26 março, 2020

Irrealidade Cotidiana



EPÍGRAFE:
As pessoas de bem vão continuar votando nos canalhas [...].
Maia, personagem de Número zero, o romance impagável de Umberto Eco. Tá na p.207, a última.

Meu amor por Umberto Eco iniciou há uns bons 35 anos, quando li "Viagem na Irrealidade Cotidiana", que me foi emprestado por Maria Lucrécia Callandro, ex-colega de FEE e PUCRS. Depois li mais montes do autor italiano, patrimônio da humanidade. E até o vi num ciclo de conferências em Oxford, tipo 1992. E foi à luz desse carimbo de irrealidade cotidiana que interpretei a fala do presidente da república no outro dia, menosprezando o que dizem os estudiosos sobre a letalidade do novo corona vírus, agora o covid-19. Duas barbaridades: primeiro, falar em gripezinha e resfriadinho. Parece louco, resfriadinho, matando mais que raticida? Depois, querendo que os jovens voltem às escolas e os trabalhadores às fábricas. Parece louco, querendo que pelados e maconheiros submerjam nas garras da doença, do contágio ativo e passivo? Bolsonaro, a meu ver, é um herdeiro das mais trágicas e apavorantes histórias de ficção científica que já foram escritas e bota-nos nessa irrealidade cotidiana em que vive com a inserção mais distópica que alguém poderia imaginar. Não é à toa que Maia disse aquilo: um canalha que foi eleito por gente que não pensa cientificamente.

E que é comportar-se como quem já tem algum lustro de pensamento racional e científico. Não precisamos ser cientistas para entender o significado brasileiro da palavra ignorante. Andei escrevendo que não posso ser chamado de ignorante por desconhecer, por exemplo, a distância média do Sol a Saturno, ou mesmo quantos satélites tem o planeta romântico, ou ainda a palavra "chorro". O que faz um ignorante de escol é desprezar a opinião dos cientistas, dos terráqueos que estudam os diferentes assuntos. Para Bolsonaro, não importa se o seguidor é, lá vem o velho Discepolo, "ignorante, sábio o chorro, todo es igual".

Quem serão aqueles 35% dos brasileiros entrevistados no outro dia pelo Datafolha que apoiam o tratamento dado pelo Bolsonaro à crise do covid-19? "35%, e logo, pensei cá comigo, estamos perdidos." Mas isto não é tudo, isto não começou ontem. E havia mais de 30% que apoiavam sua candidatura a presidente da república em 2019, se a memória não falha nesses dois números.

Esses dois números são assustadores. O segundo, aqueles 30% de apoio incondicional, não foram claramente entendidos pelo lulismo, que manteve aquela utopia de Lula, em plena cadeia, poder ser candidato, e -mais inexplicável ainda- não ter revelado o nome de seu candidato a vice-presidente, não ter apresentado manifesto eleitoral, essas coisas... eleitorais. Ainda desconsolado com a acachapante derrota de Fernando Haddad no segundo turno em 2018,  em julho de 2019, comprei o livro, publicado em 2019 mesmo, e que nas páginas 121, 122 e 124 fala em abril de 2019. Ou seja, comprei o livro ainda com a tinta da impressão fresquinha. Bom e mau...

MOURA, Maurício e CORBELLINI, Juliano (2019) A eleição disruptiva; por que Bolsonaro venceu. São Paulo: Record.

Não vou cuspir no prato..., ainda que não esteja com as coisas boas do livro na cabeça, neste momento. Però, esse contexto de boa base documental me fez pensar naquele ponto que levantei: como é que Lula andava levando a sério sua candidatura, ainda meio ano antes da eleição se nem tinha indicado chapa, sua chapa, seu companheiro de chapa, seu candidato a vice-presidente?

Pois então. Aqueles 30% de apoio a Bolsonaro equivalem a outros 30% de apoio incondicional à candidatura petista. E mesmo os coeficientes de rejeição nas pesquisas pré-eleitorais para Lula e Bolsonaro eram mais ou menos as mesmas com também 30%. E fiquei pensando na análise FOFA (forças, oportunidades, fraquezas e ameaças, o SWOT, strenghts, weaknesses, opportunities e threats). Vou falar resumidamente: o que nos enfraquece e o que fortalece nossos adversários.

FRAQUEZAS:
. a não-candidatura de Lula e o amorcegamento do processo eleitoral.
. a incapacidade de varrer da esquerda para a direita, dado profundo ódio de boa parte do eleitorado (inclusive negros, mulheres, LGTBs, e tudo que é tipo de grupo de excluídos).
. o fato de que a esquerda não ingressou unida no pleito, pois tem muito partido e, portanto, muito ego, no sistema político brasileiro.

OPORTUNIDADES LÁ DELES:
. essa plasticidade dos 40 partidos políticos que infestam o território nacional veio a navegar num bandwagon effect, quanto mais gente se associava à candidatura Bolsonaro, mais gente era atraída e mais partidos nanicos pulavam no colo dele. Nesses 35% de apoio ao "isolamento vertical" tem mesmo gente autoritária, outra simplesmente neoliberal e -creio- uma boa percentagem de ignorantes, gente que, como Bolsonaro, não estuda e não vê os méritos dos que estudam, dos que prezam a ciência para resolver problemas mundanos.
. o anti-petismo, o anti-lulismo, que levaram gente a preferir escolher o diabo a verem Lula, ou o PT, novamente ungidos à definição dos rumos da vida brasileira.

Não estou dizendo que o lulismo fez pouco. Fez muito, deixou de fazer, especialmente no campo da política, mas também da honestidade, muito. O que fez deu-me a lista que publiquei em (https://19duilio47.blogspot.com/2018/02/lula-la-e-sem-roba.html).

O que fez de errado ainda preciso compilar aqui e ali, embora considere que essa tarefa deva caber a um cientista político de esquerda e não a um economista político de esquerda. Tenho dito que sou tão da esquerda, mas tão da esquerda e tão inquieto que já têm-me acusado de ter iniciado a vida com uma posição de esquerda, ter dado um giro em todo espectro político, virando direita. Respondo que, se o fiz, foi para, cartesianamente, repensar tudinho desde o princípio. E, em assim sendo, certamente fiz os 360 graus completos, só que hoje ocupo uma posição de infinitamente pequena distância do ponto original. Mais sabidinho, claro. Isto significa, na filosofia política, o igualitarismo e, na economia política, o emprego.

E o covid-19? E as eleições municipais? Parece óbvio: "as pessoas de bem vão continuar votando nos canalhas."

DdAB
Aquele trio da imagem lá do início é meu trio de ouro, ou múltiplas consignas para um verdadeiro programa de esquerda. Aliás, entendo que hoje a OMS é a mais legítima representante do governo mundial. E entendo que este vai demorar, pois a mobilidade da mão-de-obra é um fantasma, um fantasma que assola a Europa, o mundo, um fantasma que vai dar samba!

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