Puxa vida! Andei dizendo palavrões nas redes sociais por causa de uma postagem no blog sobre ditos gaúchos (aqui: http://19duilio47.blogspot.com/2020/02/ditos-gauchos-velhos-novos-e-inventados.html). Depois de ter falado em flato e seus sinômimos pauvres, voltei a minha condição circunspecta e não mais os falarei, ainda que não me furte a reproduzi-los para fins de direito. A viajação sobre os ditos começou com um desafio feito por Juarez Fonseca em seu mural do Facebook. Em continuação, entrei em contato com o livro:
FISCHER, Luis Augusto e ABREU, Iuri (2011) Dicionário gaudério; a sabedoria gaúcha em frases definitivas. Caxias do Sul: Belas Letras.
Organizado por temas, o dicionário tem uma variedade de formas de expressão desse povo solerte e altivo (ver nota 1). O primeiro tema, lógico, intitula-se "Abertura" e seu primeiro dito é:
Se abrir como fole de gaita.
Isto me interessa para o que farei lá adiante nesta postagem. Rigorosamente falando, entendi que há várias formas de expressão dos ditos gaúchos. Parece que eu mesmo, em noite de cachaça, escrevi o seguinte:
A saudade é como o minuano: seca os olhos, mas corta até a alma.
Não lembro se a frase é minha, mas se o for, tê-la-ei escrito/transcrito tipo em 1977 na vila Falmer da cidade de Brighton, no Reino Unido.
Mas chamam quase toda minha atenção os ditos que exemplifico ainda com o grupo "Abertura" com também com uma relação de equivalência, substituindo a igualdade sinonímica (?) por outra de hierarquia:
Mais arreganhado que cabeça de leitão assado.
Então comecei a viajar com duas relações de equivalência:
"... como...", que identifiquei com "=", igualdade e "Mais... que...", associada com ">", maior que. Por exemplo,
Aberto como cercado de pobre
transformei em
Mais aberto que cercado de pobre.
Pois bem, na transcrição (ver Nota 2) transcrevi para uma planilha ~Excel (isto é, a planilha do Libre Office, do Ubuntu) todos os ditos no formato "Mais... que...", encontrando 496 sentenças, se não me enredei nas macegas. Ao converter aqueles do formato "... como...", achei mais 1040, contagem agora mais arbitrária. E ainda ficaram centenas de ditos que não se enquadram nas duas relações de equivalência que selecionei. Em uma boa meia dúzia delas, é possível que tenha faltado habilidade de minha parte para chegar a finais luzidios.
Pois vou publicar no que segue uma relação de 50 dessas "transformadas" que nem posso dizer serem minhas preferidas. Obviamente estou certo que meus leitores não apenas possuem o "Dicionário Gaudério" como tê-lo-ão (diria o velho Temer) "compulsado" compulsivamente e feito suas próprias viajações naquela inspirada publicação. Então sigamos nas 50 transformadas que selecionei (examinar a Nota 3).
1 | Mais à vontade que chancho no barro. |
2 | Mais achatado que pelego de arreio de gordo. |
3 | Mais agressivo que tigre baleado. |
4 | Mais ancho que tacho pra guarapa. |
5 | Mais antigo que manivela de poço. |
6 | Mais apreciado que beijo de prima. |
7 | Mais ardido que sova de urtiga. |
8 | Mais atrapalhado que cusco em procissão. |
9 | Mais bêbado que padre velho. |
10 | Mais boca-aberta que burro que comeu urtiga. |
11 | Mais carregado que pau de enchente. |
12 | Mais coloreado que pasto de charqueada. |
13 | Mais conhecido que teto de barbearia. |
14 | Mais desesperado que cusco abichado no ouvido. |
15 | Mais duro que ovo pra salada. |
16 | Mais enrolado que linguiça pra presente. |
17 | Mais esticado que suspensório de louco. |
18 | Mais fácil de quebrar que rabo de lagarto. |
19 | Mais farto que pulga em cachorro edêntulo. |
20 | Mais feio que desmaio de corvo. |
21 | Mais firme que prego em polenta. |
22 | Mais ganicento que cusco que levou água fervendo. |
23 | Mais gauderiante que cigano e candidato. |
24 | Mais grosso que papel de enrolar prego. |
25 | Mais grosso que rolha de poço. |
26 | Mais grudado que carrapicho em cavanhaque de cabrito. |
27 | Mais judiado que milho em pilão. |
28 | Mais mal mandado que piá em churrasco. |
29 | Mais mentiroso que guri pra entrar em baile. |
30 | Mais nervoso que mascate multado. |
31 | Mais pareio que um espeio. |
32 | Mais parelho que letra de moça. |
33 | Mais pesado que colar de melancia. |
34 | Mais pestanuda que boneca de louça. |
35 | Mais pobre que o anu que nem ninho tem. |
36 | Mais preguiçoso que gato de açougue. |
37 | Mais retesado que um arco estirado. |
38 | Mais revolteado que bolacha em boca de velha. |
39 | Mais revolteado que chapa em boca de velho. |
40 | Mais risonho que acordeonista louca. |
41 | Mais sabido que burro velho. |
42 | Mais sério que bode em canoa. |
43 | Mais sério que um tamanco. |
44 | Mais sério que viúva em retrato. |
45 | Mais sofrido que porco para subir em barranco. |
46 | Mais tironeado da sorte como cola de matungo. |
47 | Mais trovejante que turco caloteado. |
48 | Mais velho e feio que tormenta de raio. |
49 | Mais vergado que árvore nova na tormenta. |
50 | Mais vergonhoso que cair do cavalo. |
Como disse o prof. Fernando Ferrari, e la nave va.
