19 novembro, 2009

Droga Secular


Querido Blog:
Tinha na Zero Hora de 18/nov/2009, p.17 o artigo "O mal do século", de Walter Luiz Ferreira. Para este nome e sobrenome, há 35 mil entradas no Google Documents e 112 no Google Images. Entre as 112, achei esta do pingue-pongue. Achei que valeria a pena buscar algumas idéias do autor, declarado "técnico de segurança", deixando de lado coloquialidades que perpassam alguns de seus argumentos. Vou citar algumas passagens e comentar.

Primeira:

"...] o usuário de drogas é um dos principais responsáveis por toda a violência que assola o nosso país."

DdAB: pensei que o portador de sífilis também era o principal responsável pelas mortes e transmissão da doença do século XX. Um vilão, em outras palavras. Ainda bem que WLF não considera que o pai ou mãe do usuário, ou sua professora de "Organização Moral e Cívica" é que devem assumir a responsabilidade. O modelo de "incriminar a vítuma" já foi banido de qualquer tentativa séria de equacionar problemas de saúde pública. Mas a visão de WLF é apenas uma visão policialesca, despida de qualquer compaixão pelo doente. Dizer que o portador de câncer no pulmão é um vilão, pois envenenou-se durantes anos e anos é um crime que condenou ao opróbio alguns indivíduos voltados a problematizar questões de saúde pública. Resumo: devemos preparar-nos para o pior com o restante da leitura do artigo.

Segunda:

"Não existindo o usuário, não existiria o produtor, o fornecedor, o transportador e nem mesmo o vendedor."

DdAB: claro, da mesma forma, se não existisse streptococcus mutans, não haveria cárie dentária. Mutatis mutandis, não teríamos nem acidentes de carro, nem tuberculose, nem obesidade, nem nada. Mas acautelemo-nos, se não existissem problemas de segurança pública, tampouco teríamos técnicos em segurança pública, não é mesmo? De modo tristemente análogo, se não houvesse problemas econômicos, muitos de nós (disfarça e olha...) não teríamos ganho a vida ensinando estas drágeas da chamada ciência econômica.

Terceira:

"[...] descriminar o usuário e legalizar as drogas [provocará] danos de dimensões incalculáveis a toda a sociedade brasileira."

DdAB: parece que ele está coberto de razão. De modo análogo, estará coberto de razão quem diz -como o faço- que manter a atual política relativamente ao problema das drogas é uma droga. Primeiro, porque provocou e provoca danos de dimensões incalculáveis em toda a sociedade brasileira, por exemplo, o filho que matou o pai, a mãe que matou o filho, o avô que acorrentou o neto, o neto que arrancou a porta da casa e vendeu para pagar seu fornecedor de crack. E esse negócio de "incalculáveis"? Claro que o dano da legalização e o dano da criminalização podem ser calculados, com a mesma margem de erro concebível para milhares de outras aplicações da análise de custo-benefício. Frase retórica de WLF. Mas o ponto a salientar é que seu raciocínio simplifica o problema ao sequer cogitar de um pinguinho em idéias de avaliação do prejuízo social provocado pela atual política.

Quarta:

"[...] nossos legisladores e governantes deveriam fazer [...] leis realmente severas para inibir novos usuários. [...]. Se no Brasil a pena de morte fosse atribuída aos traficantes de drogas, como acontece em vários países, com certeza a circulação e o acesso a elas seriam dificultados [...]."

DdAB: rapaz! defender a pena de morte é indício de uma formação moral e intelectual que culmina pela defesa de soluções radicais para problemas humanos, sem clemência, sem qualquer abertura de margem de dúvida para a possibilidade de erro judiciário. Eu não preciso dizer muito mais do que citar Chico Buarque, mutatis mutandis: quem inventou o pecado deveria também preocupar-se em inventar o perdão. E o princípio da gradação das penas? Não ficaria bem apenas termos a prisão perpétua para o condenado e declarado culpado sem margem de dúvida? Se, depois de 45 anos de xilindró, surge nova evidência de que neguinho era inocente, ainda dá para libertar neguinho e não tentar procedimentos de exumação, que seriam um tanto inócuos, caso ele já tivesse recebido o gás, por assim dizer, hilariante... Mas não deixemos de comentar uma das bases da argumentação de WLF: vários países atribuem a pena de morte a traficantes. Posso assegurar que a pena de morte vigora em pouquíssimos países decentes. Nenhum da Comunidade Européia, poucos estados americanos. Então interessaria sabermos quais são os países que compõem variedade registrada pelo articulista.

