Li, mas a suspeita com a memória fraca poderia exigir-me escrever "terei lido", que Monteiro Lobato afirmou que suas traduções levavam-no a reescrever as obras originais, ao invés de apenas dar-lhes traduções literais. Esse foi meu primeiro contato com o problema da tradução. Não foram poucos, mas de registro assistemático, e me indignando-divertindo com o tropeço (até mesmo em minhas escassas incursões com trechos técnicos com false friends, os falsos cognatos). Um récord nessa linha foi colocar "miserável" no lugar de miser. na Teoria do Desenvolvimento Capitalista, de Paul Sweezy, obra antiga da Editora Zahar. E tem friends que também são false friends, como pretend, dando tanto "pretender" quanto "fingir". Pretender, como "I pretend to travel just with a small bag" tá no Trip Advisor. E, mais antiguinho, aquele "my need is such I pretend too much", é -pelo contexto- fingir: "pretending I'm doin' well", do "The Platters". E se fossem apenas esses dois casos, a vida de um leitor dos originais em inglês ou dos tradutores seria mais fácil. Mas querer vida fácil no universo das traduções é o mesmo que querer montanhas nevadas de puro chocolate na Suíça.
Essa encrenca de "modernizar" traduções é ubíqua na literatura (tanto de leitura literária quanto técnica). No primeiro caso, cito as dezenas, talvez milhares de traduções do "Ulysses", de James Joyce, para dezenas de línguas. Destaco que, em português, há cinco: três no português brasileiro e duas no português original. Dessas sou o feliz proprietário de quatro, uma das quais, a mais antiga de Portugal nunca me chegou às garras (mas está na lista). E tem o anúncio apoteótico de nova tradução, a 18 mãos (uma por capítulo) da Ateliê Editorial, cognominando um projeto intitulado "Ulysses a 18 Vozes". Anunciado com fanfarras no dia 2 de janeiro de 2022, quando o lançamento de dois exemplares pela editora parisiense Shakespere and Company foi feito em 1922, até hoje estamos esperando o cumprimento da promessa. Só pode ter dado briga entre os 18, mais meia dúzia de editores da Ateliê (aqui): um vexame ainda não corrigido.
E, mesmo no caso da literatura técnica, há enormes controvérsias sobre a qualidade das traduções quando julgadas por luminares da área. Dou como exemplo a obra prima de Karl Marx, "O Capital". De meu conhecimento há uma edição em inglês dos anos 1930 e outra dos anos 1980, esta última bem mais legível para o estudioso contemporâneo. Em português do Brasil já foram feitas três tentativas de chegar ao nirvana tradutório d'O Capital, talvez todas insuficientes para o leitor criterioso. Por exemplo, a mais recente, da lavratura da BoiTempo, traduziu-se o que dezenas de tradutores e milhares de comentadores chamam de "mais-valia" por "mais-valor". Como se isso impedisse o leitor de entender que são os capitalistas que exploram os trabalhadores e não o contrário.
Segue-se minha modesta contribuição para o aumento da balbúrdia. Minha questão é se, por exemplo, Machado de Assis tivesse a chance de reescrever seu "Dom Casmurro", como ele o faria neste ano de 2023. Será que ele ainda referiria o "quarteirão Renânia", de Petrópolis - RJ? E tantos outros maneirismos compatíveis com o tempo da escrita que teriam, poderia eu jurar?, caído da moda. Mesmo que Machado não tivesse a gana de reescrever sua obra prima, nós temos a chance de fazê-lo nem tanto pegando o original de 1899 e relê-lo reescrevendo-o. Torna-se mais "científico" tomar a versão feita por algum autor consagrado e trazê-la de volta ao português brasileiro. Então selecionei
MACHADO DE ASSIS Dom Casmurro (1997) Oxford: Oxford University. Tradução de John Gledson.
