28 abril, 2023

Ulysses: os quatro vírgula algo



Querido diário:

Faço aqui a lista das cinco traduções do "Ulysses", de James Joyce, a segunda das quais (de 1989) chegou-me ao conhecimento apenas há poucas semanas:


JOYCE, James (1966, 2003) Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 13a. ed. 957p. Tradução de Antônio Houaiss.

JOYCE, James (1989) Ulisses. Lisboa: Livros do Brasil, 1989. Tradução de João Palma-Ferreira.

JOYCE, James (2007) Ulisses. Rio de Janeiro: Alfaguarra/Objetiva. 908p. Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro.

JOYCE, James (2012) Ulysses. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras. 1106p. Tradução de Caetano Waldrigues Galindo. [Em 2022, Galindo lançou edição de luxo revisando essa edição Penguin].

JOYCE, James (2013). Ulisses. Lisboa: Relógio D'Água. 730p. Tradução de Jorge Vaz de Carvalho.

Coloquei o nome da cidade em negrito, a fim de facilitar a identificação das duas edições portuguesas. Nota Bene: na tradução de João Palma-Ferreira, de 1989, não menciono o número de páginas. Na verdade, parece-me já ter manuseado o livro com a capa que vemos acima, num alfarrabista em Lisboa. Mas não me detive no nome do tradutor, pensando tratar-se de Antônio Houaiss.

Então, falando em aritmética, me explico: a postagem fala em quatro vírgula algo, digamos, 4,3%. Quero dizer que desses cinco livros que listei, tenho quatro e conheço um pedacinho do quinto. Como provavelmente já o tive em mãos, achei que 30% dele já foi apropriado por meus sentidos, especialmente a visão e o tato. Vai saber...

DdAB

P.S. E tem a revisão da tradução de Houaiss (1966), fazendo nova adaptação do português brasileiro ao português original.

23 abril, 2023

A Volta de Dom Casmurro


Li, mas a suspeita com a memória fraca poderia exigir-me escrever "terei lido", que Monteiro Lobato afirmou que suas traduções levavam-no a reescrever as obras originais, ao invés de apenas dar-lhes traduções literais. Esse foi meu primeiro contato com o problema da tradução. Não foram poucos, mas de registro assistemático, e me indignando-divertindo com o tropeço (até mesmo em minhas escassas incursões com trechos técnicos com false friends, os falsos cognatos). Um récord nessa linha foi colocar "miserável" no lugar de miser. na Teoria do Desenvolvimento Capitalista, de Paul Sweezy, obra antiga da Editora Zahar. E tem friends que também são false friends, como pretend, dando tanto "pretender" quanto "fingir". Pretender, como "I pretend to travel just with a small bag" tá no Trip Advisor. E, mais antiguinho, aquele "my need is such I pretend too much", é -pelo contexto- fingir: "pretending I'm doin' well", do "The Platters". E se fossem apenas esses dois casos, a vida de um leitor dos originais em inglês ou dos tradutores seria mais fácil. Mas querer vida fácil no universo das traduções é o mesmo que querer montanhas nevadas de puro chocolate na Suíça.

Essa encrenca de "modernizar" traduções é ubíqua na literatura (tanto de leitura literária quanto técnica). No primeiro caso, cito as dezenas, talvez milhares de traduções do "Ulysses", de James Joyce, para dezenas de línguas. Destaco que, em português, há cinco: três no português brasileiro e duas no português original. Dessas sou o feliz proprietário de quatro, uma das quais, a mais antiga de Portugal nunca me chegou às garras (mas está na lista). E tem o anúncio apoteótico de nova tradução, a 18 mãos (uma por capítulo) da Ateliê Editorial, cognominando um projeto intitulado "Ulysses a 18 Vozes". Anunciado com fanfarras no dia 2 de janeiro de 2022, quando o lançamento de dois exemplares pela editora parisiense Shakespere and Company foi feito em 1922, até hoje estamos esperando o cumprimento da promessa. Só pode ter dado briga entre os 18, mais meia dúzia de editores da Ateliê (aqui): um vexame ainda não corrigido.

E, mesmo no caso da literatura técnica, há enormes controvérsias sobre a qualidade das traduções quando julgadas por luminares da área. Dou como exemplo a obra prima de Karl Marx, "O Capital". De meu conhecimento há uma edição em inglês dos anos 1930 e outra dos anos 1980, esta última bem mais legível para o estudioso contemporâneo. Em português do Brasil já foram feitas três tentativas de chegar ao nirvana tradutório d'O Capital, talvez todas insuficientes para o leitor criterioso. Por exemplo, a mais recente, da lavratura da BoiTempo, traduziu-se o que dezenas de tradutores e milhares de comentadores chamam de "mais-valia" por "mais-valor". Como se isso impedisse o leitor de entender que são os capitalistas que exploram os trabalhadores e não o contrário.

