Querido diário:
Aqui já falei sobre
HARVEY, David (2013) Para entender o capital; Livro I. São Paulo: Boitempo. Tradução de Rubens Enderle [o mesmo tradutor da nova versão de O Capital].
E hoje faço uma série de sugestões sobre erros ou inconveniências do trabalho do sr. Rubens Enderle e dos esforçados trabalhadores e dirigentes da própria Boitempo. Com efeito, o que segue são sugestões (que alcançam O Capital, que não li a edição da Boitempo, mas lerei em breve) que centram-se aqui mesmo. Refiro-me ao "mais valor", uma tradução inovadora, mas dificilmente justificável, dada a tradição em torno de mais-valia. Indago-me o que levaria um tradutor de uma obra já consagrada em português selecionar um neologismo de sua lavra. Neologismo? Claro, se olharmos com cuidado a imagem acima, veremos que o afamado VOLP (vocabulário ortográfico da língua portuguesa) responde a minha pergunta: tem aí "mais-valor"? Ao que ele replica: "Nenhuma palavra encontrada na pesquisa". É ou não é um neologismo do sr. Rubens?
Dito isto, faço o mais exaltado elogio ao trabalho da tradução. Suas soluções mostram-se elegantíssimas e as notas de rodapé poderiam servir de base a um ensaio. É a melhor tradução que já li em português, do nível de Ben Fowkes, da Pelican. Mas que mais-valor é uma casca grossíssima, lá isto insofismavelmente é. Mais-valor, claro, tem muito menos valor do que mais-valia (que tem no VOLP)!
Registro alguns reparos (sabendo que, infelizmente, minhas observações não foi constante, nem talvez exaustiva). É possível que partes delas já tenham sido detectadas por outros leitores diligentes. Para garantir que a duplicação é melhor do que a omissão, listo-as a seguir sempre com relação a meu Pelican:
.a. traduzir surplus por mais-valor rompe com a tradição da literatura de economia política em português. O autor respeitou a "acumulação primitiva", ainda que fale episodicamente (p.239) em acumulação originária (ver Sweezy no clássico "Teoria do Desenvolvimento Capitalista"). Na p.92, torna-se claro que é surplus value é um termo técnico, não se baseia em senso-comum da mesma forma que excedente. A grafia D - M - D + deltaD é complicante, por isto o D' de Marx é mais didático e tem por trás a tradição matemática de representar por um ' (til) a primeira derivada de uma função e até falar em deltaM pode sempre substituir por D' - D ou se quiser por d ponto. E escrever D-M deixa a notação pesada e desnecessariamente complicada, pois deveria ser D - M.
p. 26: pela clareza, trocar a vírgula por "aparece", repetindo o termo recém usado
p.26: coisa - thing : o melhor é bem ou serviço objeto? serviço é objeto? (coisa está na tradução de Rômulo de Almeida aos Princípios de Economia, de Marshall na metade do século XX)
p. 27 : prescindindo - abstraindo
p. 32 pode acrescentar "e do trabalho abstrato"?
p. 38: "experiência" não é Smith e os alfinetes?
p. 43 - eventualmente - peca no falso cognato, p. 77: é "finalmente"
p. 44 - escravagista - termo já condenado, ainda que esteja no VOLP
p. 46 : para - rumo. E o Zur Kritik é Para? ou Rumo?
p. 70 - antiética - antitética (e tem outra vez o mesmo erro)
p. 77 - Pluto - Plutão (Pluto, para nós, é o cachorro do Pato Donald, não é?)
p. 82 sofre - experimenta (este é um maneirismo do velho prof. Alfredo Steinbruck, que dizia que quem sofre é o torcedor do Grêmio...)
p. 84 - o tradutor trocou o David Harvey pela segunda edição em alemão. E o Pelican de onde é?
p. 91 - whig - pedante
p. 106 têm - tem (o velho erro do Word que não sei como é que vai parar em um editor profissional)
p. 110 - despela - esfola
p. 122 tem um por cada - corrige-se com "cada mercadoria recebeu do capitalista o devido valor"
p. 129 é destruir mesmo? não seria melhor anular? mas não aniquilar, que isto não combina com o "recusando trabalhar com eles."
p. 130 tem mais-valia (mais valor!) como mv, quando a praxe é m (mv até confunde com a multiplicação de m por v, sem conteúdo conceitual relevante, por exemplo, se v é medido em horas de trabalho para um trabalhador, m x v é a massa de mais valia. Aliás, na p. 164 passa a usar a expressão m/v, esquecendo que fizera antes mv por m...
p. 139 na citação tem a repetição "mais amplo mais amplo" que não me parece intencional
p. 147 na citação, depois de "uma uniformidade tão militar", tem uma vírgula.
p. 148: Eckart não tem h?
p. 158 tem um Eward Heath para Edward Heath, o ministro britânico dos anos 1970
p. 159 fala em taxa de mais-valor, quando na p. 131 definira como taxa de exploração (aliás, mais usual). Também fala em uma equação que pode ser um erro do original americano: massa de mais-valor sendo dada pela taxa de mais-valor multiplicada pelo número de trabalhadores empregados; neste caso, m = (mv/v) x L, o que só é verdade se v e L forem medidos na mesma unidade, ou horas de trabalho. Tá confuso.
