Querido diário:
Lendo o intrigante livro:
SCHÜLLER, Donaldo (2017) Joyce era louco? Cotia: Atelier,
vim a pensar - talvez já tenha lido algo assemelhado antes, em algum comentador, não lembro - não apenas no título, sendo conduzido pelo autor sul-riograndense, mas também aceitei com certa relutância a hipótese levantada há mais de meio século que o autor dublinense era mesmo louco, uma loucura povoada, se não por outras causas, pela sífilis (Donaldo, página 32). Sífilis, minha gente, sífilis. Joyce. O festejado residente de Trieste parece ter dado inúmeras provas de sofrer dessa doença.
Schüller, exibindo uma erudição realmente enciclopédica em matéria de literatura e psicanálise, não vacila em aceitar a hipótese da sífilis joyceana, como também vai adiante e dá como evidência da loucura a interpretação que faz no último livro (ele próprio tradutor, obra em seis volumes, edições brasileiras esgotadas), intitulado Finnegans Wake, à desagregação insana de boa parte do escrito.
A interpretação corrente é que o Ulysses tem como primeira palavra o adjetivo ou advérbio (como já vi interpretação) stately, ou seja, aquele "s", é a inicial da palavra sífilis. E tem como última palavra o advérbio Yes, finalizando o famoso monólogo de Molly Bloom, cuja primeira récita vi/ouvi em Porto Alegre mesmo, há milhares de anos. Declamou o monólogo a jovem atriz Fernanda Montenegro, numa peça que teve envolvimento de Millôr Fernandes. Ou seja, a última letra do livro é a mesma da triste palavra. De modo paralelo àqueles dois "s", o segundo deles sinalizando o início e o fim, a última palavra do monólogo da cantora Molly não carrega ponto, mas tem inicial (Y daquele yes) em maiúscula, apenas sucedida pelo ponto final, o único sinal de pontuação em todo monólogo (na edição Penguin em inglês). Sustenta a hipótese o talvez fato que passo a investigar sobre a existência de uma profusão de "s" em todo livro.
Fiz um experimento sobre esses esses (faltou acento circunflexo no primeiro "esses", a fim de fechar a pronúncia do "e" inicial, né?), sabendo não ser fácil compará-lo com outros livros. O plano foi ver se os "s" de algum outro livro com um número aproximado de palavras também ocorrem em profusão, montes de "s".
Meu experimento consistiu em pegar uma edição Gabler que tenho em docx do Projeto Gutemberg e substituir todos os "s" por, digamos, 3,1416. Com isto, o contador de palavras diz quantas substituições foram feitas. Ah. O Libre Office rodando no Ubuntu, depois de alguns desafios a minha persistência, contou 76.884 vezes a letra "s". O texto txt limpo tem 584 páginas. Variável de controle: Don Quijote, em espanhol, também do Projeto Gutemberg tem 125.728 vezes a letra "s" em 810 páginas. Normalizando os resultados, observamos:
Don Quijote 155 "s" por página
Ulysses 131 "s" por página
Infelizmente daí nada pode ser concluído sobre a loucura de James Joyce ou do próprio Dom Quixote, pois a diferença entre essas duas línguas faz variar um elemento que deveria ser mantido constante, obviamente a língua da redação. Mas nesse ponto ocorreu-me a solução: contar os "s" e as palavras de um documento que tem fé pública e autor consagrado. Pois então. Pois é, pois sim, pois não. Minha escolha recaiu sobre minha tese de doutorado! Lá encontramos 413 páginas (Joyce não tinha os requisitos que me foram apresentados pela Oxford University, que recomendava uma tese tão curta quanto possível, o que, em boa medida, infringi...). Então com essas 413 páginas até que não foi tão curta assim... E quantas letras "s"? Fazendo a substituição pelo já afamado 3,1416 (não fui mais casas adiante do "pi", de sorte a não enviesar os resultados, pois poderia ter escrito, digamos, ). Então, e apenas então, contei o aparecimento da letra "s" precisamente 29.663 vezes, ou seja, 72 vezes por página.
E a que ponto cheguei? Ampliei a listagem dali de cima mantendo a ordem alfabética:
Don Quijote 155 "s" por página
Duilio 72 "s" por página
Ulysses 131 "s" por página
Conclusão: parece que o Donaldo Schüller tem mesmo razão com aquela encrenca da sífilis e a profusão de "s" na opus magnum de James Joyce -então, à época da redação- britânico. Eu, por não ser lá muito dado a sorrisos, fui o que menos encaçapou "s" no trabalho, tendo a metade da língua que consta da irmã, o espanhol, e Dom Quixote!
Hipótese a investigar: se, em castelhano, a turma chia mesmo mais que português de Portugal e carioca do Rio de Janeiro!
DdAB
P.S. Tirei a imagem da Wikipedia em inglês, ao buscar o verbete "Ireland", queria saber se minha memória não me traía ao dizer que a conclusão do livro foi anterior ao nascimento da república da Irlanda. E confirmei que foi mesmo. E a escolhi em especial homenagem à reduzida fração de esquerdistas brasileiros que consideram que tudo o que acontece de errado no Brasil deve-se ao generalizado controle de tudo pelo capital financeiro. Obviamente considero esta visão um atestado de preguiça intelectual, mas especialmente horripilante, pois mostra que a macacada que agora critico não lei aquele artigo de James Clifton que vivo elogiando.
CLIFTON, James A. Competition and the evolution of the capitalist mode of production. Cambridge Journal of Economics. Vol. 1, No. 2 (June 1977), pp. 137-151.
E que tem uma tradução ao português brasileiro feita, se bem lembro, por meu querido amigo Achyles Barcellos da Costa. E que talvez ainda tenha o link dela em meus Google Documents.
abcz
Nenhum comentário:
Postar um comentário