Segue-se minha modesta contribuição para o aumento da balbúrdia. Minha questão é se, por exemplo, Machado de Assis tivesse a chance de reescrever seu "Dom Casmurro", como ele o faria neste ano de 2023. Será que ele ainda referiria o "quarteirão Renânia", de Petrópolis - RJ? E tantos outros maneirismos compatíveis com o tempo da escrita que teriam, poderia eu jurar?, caído da moda. Mesmo que Machado não tivesse a gana de reescrever sua obra prima, nós temos a chance de fazê-lo nem tanto pegando o original de 1899 e relê-lo reescrevendo-o. Torna-se mais "científico" tomar a versão feita por algum autor consagrado e trazê-la de volta ao português brasileiro. Então selecionei

MACHADO DE ASSIS Dom Casmurro (1997) Oxford: Oxford University. Tradução de John Gledson.

E lancei-me a fazer um piloto que agora divulgo, com exclusividade, aqui no Planeta 23, trazendo o velho Dom Casmurro de volta ao Brasil, aliás, Brazil, como se escrevia lá no tempo da publicação. Então vejamos:

Capítulo I - O Título

   Num final de tarde, quando eu estava voltando da cidade para o Engenho Novo num trem da Central, encontrei um jovem da vizinhança que conhecia de vista e de chapéu. Ele saudou-me, sentou-se a meu lado, começou a falar sobre a lua e os vai-véns ministeriais, e culminou recitando alguns versos. A jornada era curta e pode ser que os versos não fossem inteiramente maus. Mas ocorre que eu estava cansado, e fechei os olhos três ou quatro vezes; o suficiente para que ele  interrompesse a leitura e colocasse seus poemas de volta no bolso.

   "Prossiga," eu disse acordando.

   "Terminei", ele murmurou.

   "São muito belos."

   Vi-o mexer-se para tirá-los do bolso novamente, mas não foi mais que um gesto: ele tinha encerrado. No dia seguinte, ele começou a referir-se a mim com ofensas, e culminou apelidando-me de Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostavam de meus hábitos pacatos e minha clausura, fizeram moeda corrente ao apelido, e no final ele colou. Não que eu tenha-me perturbado. Contei a história a alguns de meus amigos na cidade, e eles também passaram a assim chamar-me, por divertimento, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, estou indo jantar com você no domingo." "Estou indo a Petrópolis, Dom Casmurro, é a mesma vivenda no Renânia; veja se não pode arrastar-se para fora de seu covil no Engenho Novo, e venha passar umas duas semanas comigo." "Meu caro Dom Casmurro, nem pense que vou deixá-lo fora do teatro amanhã. Venha e passe a noite no centro; vou dar-lhe um camarote, um chá e uma cama; a única coisa que não poderei lhe dar é uma rapariga."

   Nem precisas procurar nos dicionários, cara leitora. Neste caso, Casmurro não tem o significado que lhe tem sido atribuído, mas aquele que a gente comum o faz, de uma pessoa tranquila, que reserva o que é de si para si. O Dom era irônico, acusando-me de pretensões aristocráticas. Tudo porque eu dei uma cochilada! Ainda assim, não pude encontrar um título mais adequado a minha narrativa; se eu não for capaz de encontrar outro antes de concluir o livro, vou manter o Dom Casmurro mesmo. Meu poeta do trem vai descobrir que não lhe desejo qualquer desventura. Ademais, com um pequeno esforço, uma vez que o título é seu, ele poderá pensar que toda a obra também é sua. Há livros que só devem isso a seus autores: alguns outros, nem mesmo isso.

DdAB

P.S. Meus aliados nesta tradução foram o https://www.dicio.com.br e o https://translate.google.com.br.

P.S.S. Aquele "Renânia" despertou-me enormes suspeitas: na literatura marxista, tem uma revista famosa, a Nova Gazeta Renana. O dicio.com.br não consigna "Renânia", mas inferi tratar-se do local em Petrópolis onde o amigo que convida Bentinho a subir a serra tem sua herdade. E, pelo que vemos na imagem que recolhi daqui, trata-se de um bairro ("quarteirão") da velha Petrópolis.

