12 maio, 2014

Propaganda: dois casos escabrosos

Querido diário:

Minha sina é ler Zero Hora. Servidão voluntária, se quisermos romantizar. Leio porque a escolhi e a escolhi, pois reconheço apenas lixo em matéria de imprensa no Brasil e, sem enorme exagero, até no mundo. Sou saudoso do velho L'Humanité, se bem entendi o que por aquelas bandas encontrei, hebdomadariamente, se tanto.

Então torna-se claro que as propagandas a que me refiro estão nas páginas 23 e 35. Torna-se? Entorna?

Na página 23, há uma propaganda convencional da loja Gang: "Não vamos torcer pelo Brasil. Estamos mais interessados em torcer por você: brasileiro." Este negócio de que não vamos torcer pelo Brasil levou-me a pensar: eles estão certamente falando da copa do mundo. É uma maldade omitir-se de torcer pelo Brasil do futebol, pois esta é a verdadeira paixão nacional, um vício, pois o ludopédio verdadeiro está abandonado por um vício que é ver aquela turma esperneando ou dando cabeçadas vigorosas em benefício do gol.

Gol, foi gol do negão, foi gol: é a versão brasileira do velho Johnny B. Goode. Mas que os gols do negão celebram-se, como o foram os de Fio Maravilha, lá isto se fazem celebrações, cerebrações. Então: cá entre nós, eu - que defendo a imediata extinção dos estados nacionais mundiais e propugno pela instalação do governo mundial - também não deveria torcer pelo Brasil. Mas ledo engano seria pensar-se deste modo para entender minhas preocupações. Em outras palavras, sou a favor do povo brasileiro e, por isto mesmo, sou a favor da vitória arrasadora do Brasil na Copa do Mundo. Eu, que também amo a Argentina e acho uma baixaria a turma que a/os odeia, queria um 5 x 1 na final contra os amados hermanos. E isto nada tem a ver com guerra: é futebol, é a alegria do povo. E a tristeza de nossos antagonistas em jogos de soma zero.

Mas a Loja Gang, que mais extemporânea defesa do povo brasileiro é esta? Isto não é tudo com relação a esta propaganda. Seguiu-se na página 27 (coluna +Economia):

Marcar presença durante a Copa do Mundo, a Gang levanta a bandeira verde e amarela de maneira diferente e lança hoje uma campanha a favor dos brasileiros. A rede arma a torcida para os 200 milhões de brasileiros que merecem aplausos por fazer do país um vencedor no que realmente importa. É nesse clima que as peças da Agência Bistrô exaltam a realidade e os sentimento dos jovens pelo social e por grandes renovações.

Então se torna mais claro: o ponto de vista não é da Gang mas da Bistrô. Quem é a Bistrô? Aqui. O tom poderia parecer de esquerda festiva ou de alienados. Mas parece, pelo jeito, ser mesmo a propaganda uma grande direita festivamente rançosa. Falar mal da copa do mundo? Nem morta. Quero é a vitória. O Brasil não é o futebol, claro, mas o futebol é a alegria do povo.

Acabou? Não, pois temos a página 35. Temos u'a (!) matéria paga da Hollmann, empresa fundada em 1953, ano prévio à vitória da Alemanha (seleção da...) na copa do mundo realizada naquele país. Por que a Hollmann está na ribalta? Não foi tanto pelo fato de que eu ingeri aqui e ali seus produtos. Mas porque foi flagrada recebendo aquele leite envenenado. O queijo seria envenenado? Como saber? Pelo sim, pelo não, o melhor é "votar com os pés", ou seja, sair fora do reino de uma empresa que ia processar leite envenenado pela primeira vez em sua existência, e não o fez por um motivo comezinho. Não que ela tivesse identificado a fraude, o que me deixaria mais contente quanto aos queijinhos que comi, mas porque, "[...] na manhã de 8 de maio de 2014 [...] as suspeitas levantadas pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul sobre um de seus diretores e um de seus funcionários."

Afinal, suspeita? Envenenou ou não envenenou? Comi queijo sadio ou é isto o que me faz sentir-me estranho? Mas segue a nota de esclarecimento:

Nota de esclarecimento
[...] Temos [...] o mais absoluto comprometimento e interesse no esclarecimento definitivo e justo dos fatos.

Em outras palavras, dada a morosidade deste orgulho nacional que é a administração da justiça, é de esperarmos que eu possa comer queijo envenenado ainda por mais 50 anos, se durar tanto a fraude ou se durar tanto o meu conteúdo material. Só bebendo (mas nunca mais leite, hehehe).

DdAB
p.s.: para saber mais sobre o conceito de jogo de soma zero, leia a página 92 de:
BÊRNI, Duilio de Avila e FERNANDEZ, Brena Paula Magno (2014) Teoria dos jogos; crenças, desejos, escolhas. São Paulo: Saraiva.

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