um coração estilizado.

16 março, 2020

O Movimento do Corona Vírus


Escrevi no Facebook:

Vi há pouco aqui mesmo no Facebook uma pessoa dizendo que o verdadeiro problema do Brasil - corrupção, tráfico de influência, autoritarismo, censura à imprensa - é tudo culpa do PT. E que a ameaça do corona vírus é menor que essa bandalheira toda. Meu argumento é que o principal problema do corona vírus é sua capacidade de contágio.

Em meu (e de Brena Fernandez) livro de teoria dos jogos, quem o tem pode olhar a página 212 com a figura "População cooperadora invadida por predadores." Um bondoso que interage com um malvadeza vira malvadeza e todos seus contatos sucessivos contagiam com o mal os bondosos.

E aqui temos a visão dinâmica do processo: uma pessoa portando o vírus corona, ao interagir com uma sadia, passa-lhe o vírus. É o Washington Post:


E dei este link que, infelizmente, não será eterno, mas durante este período crítico estou certo de que ajudará quem pensa que estamos frente a uma situação de risco médio ou alto, mas não vê que é altíssimo:

https://www.washingtonpost.com/graphics/2020/world/corona-simulator/

E aí vieram comentários:
abcz
Nadia Bogoni Querido Professor Duilio De Avila Berni....às vezes penso que já vi todos os absurdos. Mas não, tenho que ser testada todos os dias! O cérebro dessa criatura também é culpa do PT????
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  • Nadia Bogoni Eitaaaaa que ando sem paciência para pangaré 🙈
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  • Duilio De Avila Berni Parece estar ficando claro que, entre aqueles 57 milhões que votaram no Bolsonaro, havia uma divisão que se torna patente quando vemos como eles reagem a esta ameaça à saúde pública.
    Para aquela negadinha, como a velha Tatcher, não existe comunidade, apenas indivíduos.
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  • Nadia Bogoni Duilio De Avila Berni perfeito como sempre Divo Duílio
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  • Duilio De Avila Berni Agora tá ficando claro para quem tem olhos que aquelas balelas de estado mínimo são um viés ideológico que não ajuda a humanidade a progredir. Mercado-estado-comunidade terão tamanhos diferentes em diferentes circunstâncias históricas e de desenvolvimento de um país. A triste 'verità' é que mercados falham (tipo poder de monopólio), o estado falha (tipo logrolling) e a comunidade falha (tipo linchamento).
    Por fim, considerando a situação do Chile e a situação do corona vírus, entendo ter chegado a hora de sepultar esse discurso anti-social-democrata de vez.
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  • Nadia Bogoni Duilio De Avila Berni perdemos de vez pra estupidez?????? E a bonecada querendo trazer os cubanos de volta...ahhhh e vão, certamente, precisar do SUS. Que é isso??????
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  • A imagem pode conter: texto
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Silvio Cezar Arend o meu livro é o de 2004, da Reichmann e Affonso... tenho que comprar este outro... rsrs
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  • Duilio De Avila Berni Obrigado, querido Silvio. Faço questão de te enviar uma cópia autografada (o que dificulta a venda de segunda mão, hahaha). Peço uns dias para meter a mão no "teu" exemplar: o corona vírus me tirou da rua...
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  • Nadia Bogoni Duilio De Avila Berni
    Professor olha só que legal isso que recebi...: “E as pessoas ficaram em casa. E leram livros, ouviram, descansaram, se exercitaram, fizeram arte, jogaram jogos, aprenderam novas maneiras de existirem e ficaram paradas. E então o
    uviram mais profundamente. Alguns meditavam, outros rezavam, já outros dançavam. Alguns encontraram as suas próprias sombras. E o povo começou a pensar de maneira diferente.

    O povo foi curado. E, na ausência de pessoas vivendo na ignorância, perigosas, com a mente e o coração fechados, a Terra começou a se curar.

    E, quando o perigo passou, as pessoas se uniram novamente, sofreram com as suas perdas, fizeram novas escolhas, sonharam novas imagens e criaram novas maneiras de se viver e curar a terra completamente, como haviam sido curadas”. ~ Kitty O Meara
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  • Duilio De Avila Berni Nadia Bogoni Na madrugada, sono perdido, leio esta maravilhosa mensagem e reafirmo minha crença (iluminista) de crença no progresso e na racionalidade. E antes ia falar, achando ter tudo a ver, que "havia gente demais". Em boa medida, nesta questão, sou neo-malthusiano: com a tecnologia hoje existente, não se pode ter qualidade de vida com tanta gente. Prezo o conceito de "capacidade de carga do planeta". Mas a solução que vejo como democrática é dar aos pobres condições para ter o mesmo número de filhos que os ricos, nomeadamente, torná-los também ricos. Mas nem precisa serem tão ricos assim: basta pagar-lhes uma renda básica da cidadania que vão acabar-se tanto as migrações quanto a procriação irracional.
abcz
DdAB
Na imagem lá do início, vemos um abobado sendo seguido por milhares de abobados.