Capítulo I - O Título (original machadiano)

   Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. 

– Continue, disse eu acordando. 

– Já acabei, murmurou ele. 

– São muito bonitos. 

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar com você.” – “Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.” – “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça.” 

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.

Capter I - The Title ( versão de John Gledson)

 One evening just lately, as I was coming back from town to Engenho Novo on the Central line train, I met a young man from the neighborhood, whom I know by sight: enough to raise my hat to him. He greeted me, sat down next to me, started talking about the moon and the minesterial comings and goings, and ended up reciting some of his verses. The journey was short, and it may be that the verses were not entirely bad. But it so happened that I was tired, and closed my eyes thre or four times. enough for him to interrupt the reading and put his poems back in his pocket.

   "Go on," I said waking up.

   "I've finished," he murmured.

   "They're very nice."

   I saw him make a move to take them out again, but it was no more than a move: he was put out. Next day, he started calling me insulting names, and endedd up nicknaming me Dom Casmurro. The neighbors, who dislike my quiet, reclusive habits, gave currency to the nickname, and in the end it stuck. Not that I got uspet. I told the story to some of my friends in town, and they call me it too for fun, some in letters: "Dom Casmurro, I'm coming to dine with you on Sunday." "I'm going to Petrópolis, Dom Casmurro, it's the same house in Renânia; see if you can't drag yourself from your lair en Engenho Novo, and come and spend a couple of weeks with me." "My dear Dom Casmurro, don't think I'm letting you off the theater tomorrow. Come and spend the night in town; I'll give you a box, tea, and a bed; the only thing I can't give you is a girl."

Don't look it up in dictionaires. In this case, Casmurro doesn't have the meaning they give, but the one common people give it, of a quiet person who keeps himself to himself. The Dom was ironic, to accuse me of aristocratic pretensions. All because I nodded off! Still, I couldn't find a better title for my narrative; if I can't find another before I finish the book, I'll keep this one. My poet on the train will find out that I bear him no ill will. And with a little effort, since the title is his, he can think the whole work is. There are books that only owe that to their authors; some not even that much. 

P.S.S.S.S.S.: E agora uma experiência com o ChatGPT. Quero chegar no capítulo 1 do Dom Casmurro, mas tentei esquentar a máquina com: 

Can I speak in Portuguese with you, dear ChatGPT?

Sim, claro! Eu posso falar em português com você. Como posso ajudar?

Na verdade estou com um problema de tradução de uma revista muito conhecida, só que o título é em alemão. Mas só o sei em português, mesmo.

Com certeza! Fico feliz em ajudar com a tradução do título da revista alemã para o português. Por favor, me forneça o título em alemão que você gostaria de traduzir e farei o possível para ajudar.

Preciso da tradução do alemão ao português.

Entendido! Por favor, me forneça o título em alemão e eu farei a tradução para você.

Me enganei, Chat. Quero do português ao alemão. Você tinha razão, sei lá.

Sem problemas! Então, por favor, forneça-me o título da revista em português que você gostaria de traduzir para o alemão, e farei o possível para ajudar.

Em português, diz-se: Nova Gazeta Renana.

Ok, a tradução para o alemão do título "Nova Gazeta Renana" seria "Neue Rheinische Zeitung".

Mas agora não resisti e coloquei minha tradução do capítulo 1, ergo em português e pedi para verter ao inglês. Eis a resposta:

Chapter I - The Title

On a late afternoon, when I was returning from the city to Engenho Novo on a Central train, I ran into a young man from the neighborhood whom I knew by sight and by his hat. He greeted me, sat down next to me, began talking about the moon and ministerial comings and goings, and ended up reciting some verses. The journey was short, and the verses may not have been entirely bad. But I was tired and closed my eyes three or four times, enough for him to interrupt his reading and put his poems back in his pocket.

"Go on," I said, waking up.

"I'm done," he murmured.

"They're very beautiful."

I saw him move to take them out of his pocket again, but it was just a gesture: he was finished. The next day, he started referring to me with insults, and ended up calling me Dom Casmurro. The neighbors, who did not like my quiet habits and my seclusion, spread the nickname around, and in the end, it stuck. Not that I was disturbed by it. I told the story to some of my friends in the city, and they also started calling me that, jokingly, some in notes: "Dom Casmurro, I'm coming to have dinner with you on Sunday." "I'm going to Petrópolis, Dom Casmurro, it's the same estate in Renânia; see if you can crawl out of your den in Engenho Novo and come spend a couple of weeks with me." "My dear Dom Casmurro, don't even think I'm leaving you out of the theater tomorrow. Come and spend the night in the city; I'll give you a box, tea, and a bed; the only thing I won't be able to give you is a girl."