E lancei-me a fazer um piloto que agora divulgo, com exclusividade, aqui no Planeta 23, trazendo o velho Dom Casmurro de volta ao Brasil, aliás, Brazil, como se escrevia lá no tempo da publicação. Então vejamos:
Capítulo I - O Título
Num final de tarde, quando eu estava voltando da cidade para o Engenho Novo num trem da Central, encontrei um jovem da vizinhança que conhecia de vista e de chapéu. Ele saudou-me, sentou-se a meu lado, começou a falar sobre a lua e os vai-véns ministeriais, e culminou recitando alguns versos. A jornada era curta e pode ser que os versos não fossem inteiramente maus. Mas ocorre que eu estava cansado, e fechei os olhos três ou quatro vezes; o suficiente para que ele interrompesse a leitura e colocasse seus poemas de volta no bolso.
"Prossiga," eu disse acordando.
"Terminei", ele murmurou.
"São muito belos."
Vi-o mexer-se para tirá-los do bolso novamente, mas não foi mais que um gesto: ele tinha encerrado. No dia seguinte, ele começou a referir-se a mim com ofensas, e culminou apelidando-me de Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostavam de meus hábitos pacatos e minha clausura, fizeram moeda corrente ao apelido, e no final ele colou. Não que eu tenha-me perturbado. Contei a história a alguns de meus amigos na cidade, e eles também passaram a assim chamar-me, por divertimento, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, estou indo jantar com você no domingo." "Estou indo a Petrópolis, Dom Casmurro, é a mesma vivenda no Renânia; veja se não pode arrastar-se para fora de seu covil no Engenho Novo, e venha passar umas duas semanas comigo." "Meu caro Dom Casmurro, nem pense que vou deixá-lo fora do teatro amanhã. Venha e passe a noite no centro; vou dar-lhe um camarote, um chá e uma cama; a única coisa que não poderei lhe dar é uma rapariga."
Nem precisas procurar nos dicionários, cara leitora. Neste caso, Casmurro não tem o significado que lhe tem sido atribuído, mas aquele que a gente comum o faz, de uma pessoa tranquila, que reserva o que é de si para si. O Dom era irônico, acusando-me de pretensões aristocráticas. Tudo porque eu dei uma cochilada! Ainda assim, não pude encontrar um título mais adequado a minha narrativa; se eu não for capaz de encontrar outro antes de concluir o livro, vou manter o Dom Casmurro mesmo. Meu poeta do trem vai descobrir que não lhe desejo qualquer desventura. Ademais, com um pequeno esforço, uma vez que o título é seu, ele poderá pensar que toda a obra também é sua. Há livros que só devem isso a seus autores: alguns outros, nem mesmo isso.
DdAB
P.S. Meus aliados nesta tradução foram o https://www.dicio.com.br e o https://translate.google.com.br.
P.S.S. Aquele "Renânia" despertou-me enormes suspeitas: na literatura marxista, tem uma revista famosa, a Nova Gazeta Renana. O dicio.com.br não consigna "Renânia", mas inferi tratar-se do local em Petrópolis onde o amigo que convida Bentinho a subir a serra tem sua herdade. E, pelo que vemos na imagem que recolhi daqui, trata-se de um bairro ("quarteirão") da velha Petrópolis.
Capítulo I - O Título (original machadiano)
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
– Continue, disse eu acordando.
– Já acabei, murmurou ele.
– São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar com você.” – “Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.” – “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça.”
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.
Capter I - The Title ( versão de John Gledson)
One evening just lately, as I was coming back from town to Engenho Novo on the Central line train, I met a young man from the neighborhood, whom I know by sight: enough to raise my hat to him. He greeted me, sat down next to me, started talking about the moon and the minesterial comings and goings, and ended up reciting some of his verses. The journey was short, and it may be that the verses were not entirely bad. But it so happened that I was tired, and closed my eyes thre or four times. enough for him to interrupt the reading and put his poems back in his pocket.
"Go on," I said waking up.
"I've finished," he murmured.
"They're very nice."
