08 agosto, 2015

Ulysses: a última sentença


Querido diário:

Como sabe quem me frequenta, declaro-me especialista na primeira sentença de "Ulysses", aquela encrenca de "sobranceiro, o fornido Buck Mulligan chegou-se no alto da escada, portando uma tigela com espuma de barba em que uma navalha se entrecruzava sobre um espelho", mais ou menos a tradução de Antônio Houaiss (rodapé 1).

Na última (e concorrida) postagem daqui) que fiz sobre o assunto, encarreguei-me de começar também a me especializar na segunda sentença, assim traduzida por Houaiss:

Seu roupão amarelo, desatado, se enfunava por trás da doce brisa da manhã.

E que dirá dela a edição da Relógio D'Água, livraço que pretendo ler todinho?

Um roupão amarelo, descingido, era gentilmente sustido detrás pela suave brisa matinal.

Pois agora começa a encrenca. Última frase? Aquela sem pontuação, aquela infinita, aquele monólogo de Molly Bloom? Aquela, aquele, aquelíssima, aquelemesmo!

Diz-nos Houaiss na página 957 da edição Civilização Brasileira do Rio de Janeiro de 2003:

Trieste-Zurique-Paris, 1914-1921.

Ok, ok, não era bem isto, hehehe. Nem vou falar no resto da turma (Rodapé 2). Ou seja, comecei a disfarçar, a fim de não pagar o que prometi, nomeadamente, citar a última sentença inteira do livro, uma vez que me declaro especialista na primeira e começo meus estudos, voltados a especializar-me na segunda. Mas não esqueci e vejamos o que posso fazer. Iniciemos com Houaiss propriamente.

Ou melhor, propus-me a iniciar com a tradução de Antônio Houaiss e não sei se antes ou apenas agora é que vi que ele não usa qualquer ajuda para dividir o texto em capítulos, os 18 tradicionais capítulos endossados por praticamente toda a tribo. Aparentemente, Houaiss pensa que há apenas três capítulos no "Ulysses", e não 18 capítulos distribuídos em três partes. Talvez -- meu conhecimento não chega a tanto -- o primeiro tradutor para a língua portuguesa tenha-se baseado em alguma das edições em inglês cuja cópia não me foi acessível, como o foram a Penguin e a de Gabler.

Com isto, perdemos uma discussão entre os comentadores. Esta diz respeito à presença ou omissão de um ponto gordo (ou seja, não é um ponto de sinal de pontuação) no final do capítulo 17 (que Houaiss nem tem...). Então, depois do ponto, é aí que começa o capítulo 18, reconhecido como o que expressa o monólogo de Molly. Como sei estas coisas sem ser sabidinho? É que, antes do ponto, tem uma pergunta, naquele capítulo 17 que dizem ser a técnica jesuítica de aprendizado, contendo apenas perguntas e respostas. Então, repito, o capítulo termina com uma pergunta:

Onde?

E depois dela é que vem o ponto gordo. E aí começa o capítulo 18, com um início, como é natural no restante do volume, não indentado e não capitulado. E a primeira palavra, isto é fácil de constatar, é "Sim". Mas isto está longe de formar uma frase, longe prá caramba. Vai lá, Houaiss:

Sim porque ele nunca fez uma coisa como essa antes como pedir pra ter seu desjejum na cama com um par de ovos desde o Hotel City Arms quando ele costumava fingir que estava de cama com voz doente fazendo fita para se fazer interessante para aquela velha bisca da senhora Riordan que ele pensava que tinha ela no bolso e que nunca deixou pra nós nem um vintém tudo pra missas para ela e para alma dela grande miserável que era com medo até de soltar quatro xelins para seu espírito metilado me contando todos os achaques dela com aquela velha de falação dela sobre política e tremores de terra e o fim do mundo que a gente tenha um pouco de distração pelo menos antes Deus ajude o mundo se todas as mulheres fossem como ela contra roupa de banho e decotes é claro que ninguém queria ver ela com isso eu creio que ela era piedosa porque nenhum homem havia de olhar para ela duas vezes eu espero que não vou ser nunca [...]