You don't even need to look in the dictionaries, dear reader. In this case, Casmurro does not have the meaning that has been attributed to it, but the one that ordinary people give it, of a quiet person who keeps to themselves. The Dom was ironic, accusing me of aristocratic pretensions. All because I took a nap! Even so, I couldn't find a more appropriate title for my narrative; if I'm not able to find another one before finishing the book, I'll keep Dom Casmurro. My poet on the train will find that I don't wish him any misfortune. Furthermore, with a little effort, since the title is his, he can think that the whole work is his as well. There are books that owe that much to their authors: some others, not even that.
abcz

17 abril, 2023

Ulysses: faltou um editor?

 

Quem sou eu para botar defeito num livro que -dizem- é a maior marca de registro do intelecto humano do século XX? Resposta: sou um cara que adora ler os comentadores do "Ulysses". Encontro-os em prefácios, introduções, pósfacios, adendos, rodapés, etc. das diferentes obras, diferentes traduções que coleciono, como já o fiz com caixinhas de fósforo e flâmulas. E, claro, crescentemente torno-me leitor de revistas especializadas em James Joyce. Refiro-me, em particular às revistas:

Qorpus. Florianópolis. V, 9 n. 3 Dez de 2019 Edição Especial: James Joyce. UFSC/PGET.

e

Qorpus. Florianópolis. V, 12 n. 2 Jun de 2022. PGET/UFSC.


Parece que os traços da loucura provocada pela sífilis que, crescentemente, avassalaram a saúde de Joyce, conforme hipótese levantada por Donaldo Schüller, impediram-no de ter "boa cabeça" para terminar o "Ulysses" e delirar ainda mais no "Finnegans Wake". Nada digo sobre o último, mas o "Ulysses" tem certa evidência da falta de editor, pois o próprio Joyce fez centenas de modificações no original submetido à Shakespeare and Company, editora parisiense que publicou o livro. O título do livro de Schüller (ver P.S.), assim que terminei de lê-lo, levou-me a responder: "Sim, era louco". E depois de assimilar essa percepção, cada vez vi mais indícios daquilo que a crítica especializada considerava inovações formais e genais no romance moderno como sendo nada mais nada menos que delírios doentios de alguém que sofreu as perversas consequências de uma doença que, descoberta em seus primórdios, tem cura.

DdAB
P.S.:  O livro de Schüller:
SCHÜLLER, Donaldo (2017) Joyce era louco? Cotia: Atelier.

15 abril, 2023

Ulysses, Camila e meu Aprendizado

 

Quem disse que nada aprendi com a leitura de "Ulysses", de James Joyce? Eu certamente não disse, pois aprendi com ele diretamente e montes de montes y montinos com os comentadores. Tal é o caso de Camila Peruchi (página 103):

[...] podemos fazer algumas considerações de ordem mais geral. No primeiro episódio de Ulysses, ocorre uma alternância entre discurso indireto, monólogo interior e discurso direto livre, com dá mostras o trecho que citamos a seguir. Para fins didáticos, mantemos sem formatação o discurso indireto; em negrito, o monólogo interior; e em itálico o discurso indireto livre:

Ele a observou que vertia na medida e dali para a jarra gordo leite branco, não seu. Peitos velhos mirrados. Verteu de novo uma medida e uma quebra. Secreta e velha, entrara vinda de um mundo matinal, quem sabe uma mensageira. Louvava a virtude do leite, vertendo. Agachada ao lado de uma vaca paciente na aurora do campo opulento, uma bruxa em seu cogumelo, velozes os dedos enrugados nas tetas que espirravam. Mugiam em volta dela, sua conhecida, gado sedosorvalhado. Seda da grei e pobre velhinha, nomes que ganhara nos tempos antigos. Uma velhusca errante, forma rebaixada de um imortal servindo seu conquistador e seu alegre traidor, ambos adúlteros seus, ela, núncio da manhã secreta. Servir ou vergastar, ele não sabia dizer qual: mas desdenhava implorar seu favor (JOYCE, 2012, p.111) [sic]

A fonte é:

PERUCCI, Camila (2022) “The battles behind the forehead”: pressupostos e efeitos do monólogo interior em Ulysses, de James Joyce. Qorpus v. 12 n. 2 jun 22 / Edição especial James Joyce / ISSN 2237-0617

Claro que esta lição não abarca todos os casos, mas é um bom início. E um PhD em estilo encontra-se aqui:

GARCIA, Othon M. (1983) Comunicação em prosa moderna; aprenda a escrever aprendendo a pensar.  Fundação Getúlio Vargas: Rio de Janeiro.11a edição.

