24 março, 2020

Meus Amores com Érico


EPÍGRAFE
Olhos e ouvidos atentos, Clarissa vê e ouve tudo o que se passa a seu redor. Nada lhe escapa à percepção. A galinha carijó bota mais ovos que a galinha preta; a galinha amarela, porém, bota menos ovos que a galinha preta. Ontem o Mandarim [o papagaio da casa] estava mais alegre que hoje. A semana passada o Barata [hóspede da pensão de d. Eufrasina, a.k.a. Zina] estava com mais apetite que nesta semana. Nos canteiros há mais papoulas que rosas. Faz quatro dias que as crianças da casa vizinha não brincam de roda no jardim. Este mês só choveu dois dias.
   É como um prisioneiro que - privado do espetáculo integral da vida, das paisagens livres e largas - se distrai com examinar detidamente os detalhes mínimos de sua cela.
CLARISSA, páginas 152-153. [edição da Companhia das Letras.]

O gaúcho, quando faz um elogio, mete logo uma crítica antes ou depois. Gosto muito mais de Graciliano Ramos que de Érico Veríssimo. Mas vou falar do segundo. Há cerca de 10 anos, fiz um voto de ler Érico no outono, todos os outonos. Tudo começou em meu primeiro ano de aposentadoria da PUCRS. Naquele ano, comprei Clarissa em 15/abr/2008 e concluí a leitura em uma semana. Talvez tenha sido esta a única atividade a que me dediquei, sei lá. Depois segui em meu périplo anos afora. Já li a lista que já vou mostrar umas duas ou três vezes.

Dias atrás, em pleno verão, dei-me por saudoso daquela família Terra-Cambará de O Tempo e o Vento. Mas decidi começar do começo (beguin the beguin, not to be confounded with beguin the beguine), o meu começo, o que defini como "meu  primeiro Érico":

"Meu primeiro Érico"

1933 - Clarissa.
1935 - Caminhos cruzados. 
1936 - Música ao longe.
1936 - Um lugar ao sol.

Trata-se das histórias de dois pares românticos: Clarisse e Vasco e Fernanda e Noé. Dizem que Fernanda está no grupo das grandes mulheres da literatura de Érico, ao lado de Ana Terra, Biana Cambará e Maria Valéria Terra Cambará.

"Meu segundo Érico"
1938 - Olhai os lírios do campo 
1943 - O resto é silêncio

Eliminei deste meu segundo Érico o livro Saga, de 1940, pois, segundo entendo, o próprio Érico abjurou-o. Agora temos dois pares românticos independentes. Primeiro vêm Olívia e Eugênio e em segundo lugar, não se trata bem de uma dupla romântica, pois temos a história da garota suicida e Tônio Santiago, este sendo, talvez, o primeiro e grandioso physique du rôle do próprio Érico. Tônio tem um filho que parece ter os genes de Eduardo, de O  arquipélago. Especialmente O resto é silêncio leva-me a crer que a composição de O Tempo e o Vento já estava fermentando na cabeça do escritor cruz-altense, gaúcho e brasileiro.

"Meu terceiro Érico"
1941 - Gato preto em campo de neve.
1946 - A volta do gato preto.
1957 - México.
1969 - Israel em abril.

Pra quem não sabe, este é o ciclo dos livros de viagem que ele escreveu. Ainda há, nas memórias (lá em "Meu quinto Érico"), uma boa aproximação do esmero com que ele parece ter planejado suas viagens. Desta vez, especialmente Portugal e depois outros países europeus. Em boa medida, meu doutorado no exterior tem muito a ver com o primeiro "Gato Preto". Ao ler sobre uma visita que o romancista fez à Fundação Rockfeller (?) em Nova York, as diferentes nacionalidades ali presentes, pensei que meu paraíso chegaria no dia em que eu morasse e estudasse no exterior. Tentei montes e, em 1977, com cinco anos da graduação em economia e o mestrado porto-alegrense, fui-me à University of Sussex, de onde saquei meu M.A.. E depois voltei...

"Meu quarto Érico"
[Trilogia que compõe a obra "O Tempo e o Vento" em sete volumes]
1949 - O Continente.
1951 - O Retrato.
1961-62 - O Arquipélago.

O leitor refinado sabe que estou falando da trilogia que compõe "O tempo e o vento." E era dessa turma que revelei lá no início estar saudoso.

"Meu quinto Érico"
1965 - O senhor embaixador.
1971 - Incidente em Antares.
1973-1976 - Solo de Clarineta.

O primeiro foi o primeiro... romance que li em tipo 1967. Claro que, ao terminá-lo, já de curso pré-universitário concluído, decidi ser embaixador. Felizmente para a paz mundial, mudei de ideia... Este é o livro que reli mais vezes, talvez umas cinco, fora a que, com o novo corona vírus, lerei, digamos, até setembro. Por aquela época, li quase tudo de meus vários Éricos, uma que outra exceção em algum deles. O senhor embaixador é o que mais conheço, mas costumo dizer que meu preferido é Incidente em Antares, que li e reli apenas umas três vezes.

Minha epígrafe não pode ser mais Planeta Terra que poderíamos imaginar. O novo corona vírus (covid-19) vai mudar tudo. E já começou mantendo-nos enclausurados em nossas próprias moradias, levando-nos a considerar qualquer detalhe do dia-a-dia como algo merecedor de atenção e referência: hoje, ao escovar os dentes, caiu-me a tampinha do creme dental no chão com a boca virada para cima... O que mais espero é que meus queridos fiquem vivos, em segundo lugar, que conhecidos e desconhecidos também o façam e, em terceiro e humildemente que eu mesmo permaneça vivo e pensante.

DdAB
Imagem: Érico Veríssimo. Antigamente eu publicava a fonte das imagens, até que entendi que o leitor curioso pode facilmente rastreá-la na internet.

P.S. Ele tem o romance "O Prisioneiro" que nunca li nem lerei.

P.S.S. Às 12h15min de 26/mar/2020, fiz edições maiúsculas na postagem.

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