querido diário:
procurando no Google Images o nome "Ricardo Neis", encontrei esta figura, sem muita pesquisa (aqui). parece Ziraldo. de onde tirei o nome? de onde tirei a inspiração para selecioná-la, a inspiração para postar com o título que nos epigrafa? de Zero Hora, claro, o jornal de minha aldeia. o jornal que tinha Moacyr Scliar entre seus colaboradores. eu o conheço desde o final do ano de 1962, quando o vi receber o diploma de médico (colega de turma de meu cunhado), numa solenidade, para mim, inesquecível, pois o discurso do orador da turma foi -a meu ver- brilhante. de uma coloração matizada pela política. queria um Brasil justo. Scliar gastou toda a carreira e não conseguiu. Zero Hora presta-lhe hoje justas homenagens, dado o passamento na noite de ontem.
ou seja, os destaques de hoje, para minha volta à leitura diária-ou-quase de Zero Hora, são o passamento do talentoso e combativo escritor (de cuja correspondência passiva faço parte e que me agraciou com respostas a todas as iniciativas que tomei). e mais. os destaques são, em continuação, a lição de civismo dada pelo incidente protagonizado pelo sr. Ricardo Neis, 47 anos, funcionário do Banco Central do Brasil. tudo nas p.24-25 de Zero Hora.
na p.2, Zero Hora publica uma nota maravilhosa da sra. srta. Claudia Crusius, de Passo Fundo: "Segundo me recordo, foi Tolstoi que disse que 'para falar do mundo, fale de tua aldeia'. Scliar fez isto muito bem, tanto que conquistou reconhecimento e traduções em todas as partes do mundo."
eu, que de Tolstoi conheço pouco, penso de modo análogo e penso ter aprendido esta ideia com Carl Wright Mills: entender meu meio-ambiente, entender as forças que atuam sobre a parte socialmente relevante de minha ação. comove-me a matéria sobre o sr. Ricardo Neis, 47 anos, funcionário do Banco Central do Brasil, cujo automóvel "Polo" -alegadamente- projetou-se sobre ciclistas que invadiam a via pública. penso na pequenês de nossa existência, no ódio que nos abate quando temos direitos feridos. mas também penso na pleonexia, de que falei ontem. quero fração maior do excedente do que aquela que legitimamente me cabe. penso na genial distinção dos economistas da geração de meus mestres entre invidíduo e cidadão.
o problema está armado. há um mês, vi este povo do movimento "Massa Crítica" trancando a Av. Praia de Belas, um pouco antes da frente do Shopping Center. vi os automóveis atrás e fiquei a pensar em como eu próprio iria portar-me, tendo meu direito de ir-e-vir cerceado. muitos automóveis conseguiram evadir-se, conseguiram desviar-se, por vias transversas, do cortejo. eu -claro, juro- faria o mesmo. eu não creio que pudesse avançar sobre os ciclistas. havia crianças, havia de tudo.
depois de saber deste incidente do sr. Ricardo Neis, fiquei a pensar: o que leva um indivíduo decente a abdicar de sua condição de cidadão tão facilmente, tornar-se um animal feroz, pré-hobbesiano. claro que o sr. Ricardo Neis tinha o direito de trafegar. claro que os ciclistas também tinham. disse um dos representantes dos ciclistas:
"Procuramos mostrar aos motoristas que não estamos trancando o trânsito, porque também somos o trânsito".
é claro que isto é fazer política. mais ainda: eu entendo que devemos cuidar-nos para não cair na tentação de fazer justiça com as próprias mãos, pois -dependendo da gravidade do incidente em que nos envolvermos- poderemos cair na boca da página policial. penso, claro, na tragédia pessoal da vida do sr. Ricardo Neis, solidarizo-me com ele. e penso na tragédia dos agredidos por seu comportamento delinquente, ele, um homem de bem. penso na tragédia e, claro, não demoro a perceber onde estão os vilões: os governantes. neste país de impunidade quase absoluta, tendemos a buscar a justiça pelas próprias mãos. deixar para as autoridades deixa-nos desamparados. e entendo que Ricardo Neis não estava fazendo política positiva, mas -tristemente- estava associado à intolerância e ao conservadorismo. seja lá quem ele for, seja lá o que ele já fez ou fará pelas causas progressistas.
o pior que pode acontecer-nos, ao perdermos o juízo, é envolver-nos em um pugilado em que os observadores do incidente e de nossa tragédia e descontrole pessoal tomem o partido oposto ao nosso e nos coloquem, que deixem de agir como cidadãos e decidam-se pelo linchamento.
a diferença entre "indivíduo" e "cidadão" é simples. o indivíduo é egoísta racional, pensa em si em primeiro lugar e faz de tudo, inclusive justiça com as próprias mãos. o cidadão é altruísta e organiza a sociedade de sorte que esta organizes a própria justiça. acabaram-se as férias. acabou-se a harmonia lusitana.
DdAB
p.s.: mas ainda não acabei a leitura de Eça de Queirós e sua obra "A Cidade e as Serras". por um lado, acabo de ouvir Zé Fernandes dizer: "Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que me espoliavam." dizem que isto é comum na Argentina. eu fui assaltado por dois meninos de rua, parentes -por certo- do prefeito de Montevidéu. eu fui ligeiramente esbulhado por um motorista de táxi que nos levou ao Aeroporto de Lisboa. em toda a terra há meliantes, caroneiros, na linguagem mais neutra. mesmo motoristas.
p.p.s.: mas -mais interessante- é que li ontem o que disse Zé Fernandes de si e de "seu Príncipe", Jacinto de Thormes: "[...] espalhando pelo ar outras ideias sólidas que no ar se desfaziam". pensei: isto não era atribuído por Marshall Berman a Marx no Manifesto Comunista? Eça teria lido Marx? isto é plágio de Eça? ou criação independente? o "Manifesto do Partido Comunista" foi escrito "no final de 1847". e "A Cidade e as Serras" foi publicado pela primeira vez em 1901, já depois da morte de Eça.
p.p.p.s. A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os meios de produção e, por conseguinte, as relações de produção e, com elas, todas as relações sociais. Ao contrário, a conservação do antigo modo de produção constituía a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. A revolução contínua da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a eterna agitação e certeza distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Suprimem-se todas as relações fixas, cristalizadas, com seu cortejo de preconceitos e idéias antigas e veneradas; todas as novas relações se tornam antiquadas, antes mesmo de se consolidar. Tudo o que era sólido se evapora no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e por fim o homem é obrigado a encarar com serenidade suas verdadeiras condições de vida e suas relações com a espécie.
2 comentários:
Gracias pelo comentario a minha escrita saida na ZH ! A integralidade dela agora esta nos artigos que homenageiam Scliar no site da Zero Hora. Um abraço da Claudia Crusius
Gente, Cláudia:
Voltarás aqui? Saberás que te li às 13h15min de 30/nov/2014? Claro que vou buscar a versão integral. Muito grato pela visita!
DdAB
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