 DdAB

P.S. A imagem é estranha para o contexto. Mas foi o que rolou quando comecei a escrever "discurso direto", só que com o "discurso d" veio esta foto da Dilma discursando na posse como presidenta do Banco dos BRICS...

14 abril, 2023

Ulysses, minto, Finnegans Wake


Jurei, não faz muito tempo, talvez uns dois ou três anos, que jamais leria "Finnegans Wake", de James Joyce, nem em inglês e, menos ainda, em português. Creio que isso compensa, com galhardia, a concessão que fiz ao autor irlandês quando decidi colecionar diferentes edições (português, espanhol, inglês e até um PDF italiano) do "Ulysses". Aliás, das traduções que adquiri no português (Brasil e Portugal), apenas a de Caetano Galindo grafa o "Ulysses" com esse "y" que acabamos de ver, que fora cassado do vernáculo em, creio, 1943, e recuperado em 2009. Minha tradução preferida, da dame Bernardina da Silveira Pinheiro pouco fala em "Ulysses".

Nunca me envergonhei de mostrar minha ignorância em diversas dimensões. E, agora que a memória fraqueja, nem tento esconder as tibiezas. Por exemplo, li, no contexto do que vou falar adiante sobre comentadores de Joyce, "entre parto e morte". Trata-se do artigo, como veremos, de Caetano Waldrigues Galindo. Isto levou-me a evocar a canção "Cabaret", quando ouvi (citando de memória): #Start by admiting from cradle to tumb #It is not such too long a stay..." E, se minha parada não é tão longa, por quê iria forçar-me a ler o tal "Finnegans Wake"? Começa pelo título: pelo que li aqui e ali, aquele "wake" bem pode ser ou  "enterro" ou "acordar".

Voltando ao "Ulysses", para minha alegria, depois de anos de tentativas de ler a tradução de Antônio Houaiss, fui capaz de ler a da profa. Pinheiro. A cada parágrafo, acorria-me enorme alegria por ter lido mais um parágrafo... Na hora em que terminei, fiquei estupefato: "então era isso o que eu tanto queria ler e é isto?" Parece que fui cético quanto à qualidade da fama de Joyce. E estou há anos lendo a tradução portuguesa da editora Relógio D'Água. Mas devo confessar que gosto mesmo é de ler os comentadores da dupla "Ulysses" e "Finnegans Wake". Gosto e me divirto, pois entre um deles que sempre cito e não lembro mais de onde veio, li que, para o "Ulysses", faltou um editor. E isto me iluminou a autoestima e especialmente a compreensão de que o "Ulysses" é impenetrável em sua totalidade. Tem, claro, passagens?interessantes e até brilhantes, mas o todo me cheira mesmo a anotações para a redação de um romance. E o "Finnegans Wake", pelo que li dos comentadores, é dificílimo. E de tudo isto incorporei a tese que li no comentador Donaldo Schüller indagando se "Joyce era louco", acossado que foi pela sífilis que tanto lhe prejudicou a visão. A propósito, Schüller fala que o livro começa com o substantivo/advérbio "stately" e termina com "yes" do monólogo de Molly Bloom, as inciais da palavra "sífilis", o que o velho Hoauiss mantém em português: "sobranceiro" e um plural para sim: "sims".

Claro que esta compreensão limitadora que faço das últimas obras de Joyce não é compartilhada pela maioria dos comentadores que li. Ao contrário. E tem gente que passa a vida estudando cada uma de suas obras ou seu coletivo. Já citei aqui mesmo (neste blog) a professora Dirce Nogueira Galvão (aqui) da UFSC. E depois me chegaram aos olhos dois exemplares da formidável revista "Qorpus", publicados em dezembro de 2019 e junho de 2022 pela UFSC.

As revistas:

Qorpus. V, 9 n. 3 Dez de 2019 Edição Especial: James Joyce. UFSC/PGET.

e

Qorpus. V, 12 n. 2 Jun de 2022. PGET/UFSC.

Nas páginas 151-157, podemos ler o artigo "Auto & Muto; um excerto do Finnegans wake", de Caetano Waldrigues Galindo. Lá, além de falar naquele "vida entre parto e morte". Com cinco parágrafos introdutórios (um deles é de uma única sentença; "Isto pode parecer também denso, também opaco." Para saber o que é "isto", recomendo que o leitor leia o parágrafo anterior, que não vou citar aqui, mas o número da revista encontra-se na internet e se chega a ela clicando aqui.