Parei, é a metodologia, pois parece que, definitivamente, aquele assunto "dele", ou seja, Leopold, deitado, como no tempo do City Arms Hotel, se fazendo de doente, e por aí vai. Então este é o início da última frase, enorme, enormemente enorme, sem pontos, vírgulas, travessões, o que seja, o que fosse.

E como é que o Relógio D'Água traduziu? Pois bem. Pois então. Pois é, pois sim, pois não. Pois apenas agora é que notei que o Relógio D'Água também não usa a subdivisão das três partes em 18 capítulos. Felizmente, ainda não li muito, de sorte que vou marcar tudinho, com base em -- já podemos dizer -- meu amado Garcia Tortosa (da terceira tradução para o espanhol, editora Catedra - Letras Universales). Pois bem. Lá na página 681 do Relógio D'Água, temos aquele

Onde?

que, tecnicamente deve dar por terminado o capítulo 17. Só que o ponto gordo é substituído por um traço horizontal de dois centímetros de extensão. E aí vem aquele "sim", agora indentado, começando o parágrafo a três toques datilográficos da margem:

   Sim porque ele nunca fez uma coisa dessas antes como pedir para tomar o seu pequeno-almoço na cama com dois ovos desde o hotel City Arms quando costumava fingir estar de molho com uma voz de doente armado em lorde para se fazer interessante para aquela velha jarreta da Sra. Riordam que ele pensava que tinha na mão e ela não nos deixou nem um tostão tudo para missas para si própria e a sua alma a maior unhas-de-fome que já existiu na realidade com medo de gastara 4 d com o seu álcool desnaturado a contar-me todos os achaques que tinha sempre a mesma velha conversa sobre política e terramotos e o fum do mundo deixa mas é a gente divertir-se um bocado primeiro Deus nos valha se todas as mulhers fossem do género dela a censurar os fatos de banho e os decotes curtos é claro que ninguém queria que ela os usasse acho que ela era piedosa porque nenhum homem ia olhar para ela duas vezes espero nunca [...]

Desjejum? Pequeno-almoço? Parece-me que, pelo menos em gauchês, diz-se "café da manhã". Mas parece que estou tergiversando (epa, influência literária de Houaiss?. Se fosse pelo dicionário, diria apenas "usando de subterfúgios", "fazendo rodeios"), não estou falando na última sentença? Mas pelo menos ganhamos (o leitor diligente e eu) uma metodologia para chegar no final, antes daquele Trieste-Zurique-Paris e praticar a afamada regressão para trás. A saber, recuar no texto até chegar naquilo que o pensamento de Molly estancaria e nos levaria a pensar que ela estava mudando de assunto. Então vejamos o Houaiss, página 957:

Sims.

Com uma letra 'S' maiúscula no início e outro 's' minúsculo no final. Ou seja, o advérbio virou um substantivo plural. Eita confusão eterna. Então este final, depois de páginas e páginas de monólogo, repete o 'sim' do início do capítulo 18.

E o Relógio D'Água? Naquele pré Trieste-Zurique-Paris, página 730, temos

Yes.

Depois de lê-lo, voltarei ao tema, dizendo qual seria a verdadeira frase derradeira, no sentido de corrigir aquela falta de pontuação, já não sei se de Molly ou de Joyce. Feliz Dia dos Pais domani.

DdAB
Imagem: procurei no Google Images "ponto grosso" e veio "Ponta Grossa". Anuí e editei em meu "Paint".

Rodapé 1: Minha memória já não é mais a mesma do tempo em que eu sabia de cor o famoso 7 x 8 da tabuada. O original, obviamente de um tempo em que a versão Gabler não existia, é:

Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha.

Rodapé 2: Neste blog, entende-se por "resto da turma" os dois exemplares físicos ou os dois eletrônicos de diferentes versões da obra (Penguin e Gabler, ou melhor, parece que, desta minha turma, ninguém traduziu o Gabler integralmente) original e as traduções para o espanhol (três) e português (quatro).
abcz
NOTA DAS 7h07min de 4 de novembro de 2019:
Falando nos "s" de Yes e Sims, vim a descobrir a interpretação de Donaldo Schuler que o livro começa com stately e termina com yes para deixar claro que havia um probleminha de sífilis com o autor. Ver aqui minha postagem a respeito: https://19duilio47.blogspot.com/2019/02/ulysses-do-stately-ao-yes.html

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