p. 164: fala em "problema de parasitismo" (free-rider problem), concluindo o terceiro parágrafo com "Qual é o incentivo individual para fazê-lo?" A literatura contemporânea (teoria dos jogos, teoria da escolha pública) fala em "problema do incentivo" e não em "problema de parasitismo". Se é preciso traduzir "free-rider", o que se faz com frequência, fala-se em "caroneiro", mesmo ou "carona". Os economistas de outra geração falavam (sem referir-se a esta literatura) como sinecuristas aos que ganhavam os lobistas e outros detentores de benesses públicas. Também se fala em alguns segmentos de parasitismo, mas, cá entre nós...
p. 167 na citação do final da página fala em "novo método de produção", mas depois, em "novo modo de produção", usando a expressão modo de produção de modo equívoco.
p. 183, na citação fala em estados de La Plata: não seria "estados do Prata", ou do rio da Prata, ou ainda a Argentina e o Uruguay?
p. 185 tem um eco: "Eles estão tão" que poderia ser "Estão eles tão" ou Eles encontram-se tão"
p. 204: a expressão "muito pouco" é uma contradição em termos... e no final tem "reduzidoenquanto", sem espaço
p. 224: na citação "É característico...", fala em "mistérios", quando devia falar em "ofício" ou "profissão" ou "ocupação".
p. 241: tem um "estranhado" por "alienado", que é mais usual na literatura brasileira
p. 247: fala em "miserável e o capitalista", quando "miser" (em inglês) é "avarento" e não miserável. Caiu o tradutor em outro falso cognato.
p. 257 fala em "bens e meios de produção", quando me parece deveria dizer "bens de subsistência e meios de produção"
p. 266: tem trades unions, quando deveria ser trade unions
p. 267 tem um "extratos", quando deveria ser "estratos". E também tem uma vírgula errada: "integral ou que,". E também fala em "trabalhadores desmotivados", quando hoje no Brasil se fala em "trabalhadores desalentados"
p. 295: fala em "bens públicos"; será que é assim em inglês? Public good não é um termo que serve para educação, no jargão econômico atual, embora seja até mais para esgoto do que para água. E educação é um bem semi-público ou também um "bem de mérito", como o é a saúde (e não falo da saúde pública, cuja promoção volta a ser um 'bem público'.
p. 308: fala em "jornal"; se é assim em inglês, no português deve aparecer como "revista".
Espero que esta listinha não desmotive o leitor do blog que ainda não comprou o livro de David Harvey a fazê-lo. Stanislaw Ponte Preta dizia que, quando duas coristas conseguissem levantar a perna ao mesmo tempo, nasceria o moderno balé brasileiro. Não sei se já o fez. Eu digo que, quando surgir uma editora realmente profissional no Brasil, deveremos festejar efusivamente. Se bem que, se puder, que compre em inglês! Pelo folclore: há anos adquiri em português o livro "Sexo, drogas e a economia", aqui, de Diane Coyle, com tradução de fazer chorar assinada por Aulyde Soares Rodrigues (ver minha diatribe aqui). Por exemplo, mesmo não tendo lido o original, juro que este falava em "English speakers", o que gerou em português um estupefaciente "oradores ingleses". Algumas destas do sr. Rubens até que lembram este desmazelo! E o livro de Diane Coyle é que não merecia estas injustiças, pois é bastante interessante. Pudera, a autora é tanto PhD em economia quanto jornalista, o que a faz escrever bem e certo!
DdAB
Revisões acentuadas às 10h43min de 20/maio/2014.
Revisões acentuadas às 10h43min de 20/maio/2014.
2 comentários:
Olá Sr. Duílio,
sou o tradutor desta obra e descobri somente agora (infelizmente) esta sua postagem. Quero lhe dizer que concordo com o senhor em quase todos os pontos, e vou comunicar a editora para incorporar suas correções na próxima reimpressão da obra.
Quanto à escolha do termo mais-valor, não foi uma escolha minha. Precisei adotar esse termo porque ele já havia sido adotado anteriormente, na tradução dos Grundrisse, e a editora quis que fosse mantida uma uniformidade conceitual. O mesmo aconteceu com outros conceitos na tradução do Capital.
Se o senhor puder me responder por e-mail eu agradeceria muito. Gostaria inclusive de consultá-lo sobre a melhor tradução de alguns outros conceitos econômicos, se o senhor não se importar.
Meu e-mail é rubensenderle@yahoo.de
Um grande abraço e muito obrigado.
Rubens
Caro Rubens:
Fiquei feliz que tomaste conhecimento destas contribuições para melhorar a tradução do livro de David. E também que não levaste a mal o tom às vezes arrogante que, escalafobeticamente, uso volta e meia nestas postagens.
Estou escrevendo para o e-mail indicado a.s.a.p.
DdAB
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