O trecho a seguir, recortado das páginas 15 a 18 do Finnegans Wake, contém uma das mais famosas 'cenas' da abertura do romance. Como quase tudo neste trecho do livro, o diálogo entre Mutt e Jute aparece do meio do nada. Ele encena a conquista da Irlanda pelos povos germânicos (os Jutos, nesse caso, possivelmente vindos da península dinamarquesa que até hoje se chama Jutlândia), além de vários outros conflitos entre 'estranhos', que moldaram a história (e a pré-história) da terra de Joyce. Além disso, as personagens também ecoam os cartuns de Mutt e Jeff, populares entre 1907 e 1983 (!) [sic], que tiravam seu humor das inadequações recíprocas dos dois personagens.

Seguem-se os soit disant cinco parágrafos. Na ilustração da postagem de hoje, citei um trechinho da tradução de Galindo, fazendo-a acompanhar-se do original.

DdAB

P.S. E, por isso, vivo relendo os comentadores que, obviamente, já li. E sempre me mantenho em estado de alerta para campear novos comentadores.

12 abril, 2023

Schopenhauer e o Igualitarismo


   Todos sabemos que leio, li, lia, lera, leria, lerei livros de introdução à filosofia, área em que me doutorei enquanto autodidata. Nesta Páscoa e dias que a sucederam, li, leio, lerei o professor britânico do livro que há poucos dias já referi nestas paragens:

WARBURTON, Nigel (2022) Uma breve história da Filosofia. Porto Alegre, L&PM. Coleção Pocket, n. 1086.

Na manhã de hoje, acabo de concluir o capítulo sobre Arthur Schopenhauer, o filósofo um tanto enviesadamente conhecido por seu pessimismo. São seis pagininhas (da 147 até a 152) lotadas de informação. Quase ao final delas, vi o realce implicado por Schopenhauer à filosofia do igualitarismo. Mas, antes de citar Warburton, preciso falar em mim (hehehe). Lendo o livro de introdução à dialética de Carlos Roberto Cirne-Lima (com várias postagens referindo-o), cheguei aos conceitos de R³ e Ri.

Não juro de maneira jurada, nem mesmo de pés juntos, que

R³, que defino como a realidade realmente real (na linha de Cirne, claro, o conceito, mas não o símbolo): a mais absoluta clareza na definição do que é o mundo inteiro, o universo, os espaços supralunares, essas coisas. Tudo, tudo o que podemos ver, sentir e mesmo imaginar encontra-se dentro do conjuntão R³, que a tudo abarca, inclusive nós mesmos. E esta continência é um tanto estilo Uroburo, pois, se estamos dentro do R³ e o estamos pensando, que fica para o Ri?

Ri, é o mundo da realidade imaginada: o Ri nos dá a dimensão que somos, enquanto seres pensantes, capazes de ver, sentir, e mesmo intuir que "moramos" no R³.

Assim a Ri é a visão que formamos da R³, naturalmente capturando apenas uma fração -eu até diria- ínfima da R³. E a R³ é a realidade realmente real, aquela que não pode ser negada, ainda que não a conheçamos (e talvez nunca venhamos a conhecer in totum) todas as suas facetas, por exemplo, o que acontece com ela quando o tempo acaba.

Ainda faço o registro da opus magnum do filósofo americano:

RORTY, Richard (1988) A filosofia e o espelho da natureza. Lisboa: Dom Quixote.

sobre quem postei aqui. Pois relendo as partes fáceis alguns dias atrás vi minha anotação precisamente sobre o significado do título. À página 90, Rorty diz: "o conhecimento humano [é] um espelho da natureza." Naturalmente, ele fala naquilo que, inspirado por Cirne-Lima chamei de Ri, aquele mundo da realidade imaginada. Ou seja, existe um mundo, a realidade realmente real que a tudo abarca, inclusive o conhecimento humano. E os seres cognoscentes, ou seja, ourselves e outros bichos que habitam o Terceiro Planeta de Sol não são capazes de ir além de espelhar um subconjunto de R³.

