15 maio, 2019

Finnegans Wake: não dá pra ler...


Querido diário:

No livro de Donaldo Schüller intitulado "Joyce era louco?", fui levado a retirar o ponto de interrogação: claro que era louco, muito louco. De minha parte, comecei a esposar esta manière de voir digamos que em 1970, quando adquiri a primeira tradução do "Ulysses" para o português perpetrada por Antônio Houaiss. Trata-se daquele "Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan...". (olhar rodapé ou no motor de busca do próprio blog).

Desde então, venho tomando muitas precauções para não endoidar -myself- com o monte de follies que nosso amigo Jim praticou. Pois, depois de ler o livro de Caetano Galindo intitulado "Sim, eu disse sim..." (lá no rodapé) é que decidi que, além do trio "Dublinenses", "Um Retrato do Artista quando Jovem" e do próprio "Ulysses", eu não leria mais nada escrito diretamente por James Joyce. Pensei em transitar a um mundo formado apenas pelos comentários e comentadores de qualquer obra, mas em particular do "Finnegans Wake", o último romance publicado em 1939. Então estabeleci um programa de trabalho, ou programa de lazer, sabe-se lá:

.1 ler o verbete da Wikipedia (aqui em inglês e um verbetinho em português)
.2 ler os trechos pertinentes aos anos da composição do romance ("Finnegans Wake", por supuesto) na biografia escrita por
ELLMAN, Richard (1982) James Joyce. 2 ed. Barcelona: Anagrama. [Por razões antibibliográficas, a macacada barceloneta não traduziu o índice analítico do original em inglês].
.3 ler o livro
AMARANTE, Dirce Waltrick (2018) Finnegans Wake (por um fio). São Paulo: Iluminuras.
.4 ler o livro
AMARANTE, Dirce Waltrick (2009) Para ler Finnegans Wake. Sâo Paulo: Iluminuras.
.5 declarar-me livre para ler o que bem entender nesta linha de perkiza [e, pelo jeito, já fui contagiado pelas loucuragens do irlandês, pois acabo de inventar a palavra perkiza, que é, como sabemos, derivada de perquirir e pesquisar].

Nesta linha de influência rebelde, voltei a escrever na língua do JLM (de "Joyce era louco mesmo"): jistoleler é repetunterpretar, ou seja, ler é interpretar, mas, interpretei mal?, ouvir também é interpretar.

Em continuação, vou revelando meu desagrado com o título usado na tradução dos irmãos Campos publicada em 1962 intitulada "Finnicius Revém" que terminou na tradução de Donaldo Schüller intitulado "Finnegans Wake/Finnicius Revém". Pois não fui longe e logo nas primeiras páginas do primeiro capítulo da vida em Paris de James Joyce e família, achei por bem (ou acharam que eu achasse) traduzir a encrenca como "Os Rastros da Família Finnegan", que também poderia ser "O Despertar da Família Finnegan" ou, ao contrário, "O Velório dos Finnegans". Escolhi "O Despertar dos Finnegans". E por que o plural? A respeito dos Finnegans e não os Finnegan, reporto-me a Érico Veríssimo, que falava nos Silvas, nos Souzas, e por aí vai. Primeiro, declarei Érico um vassalo do imperialismo americano. Mas depois então entendi que o adjetivo concorda com o substantivo: se o artigo está no plural, então é porque o substantivo é que estava.

De onde veio o Finnegan? Sabemos que, nas páginas 605-6 do livro de Ellman que acabo de referenciar,

