Querido Blog:Sempre que reflito sobre a natureza humana e suas 27 peculiaridades (número platônico elevado ao cubo), penso que não há tempo para pensar e repensar tudo o que já vivi, mais ainda para saber tudo o que já foi produzido pela humanidade nos últimos, digamos 10 dias. São 6 bilhões de autores de pensamentos e outras emanações das peculiaridades a que referi.
Também referi que a primeira vez que li "Funes, El Memorioso" tive uma espécie de vertigem (se bem que "espécie" não descreva bem o desfalecimento...). Quando Borges disse que ele, Funes, precisava de precisas 24 horas para narrar os eventos da última jornada, entendi o que ele, Borges, quis dizer com a historieta "Del Rigor de la Ciencia". O mapa do reino não pode ser produzido em escala 1 por 1, o dia não poderá jamais voltar a ser narrado, como um rio. Depois, ainda mais espécimes voltaram-me à mente, ao entender que, na realidade o único mapa impossível, a única narração impossível é a descrição 1 x 1. Com efeito, as fotos do Crescent da paradisíaca cidade de Bath e de seus próprios banhos romanos estão exibidas nesta simpática postagem precisamente por não se fazerem em escala 1 x 1. Ao mesmo tempo, aprendi com um romano, ou seu descendente, que -na arquitetura e mesmo em milhares de outras artes- a escala, digamos 55 x 23, sei lá, é extremamente útil para detalhar coisas. Diria Henry James no livro que li, editado pela Editora Civilização Brasileira, e de que nada lembro, a não ser a espessura (bem fininho), "outra volta do parafuso". Claro que, se quisermos entender todos os meandros de qualquer das voltas do parafuso, sua helicoidal, o que seja, precisamos detalhar em escala, digamos 4 x 4, o que lhe daria tração nas quatro rodas, se as portasse ele, o parafuso.
A vista interna dos banhos de Bath, se redundante me não torno, medeia-se por água corrente e quente, onde os romanos de antanho aproveitavam os tempos que lhes foram dados a viver sobre a Terra, agora citando, se bem lembro, Bertold Brecht, com tradução de Geir Campos. Se não lembro e finjo que lembro, que fazer? A inocente palavra é um despropósito. Quem está rindo é que não recebeu ainda a notícia terrível. Estará no Google Words?
Disse-me o Mr. Google Man:
:: Aos que vão nascer :: Bertold Brecht :: Geir Campos :: O.S.L.T.
1.
Realmente, eu vivo num tempo sombrio.
A inocente palavra é um despropósito. Uma fronte sem ruga
denota insensibilidade. Quem está rindo
é só porque não recebeu ainda
a notícia terrível.
Que tempo é este em que
uma conversa sobre árvores chega a ser falta,
pois implica em silenciar sobre tantos crimes?
Esse que vai cruzando a rua, calmamente,
então já não está ao alcance dos amigos
necessitados?
É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Porém, acreditai-me: é puro acaso. Nada
do que faço me dá direito a isso, de comer a fartar-me.
Por acaso me poupam. (Se minha sorte acaba,
estou perdido.)
Dizem-me: — Vai comendo e vai bebendo! Alegra-te
com o que tens!
Mas como hei de comer e beber, se
O que eu como é tirado a quem tem fome, e
meu copo água falta a quem tem sede?
contudo eu como e bebo.
Eu gostaria bem de ser um sábio.
Nos velhos livros consta o que é sabedoria:
manter-se longe das lidas do mundo e o tempo breve
deixar correr sem medo.
Também saber passar sem violência,
pagar o mal com o bem,
os próprios desejos não realizar e sim esquecer,
conta-se como sabedoria.
Não posso nada disso:
realmente, eu vivo num tempo sombrio!
2.
As cidades cheguei em tempo de desordem,
com a fome imperando.
Junto aos homens cheguei em tempo
de tumulto
e me rebelei com eles.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
Minha comida mastiguei entre refregas.
Para dormir deitei-me entre assassinos.
O amor eu exercia sem cuidado
e olhava sem paciência a natureza.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
As ruas do meu tempo iam dar no atoleiro.
A fala denunciava-me ao carrasco.
Bem pouco podia eu, mas os mandões
sem mim sentiam-se mais garantidos, eu esperava.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
Minguadas eram as forças. E a meta
ficava a grande distância;
claramente visível, conquanto para mim
difícil de alcançar.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
3.
Vós, que vireis na crista da maré
em que nos afogamos,
pensai,
quando falardes em nossas fraquezas,
também no tempo sombrio
a que escapastes.
Vínhamos nós então mudando de país mais do que de sapatos,
em meio às lutas de classes, desesperados,
enquanto apenas injustiça havia e revolta nenhuma.
E entretanto sabíamos:
também o ódio à baixeza
endurece as feições,
também a raiva contra a injustiça
torna mais rouca a voz. Ah, e nós,
que pretendíamos preparar o terreno para a amizade,
nem bons amigos nós mesmos pudemos ser.
Mas vós, quando chegar a ocasião
de ser o homem um parceiro para o homem,
pensai em nós
com simpatia.
O que a simpática revista não diz é que a tradução é de Geir Campos, nem que a publicação original ocorreu numa Revista Civilização Brasileira. Nem que talvez minha memória falhe hoje, como falhou ontem e, com sorte, falhará ainda por muitos e muitos anos. Pensai em nós, com simpatia.
Tenho pensado em quantas canções pode legitimamente um iPod conter, de sorte a permitir-me escutar música durante todo meu horizonte de vida. 6 bilhões de canções? Uma para cada terráqueo? Seis bilhões, três minutos cada canção, 18 bilhões de minutos, precisava viver 35.000 anos para aproveitá-las todas uma única vez. Se esta postagem também tivesse o marcador de "Vida Pessoal", eu iria contar uma coisa. Como não tem, nem o de Economia Política, vou contar outra, que pode ser enrustida como "Escritos". Quem quer iPod de 35 mil anos? As multinacionais vão elevar nosso tempo de vida com o diabólico objetivo de vender-nos iPods mais poderosos do que estes micuinzinhos que hoje compramos. Sendo iPod, eu as apoio. Sendo boi, eu os aboio e sendo flutuante, eu busco apoio. Ok, chega de poesia.
A irreversibilidade deste blim-blim-blim todo e a necessidade que temos por simpatia expressa por outros terráqueos -dos que ainda não nasceram e nem sabemos se nascerão, mas que devem nascer de qualquer jeito- prova, de modo irrefutável que precisamos de um programa de renda básica universal, não é isto? Substituir a luta de classes pela luta entre instituições, não é isto?
DdAB
Twitter: acabo de voltar de uma sessão de squash no Squash & Fitness da Av. Cristóvão Colombo. No caminho, um menino de rua disse-me que este troço de "luta entre instituições" já era. O negó (parecia saído das páginas d'O Pasquim) seria a busca da "harmonia entre as instituições". Ele mesmo, declarou, estaria disposto a harmonizar-se com um ricaço das cercanias (Rua Quintino Bocaiúva) que lhe oferecesse três refeições por dia, roupa lavada e uma viagenzinha que outra -vescoutra- à Disneyworld.
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