03 março, 2020

Astronomia Arcaica: Fósforo e Vésper

Vênus e Terra

Aviso: Postagem longa seguindo a ordem cronológica dos acontecimentos.

Tempo T0
No ano de 1959, despedi-me da vida tropical que levava em Campo Grande, Matto Grosso. Pelo atropelo com o movimento sobre o Trópico de Capricórnio, quem ficava abaixo e quem ficava acima, acabei reprovado na primeira série do curso que, então, se chamava ginásio. Já houve outro designativo em meu horizonte de vida, não lembro, que depois passou a chamar-se parte do ensino de primeiro grau e agora (por quanto tempo, sporca madonna?) chamado de ensino fundamental. Bem, era o ginásio, eu fora reprovado e foi-me dada a chance de repeti-lo no Ginásio São José, da progressista Jaguari (ainda que não tenha saído do lugar desde então, já consagrado o abandono do nome Jaguary, jaguar pequeno, como ouvi falar). Ou  sequenciamento temporal está errado e tudo aconteceu, já em meu segundo ano de Jaguary e segundo ano do ginásio. Por estranho, decorei o seguinte verso que volta e meia dá badaladas em minha mente, ou seja, abala-me um estado mental:

Abrem-se flores, Vésper desponta, cantam os anjos: "Ave Maria".

Minhas pesquisas gnosiológicas, por assim dizer, nunca me levaram a destrinçar que diabos era aquilo, de que demônios se falava. Um tanto, desconfio: flores, abrir, cantar, anjos e até a velha oração do Ave, Maria. E dei-me por satisfeito por entender que Vésper é a estrela da manhã, hora do dia em que "abrem-se flores". Muito errado estava, como veremos em seguida. Mas cutucava-me "as ideia" o adjetivo "vespertino" que eu sabia tratar-se de evento da tarde. Ouvira mesmo falar em crepúsculo matutino e crepúsculo vespertino. Então flor não abre de tarde...

Tempo T1
Cultivando minha especialização em Introdução à Filosofia, andei lendo e seguirei até terminá-lo o fascinante livro:

GALVÃO, Pedro org. (2017) Filosofia; uma introdução pro disciplinas. Lisboa: Edições 70.

chegando ao capítulo 8:

MARQUES, Teresa e GARCÍA-CARPINTEIRO, Manuel. Filosofia da linguagem. pp.283-340.

Resumo até agora: eu tinha na cabeça que, quando as flores se abrem, desponta no céu Vênus. Aí, estudando introdução à filosofia, li o seguinte trecho das pp.301-302:


Tudo transcrito tintim por tintim, aqueles sinais de menor e maior (o sistema recusou-os), o "facto", o "Vénus", etc. Cada vez confio menos em minha memória, à medida que Th é maior que To (isto é, que hoje sou mais velho que ontem), mas confiava o suficiente naquele verso que apenas hoje vim a identificar como de Fagundes Varella. E tudo confirmado pelos verbetes correspondentes da Wikipedia em inglês:

Vesper means evening in Classical Latin. [Por extensão, estrela da tarde.]

Phosphorus (Greek Φωσφόρος Phōsphoros) is the Morning Star, the planet Venus in its morning appearance. Φαοσφόρος (Phaosphoros) and Φαεσφόρος (Phaesphoros) are forms of the same name in some Greek dialects.

Tempo T2
O que antes desconhecia, agora posso atribuir a Fagundes Varella himself. Olha o poema dele. Aqui [tristemente o site sumiu. Agora tireo o poema daqui]. E dizia: 
encontramos o poema de Fagundes Varela (os gramáticos de 1941 já lhe cassaram um L, Varella)

Ave Maria
Fagundes Varela

A noite desce – lentas e tristes
Cobrem as sombras a serrania,
Calam-se as aves, choram os ventos,
Dizem os gênios: – Ave! Maria!