I saw him make a move to take them out again, but it was no more than a move: he was put out. Next day, he started calling me insulting names, and endedd up nicknaming me Dom Casmurro. The neighbors, who dislike my quiet, reclusive habits, gave currency to the nickname, and in the end it stuck. Not that I got uspet. I told the story to some of my friends in town, and they call me it too for fun, some in letters: "Dom Casmurro, I'm coming to dine with you on Sunday." "I'm going to Petrópolis, Dom Casmurro, it's the same house in Renânia; see if you can't drag yourself from your lair en Engenho Novo, and come and spend a couple of weeks with me." "My dear Dom Casmurro, don't think I'm letting you off the theater tomorrow. Come and spend the night in town; I'll give you a box, tea, and a bed; the only thing I can't give you is a girl."
Don't look it up in dictionaires. In this case, Casmurro doesn't have the meaning they give, but the one common people give it, of a quiet person who keeps himself to himself. The Dom was ironic, to accuse me of aristocratic pretensions. All because I nodded off! Still, I couldn't find a better title for my narrative; if I can't find another before I finish the book, I'll keep this one. My poet on the train will find out that I bear him no ill will. And with a little effort, since the title is his, he can think the whole work is. There are books that only owe that to their authors; some not even that much.
P.S.S.S.S.S.: E agora uma experiência com o ChatGPT. Quero chegar no capítulo 1 do Dom Casmurro, mas tentei esquentar a máquina com:
Sim, claro! Eu posso falar em português com você. Como posso ajudar?
Na verdade estou com um problema de tradução de uma revista muito conhecida, só que o título é em alemão. Mas só o sei em português, mesmo.
Com certeza! Fico feliz em ajudar com a tradução do título da revista alemã para o português. Por favor, me forneça o título em alemão que você gostaria de traduzir e farei o possível para ajudar.
Preciso da tradução do alemão ao português.
Entendido! Por favor, me forneça o título em alemão e eu farei a tradução para você.
Me enganei, Chat. Quero do português ao alemão. Você tinha razão, sei lá.
Sem problemas! Então, por favor, forneça-me o título da revista em português que você gostaria de traduzir para o alemão, e farei o possível para ajudar.
Em português, diz-se: Nova Gazeta Renana.
Ok, a tradução para o alemão do título "Nova Gazeta Renana" seria "Neue Rheinische Zeitung".
On a late afternoon, when I was returning from the city to Engenho Novo on a Central train, I ran into a young man from the neighborhood whom I knew by sight and by his hat. He greeted me, sat down next to me, began talking about the moon and ministerial comings and goings, and ended up reciting some verses. The journey was short, and the verses may not have been entirely bad. But I was tired and closed my eyes three or four times, enough for him to interrupt his reading and put his poems back in his pocket.
"Go on," I said, waking up.
"I'm done," he murmured.
"They're very beautiful."
I saw him move to take them out of his pocket again, but it was just a gesture: he was finished. The next day, he started referring to me with insults, and ended up calling me Dom Casmurro. The neighbors, who did not like my quiet habits and my seclusion, spread the nickname around, and in the end, it stuck. Not that I was disturbed by it. I told the story to some of my friends in the city, and they also started calling me that, jokingly, some in notes: "Dom Casmurro, I'm coming to have dinner with you on Sunday." "I'm going to Petrópolis, Dom Casmurro, it's the same estate in Renânia; see if you can crawl out of your den in Engenho Novo and come spend a couple of weeks with me." "My dear Dom Casmurro, don't even think I'm leaving you out of the theater tomorrow. Come and spend the night in the city; I'll give you a box, tea, and a bed; the only thing I won't be able to give you is a girl."
You don't even need to look in the dictionaries, dear reader. In this case, Casmurro does not have the meaning that has been attributed to it, but the one that ordinary people give it, of a quiet person who keeps to themselves. The Dom was ironic, accusing me of aristocratic pretensions. All because I took a nap! Even so, I couldn't find a more appropriate title for my narrative; if I'm not able to find another one before finishing the book, I'll keep Dom Casmurro. My poet on the train will find that I don't wish him any misfortune. Furthermore, with a little effort, since the title is his, he can think that the whole work is his as well. There are books that owe that much to their authors: some others, not even that.
abcz
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