Vejamos agora o que Warburton atribui a Schopenhauer sobre sua concepção de mundo (p.148-149):

   Seu livro mais importante, O mundo como Vontade e Representação, foi publicado em 1818, mas continuou trabalhando na obra durante anos, o que gerou uma versão mais longa em 1844. A principal ideia no cerne da obra era bastante simples. A realidade tem dois aspectos. Ela existe tanto como Vontade quanto como Representação. A Vontade é a força propulsora cega, encontrada em absolutamente todas as coisas que existem. É a energia que faz as plantas e os animais crescerem, mas também é a força que faz as bússolas apontarem para o norte e os cristais se formarem nos compostos químicos. Ela está presente em cada parte da natureza. O outro aspecto, o mundo como Representação, é o mundo como o experimentamos.

   O mundo como Representação é a nossa construção da realidade em nossa mente. [...] O que você experimenta pelos sentidos é o mundo como Representação. É a sua maneira de dar sentido a tudo, e ela requer a consciência. Sua mente organiza a experiência para dar sentido a toda ela. O mundo como Representação é o mundo no qual vivemos.

Agora temos tudo para compreender esse traço igualitarista que se encontra na visão schopenhaueriana do mundo. Nas p.151-152, lemos:

   Schopenhauer não descreveu apenas a realidade e nossa relação com ela. Ele também tinha ideias sobre como deveríamos viver Uma vez que percebemos que todos fazermos parte de uma força energética e que as pessoas enquanto indivíduos existem somente no nível do mundo como Representação, isso devia mudar o  que fazermos. Para Schopenhauer, causar mal aos outros é também causar mal a si próprio. Este é o fundamento de toda a moral. Se eu mato você, destruo uma parte da força vital que une todos nós. Quando alguém causa o mal a outra pessoa, é como uma cobra que morde a própria cauda sem saber que está fincando as presas na própria carne. Desse modo, a moral básica de Schopenhauer ensinava era a compaixão. Dito de forma mais clara, as outras pessoas não são externas a mim. Eu me importo com o que acontece com você porque, de certa maneira, você faz parte daquilo de que todos nós fazemos parte: o mundo como Vontade.

A essa visão de condenação de fazermos o mal a terceiros, pois isto reflete em nosso próprio bem-estar evocou a frase que ouço ser atribuída a Confúcio: não faças aos outros aquilo que não queres que te façam.

DdAB

P.S. A imagem que hoje nos ilustra veio daqui. O Uroburo em ilustração de um site italiano está na ilustração do capitulinho, mas não é referido no texto. Mas não duvido que Warburton saiba mais sobre ele que eu. Aquele "en to pan" significa "o todo é uno", algo assim. E o site diz: "Simbolo dell’eterno ritorno e dell’incessante rigenerarsi della vita, rappresenta l’eternità."

03 abril, 2023

Teseu, Hobbes e Eu

 

(Trecho de Plutarco na Wikipedia)

Volta e meia, ao declarar-me Doctor of Philosophy, o que incontestavelmente sou, fico pensando em que sabia eu de filosofia para ser declarado doutor. Então, tentando eliminar esse paradoxo de minha titulação, comecei a ler livros de introdução à filosofia, tentando alcançar meu segundo doutorado, agora como um Doutor em Introdução à Filosofia. Se a moda pega, o título vai ser designado por DIF, ao invés de PhD..

E também sempre digo que basta olhar um livro introdutório ao tema que já vou botando a mão no bolso e comprando. A última vez que este fenômeno mercantil ocorreu foi na quinta-feira 23 de março do ano corrente. Numa banca de revistas do alto da rua Ramiro Barcellos, quase na confluência dela com a dupla Independência (prá esquerda de quem sobe a Ramiro) e Mostardeiro (à direita). Do fenômeno mercantil, passei à contemplação filosófica com o livro:

WARBURTON, Nigel (2022) Uma breve história da Filosofia. Porto Alegre, L&PM. Coleção Pocket, n. 1086.

Primeiro: quem é Warburton para estar escrevendo o que ainda não acabei de ler? Não é qualquer um, eis que olhei na Wikipedia inglesa (não tem o verbete na brasileira) e achei a sinopse:

Nigel Warburton (/ˈwɔːrbərtən/; born 1962) is a British philosopher. He is best known as a populariser of philosophy, having written a number of books in the genre, but he has also written academic works in aesthetics and applied ethics.