Na torre estreita de pobre templo
Ressoa o sino da freguesia,
Abrem-se as flores, Vesper desponta,
Cantam os anjos: – Ave! Maria!

No tosco alvergue de seus maiores,
Onde só reinam paz e alegria,
Entre os filhinhos o bom colono
Repete as vozes: – Ave! Maria!

E, longe, longe, na velha estrada,
Pára e saudades à pátria envia
Romeiro exausto que o céu contempla,
E fala aos ermos: – Ave! Maria!

Incerto nauta por feios mares,
Onde se estende névoa sombria,
Se encosta ao mastro, descobre a fronte,
Reza baixinho: – Ave! Maria!
Nas soledades, sem pão nem água,
Sem pouso e tenda, sem luz nem guia,
Triste mendigo, que as praças busca,
Curva-se e clama: – Ave! Maria!

Só nas alcovas, nas salas dúbias,
Nas longas mesas de longa orgia
Não diz o ímpio, não diz o avaro,
Não diz o ingrato: – Ave! Maria!

Ave! Maria! – No céu, na terra!
Luz da aliança! Doce harmonia!
Hora divina! Sublime estância!
Bendita sejas! – Ave! Maria!

Tempo T3
Tentando salvar nosso velho e bom Luis Nicolau, andei pensando, nessa linha do sequenciamento temporal, e fiz o seguinte poema (ainda sem título):

Abrem-se flores,
Pois o Sol acaba de nascer,
Ofuscando Fósforo,
O nome de Vênus em seu fulgir de manhã
Tomamos nosso café da manhã,
Escovamos os dentes,
Trocamos o pijama ou roupão
pelo nosso uniforme escolar.
Pegamos o ônibus escolar
(provisão pelo prefeito social-democrata)
Etc., etc.
Almoçamos, mais aulas, que o negócio
Era de dois turnos (na social-democracia), tudo
Diferente no mundo idílico que me foi prometido e nunca,
Nunca de núncaras, foi entregue, nem será.
Recreio, eba
Mais aulas, buá
São 5h00 da tarde:
hora de ir embora, eba, eba, eba!
Pois Vésper desponta
Cantam os anjos: Ave-Maria.

DdAB
P.S. Outro aviso: a imagem lá no início retrata os planetas Vênus (esquerda) e Terra (direita). Certamente Vênus tem uma coloração arbitrária. A Terra, como sabemos, é azul, supondo que o Yuri Gagárin não era daltônico.

P.S.S. Escrevo em 6/abr/2021, 9h10min. Veio-me à cabeça o nome "vesper" e queria lembrar seu alias. E não lembrei, mas agora sei, "fósforo". Pois vim ao blog, pois ainda tinha quente na memória esta postagem. Ativei o motor de busca do canto superior esquerdo da página inicial do blog. E eis que encontro aqui uma deliciosa explicação a minha pergunta feita diretamente ao prof. Conrado de Abreu Chagas. E lá encontramos sua refinada resposta. 

P.S.S.S. Não é que não é não que hoje, 25 de setembro de 2021 (Ano II da Pandemia do Corona-Vírus-19), estou dando uma olhada em meus 100 livros de introdução à filosofia (matéria em que me declaro PhD) e leio na folha de rosto de 

LAW, Stephen (c.2011) Filosofia; guia ilustrado Zahar. Rio de Janeiro: Zahar.

E que lá li? Lá na página 208, começamos tomando contato com a Lei de Leibnitz: 'objetos idênticos devem compartilhar todas as mesmas propriedades'. Então sigamos lendo o Mr. Law: 

Filósofos e cientistas frequentemente consideram afirmações de identidade. P.ex., uma antiga descoberta astronômica foi que Hesperus, a estrela da tarde, é idêntica a Phosphorus, a estrela da manhã. O que pareciam ser dois objetos distintos revelou-se ser um só - o planeta que hoje chamamos Vênus.

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