DdAB
Nota 1 Ainda que outro tanto, diferentemente dos solertes e altivos, seja tosco e bizarro, pois acabo de ler que, em plena pandemia, a Unicef divulgou que três quartas partes da população mundial não tem acesso a água e sabão, not to speak of álcool gel.
Diz o JB:
Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), na média brasileira, 83,5% da população é servida por rede de água e apenas 52,4% tem o esgoto coletado, do qual somente 46% é tratado, conforme os dados mais recentes divulgados em fevereiro.
Ver aqui (https://www.jb.com.br/bem_viver/2020/03/1022911-dia-mundial-da-agua--bilhoes-nao-tem-acesso-a-agua-e-sabao.html).
Ok, ok, esta nota está mesmo virando um paper. Então vou acrescentando, podia ser outra nota, outra postagem, que volta e meia, ao entrar no mundo guasca do Rio Grande do Sul, lembro meu amado professor de História do Colégio Júlio de Caudilhos, o inesquecível Hugo Ramirez. Ele dizia que a tradição gaúcha não é para cultivar a turma espernear em torno de uma lança, mas para usar tecnologias modernas voltadas a elevar sua produtividade, se assim me expressando lhe reverendo a memória.
Segue-se logicamente que, quando faço troça de meus colegas que, a meu ver, têm o fetiche da industrialização, tenho em mente que um país desejoso de implementar a chamada indústria quatro ponto zero precisava antes ter esgotos. Quero dizer, todos os 100% da macacada. E não aqueles 46% que são privilegiados com o tratamento de seus dejetos. E álcool gel nas escolas e papel higiênico nas escolas e, principalmente, escolas.
Nota 2 Hoje em dia postagens longas equivalem àquele senhor que, sem ter o que fazer em casa, contou os grãos de arroz de um pacote, constatando haver 8888 unidades. Contou de outro e se declarou prejudicado, pois encontrou apenas 8886. Para mim não foi esforço digitar boa parte das sentenças do dicionário de Fischer e Abreu.
Nota 3 O research programme criado a partir da postagem de JF deve continuar, em primeiro lugar, com a correção de meus eventuais deslizes. Depois, comparar a lista das 275 frases que publiquei com as "puras" de LAFIO e, por fim, comparar as que abandonaram o formato "... como..." com o original e examinar duplicações com as anteriores. De minha parte, comecei a comparação JF x LAFIO, mas tive que contar grãos de feijão em dois sacos ditos de 1kg que a mercearia acaba de entregar.
Notas avulsas:
Obviamente quem não entender alguma coisa do vocabulário que selecionei deve retornar ao "Dicionário Gaudério". o qual também serve como texto complementar à História Antropológica do Rio Grande do Sul.
Vim a presumir que naquela listagem que chamei de JF houve contribuições que se originaram de LAFIO e mesmo, o que é mais importante, quem fez a transposição da igualdade para a hierarquização.
A seleção dos 50 ditos que lancei aqui abandonou um critério que me pareceria mais justo: selecionar números aleatórios e escolher as frases de meu rol que lhes obedecessem.
3 comentários:
Sinto não ter cultura suficiente para entender tudo que escreves mas continuando a ler teus escritos um dia CERTAMENTE tê-la-ei. OIGALETÊ PORQUERA!!
Querida prima Neli: fiquei muito feliz com a tristeza de saber que meu escrito é empolado feito burro carregador de saco de trigo que foi furado em tiroteio... Ou melhor, sabes que teu primo é professor e,se for o caso, explico tintim por tintim todas as complicações que invento.
A verità é que tenho o hobby mentira, o que me faz circular por várias esferas da cultura humana, todas com limitações grotescas...
A felicidade sobressai quando leio algo bem-humorado como escreveste!
Abraços encurralados feito porco no canteiro das batata.
Mal sabia eu que aquele confinamento que eu vivia em 22 de março de 2020 estaria durando até hoje e com apenas moderadas perspectivas de concluir-se. Para mim, o velho Bolsonaro deve ter votado em si mesmo para presidente da república. Portanto, incrimino-o da mesma forma que o faço relativamente a seus 57 milhões de eleitores. Ainda assim, para minha alegria, volta e meia vejo participantes de minha rede abjurando suas posições daquela eleição em que rejeitaram Fernando Haddad.
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