Pois bem, nas páginas 92-93 do livro, em pleno capítulo 14 intitulado "O Príncipe e o Sapateiro", sobre John Locke e Thomas Reid, lemos a seguinte passagem:

   Não temos nenhuma fotografia ou desenho de Locke quando criança, mas é provável que tenha mudado bastante à medida que envelheceu. Quando chegou à meia-idade, ele era uma figura magra, de olhar penetrante e cabelo comprido e irregular. Quando bebê, no entanto, teria sido bem diferente. Uma das crenças de Locke era a de que a mente de um recém-nascido é como um quadro branco. Não sabemos nada quando nascemos, e todo o conhecimento que temos vem da experiência da vida. Quando o bebê Locke cresceu e tornou-se um jovem filósofo, adquiriu todos os tipos de crenças e tornou-se a pessoa que hoje conhecemos como John Locke. Mas em que sentido ele foi a mesma pessoa que o bebê, e em que sentido o Locke de meia-idade era a mesma pessoa que ele foi quando jovem?

   Esse tipo de problema não pode ser levantado somente para seres humanos que se perguntam sobre sua relação com o passado. Como percebeu Locke, isso pode ser uma questão quando pensamos sobre meias. Se temos uma meia com um buraco e remendamos, e depois remendamos outro buraco e mais outro, acabaremos tendo uma meia que consiste apenas de remendos, nada mais do material original. Ela ainda será a mesma meia? Em certo sentido, sim, pois há uma continuidade de partes da meia original à meia totalmente remendada. Contudo, em outro sentido, ela não é a mesma meia, pois nela não resta nada do material original. Ou, então, pense em uma árvore. Ela nasce de uma semente, perde as folhas todos os anos, cresce, os galhos caem, mas ela continua sendo a mesma árvore. Seria a semente a mesma planta que o broto s seria o broto a mesma planta que a árvore? [...]

Pois então. Parece que Locke tirou essa problematização das modificações de um objeto material, tão profundas, que dele não sobra nada do momento da criação, inclusive árvores, bebês, casas, barcos. Por falar em barcos, não faz muito tempo (talvez em outro livro de introdução à filosofia) que li sobre a barca de Teseu. Tem um monte de coisas na Wikipedia em inglês (aqui) e alguma coisa na versão em português (aqui). E, mesmo sem o verbete "ship of Theseus", a Stanford Encyclopedia of Philosophy tem montes de referências a esse, diz a Wiki, paradoxo.

E que é a barca de Teseu? A mesma ideia: um barco que viaja entre dois portos incansavelmente, bate numa pedra aqui, no cais do porto acolá, novamente numa pedra, outro porto, uma tábua apodrece, é trocada. Depois outra e mais outra ainda. O leme, as velas, Um banquinho da carlinga, sei lá que mais. A questão que tem a ver com a metafísica (estudo do ser) ou com a epistemologia (teoria do conhecimento). E Hobbes está pensando exatamente nestas linhas: o que faz um homem ou uma mulher deter a condição de humano?

DdAB

(Texto de Thomas Hobbes da Wikipedia)

P.S. Como sabemos, Teseu foi o herói da mitologia grega que matou o Minotauro. Claro que, para as crianças de hoje, o Minotauro é mais famoso que seu algoz.

P.S.S, Deste dia até hoje, pela primeira vez ouvi falar em "mereologia". Segui "footnotes references" daqui e dali e nem sei mais como foi que tudo começou. Eu costumava definir "estrutura" como a relação que partes e todos mantêm entre si", definição retirada de algum livro de economia do desenvolvimento ou de alguma outra obra que bem pode ter sido de economia industrial ou sabe-se lá de onde. Então tenho dois links para apresentar para quem se interessa, tal qual me interesso eu, pelo tema: Wikipedia (aqui) e Stanford Encyclopedia of Philosophy (aqui). A Wikipedia brasileira tá aqui. [Nota das 21h27min de 4/abr/2023 sábado de aleluia]

P.S.S.S. E tem mais: li há muito tempo que, de tempos em tempos, todas as células de um corpo humano são trocadas: são criadas, vivem, envelhecem e morrem, dando lugar a outras assemelhadas. Delas é que vêm as mutações que fazem a festa dos processos evolucionários: mudanças incrementais e sucessivas. E parece que a exceção a esse troca-troca são as células neuronais. Outra hora vou dar uma campeada nessa viagem. OK, ok, não me contive e li esta matéria aqui. Claro que não posso responder por ela. Vou dar mais uma campeada e ver se encontro algo de maior reputação. Mais prestígio? Tá aqui o UOL. Na linha de Hobbes, podemos dizer que somos os mesmos desde o nascimento apenas no que diz respeito a nosso legado neuronal. O resto, dentes, ossos, olhos, pestanas, tudo, tudinho é trocado. Ainda assim, devo investigar mais sobre o tema.