Quinta:

"Nos últimos tempos, temos visto toda a violência advinda das drogas se propagar assustadoramente para todos os recantos do país, deixando rastros de destruição de famílias e lares por toda parte."

DdAB: é, temos visto mesmo, ou seja, a proposição é verdadeira, sô. Disto não segue que a pena de morte para traficantes ou que a dificuldade em algumas pessoas trabalharem com conceitos elementares de escolha pública (escolha e o trio crianças, criminosos e loucos) ou que seja mentira que as drogas legais e ilegais já destruiram famílias e lares, que essas três situações, enfim, pudessem reduzir em um átomo a severidade do problema das drogas. Argumento mal ajambrado para o tema destacado por, não posso calar, Zero Herra. Não é demais insistir que é precisamente a tentativa de evitar a ruína no bingo, no crack, na cachaçaria que requerem um tratamento baseado em premissas de saúde pública e não em segurança pública. A segurança pública deve assumir seu papel, qual seja, o de dar segurança, ao passo que a saúde pública deve dar saúde. Não é inconcebível que um viciado em crack, submetido a tratamento psiquiátrico e assistência social possa ter recidivas controladas e tornadas inócuas sob o ponto de vista do marco da porta de sua casa ou da qualidade de vida de sua mamãe assassinada. Ainda bem que não sou dono de bingo, pois esse consultor de segurança já poderia querer expandir a pena de morte para a negadinha que vicia a negadinha...

Quarto: primeiro, vou fazer o comentário:

DdAB: nunca devemos esquecer que há um trio que não deve ser autorizado a tomar decisões amplas sobre circunstâncias de sua vida: crianças, criminosos e loucos. OK, agora a mais cabal prova de despreparo de WLF para tratar de problemas de segurança pública:

"Não acredito sinceramente que nos dias de hoje a desinformação e a falta de cultura possam ser aceitas como desculpas para tantas pessoas se tornarem dependentes químicas, já que em todos os setores da sociedade, desde as pessoas mais cultas até as sem cultura alguma, os usuários existem e aos montes. Destarte, trata-se de opção de vida de cada um e não de doença como querem apregoar!"

DdAB II: é, não posso calar outro comentário: e se ele acreditasse, qual seria o problema? nada mudaria, dependendo das crenças do autor, exceto que não ficaríamos sabendo como há indivíduos incapacitados a exercerem determinadas profissões. Crianças, criminosos e loucos. Eu estou falando em loucos, os das drogas, os das análises retóricas metamorfoseadas em argumentação "técnica".

DdAB III: qual seria a qualidade técnica de um técnico em segurança para afiançar sem a menor sombra de dúvida que a dependência química resulta de uma "opção de vida", do mesmo porte da de ser economista ou de escolher entre sorvete de creme e férias em Veneza? Eu acho que ele não sabe do que está falando.

Concluo: por um lado, devemos procurar uma visão generosa da natureza humana, tentando combater a doença e não o doente. Por outro lado, o problema é mais severo: se queremos tratar o assunto com as facilidades que a ciência social contemporânea nos oferece, deveremos pensar racionalmente. Quer dizer: definir exatamente qual é o objetivo (acabar com os malefícios provocados pelo consumo de drogas) e erigir a melhor estrutura de incentivos para chegar a ele. Claro que em "estrutura de incentivos", há recompensas e punições. Eu acho que devemos acenar com recompensas para neguinho submetido às correntes do consumo compulsivo: puni-lo com a criação de mecanismos que o libertem.
DdAB

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