[...] Quando o escultor August Suter lhe perguntou o que estava escrevendo [depois de verem o Ulysses publicado], respondeu com sinceridade 'É difícil dizer'. 'Pois então qual é o título?'. 'Não sei. É como uma montanha  em que estou fazendo túneis em todas as direções, sem saber o que vou encontrar'. Na verdade, ele já sabia o título, e o contara a Nora [esposa de James] como um segredo [e nesse período se referiam ao livro como "Work in Progress"]. Seria Finnegan's Wake, com o apóstrofo entre o 'n' e o 's' suprimido porque significava , de sua parte, a morte de Finnegan e o ressurgimento dos Finnegan. O título era o de uma balada falando de um homem que carrega uma vasilha e que cai de uma escada. Supõe-se que morre em consequência da queda, mas no velório o cheiro do whisky o ressuscita, Sob esse tipo de pedreiro [?] irlandês, tinha um protótipo irlandês mais velho, Finn MacCumhal, o herói e sábio legendário. Joyce informou posteriormente a um amigo que concebia o livro como o sonho do velho Finn que encontra-se morto ao lado do rio Liffey e vê a história da Irlanda e a do mundo fluir -passado e futuro- por sua mente como se se tratasse de destroços [?] flutuando no rio da vida. Mas isto talvez tenha sido apenas para indicar que não era o sonho de nenhum dos personagens centrais do livro, [...]

Então: antes do livro de Joyce já havia uma canção (balada) intitulada Finnegan's Wake. O carinha que morre e ressuscita se chama Timothy (Tim) Finnegan. A certa altura do original citado por Ellman, lemos "[...] So they carried him home his corpse to wake [...]". Ou seja, se o neguinho morra de uma queda, quebrando o quengo, aquele corpse estava sendo velado e não acordado. Claro que uma das razões que minha psicanálise do velho Joyce aponta como responsável pela escolha daquele título é precisamente o fato de que "wake" é um termo equívoco, isto é, tem mais de um significado.

Dada a arbitrariedade que percola toda a obra e biografia dele, Joyce, dos comentadores e a minha própria, decidi-me por "O Despertar dos Finnegans", tendo bem claro, dado o que não li, tratar-se da família formada pelo casal Humphrey Chimpden Earwicker e Anna Livia Plurabelle e seus filhos Schem, Shaun e Isobel (Issy). De minha parte, sigo me atrevendo a ousadias novelescas. Parece-me que o nome Humphrey está tudo normal, mas aquele Chimpden cheira-me a um chimp, um chimpanzé e aquele Earwicker também me parece com um ouvido doentio, algo assim. Anna está ok, Lívia, também. E aquele Plurabelle não parece uma ode às belezas plurais da ragazza?

A tradução daquele 'wake' como velório ainda esbarra no que acabo de aprender ao dar umas olhadas no livro de 2018 de Dirce Waltrick do Amarante. O livro dela tem uma introdução assinada por Patrick O'Neill (who?) que, na página 13, diz:

[...] Se a palavra francesa fin significa 'fim', o termo latino negans, entretanto, significa 'negando', e isso sugere que o que pode parecer um fim pode também na verdade ser um novo começo. As referências cruzadas nas duas palavras do título, a findar e começar, a morte e ressurreição, a adormecer e despertar, a heróis do passado e urgências atuais são geradas por um conjunto de trocadilhos interligados - uma forma de jogo de palavras cômico considerado por críticos sérios de uma geração anterior como uma das formas mais baixas de humor. 

Pois então: mais razões para não pensarmos que Joyce estava inequivocamente rememorando o velório. E, sendo mesmo verdade, que o próprio Joyce falava no livro como expressão de sonhos, tá na cara que morto não sonha, velório não abriga sonhos do do caixão... Ao mesmo tempo, ele concebeu o título do livro tanto tempo antes da publicação que não posso descartar a hipótese de que ele se valeu precisamente do duplo sentido daquele wake para valorizar a desventura e reaventura de Tim Finnegan, parodiando-o com a família Earwicker.

Alonguei-me. Alongo-me um tanto mais a fim de concluir. Em mais de uma postagem deste blog, comparo a primeira sentença do Ulysses entre as diferentes traduções que constituem minha coleção dessa obra. Parece evidente que devo fazer o mesmo com o Finnegans Wake, o que, a rigor, pelo que agora sei, parece impossível. Então voltemos a olhar a imagem que nos ilustra hoje. Retirei-a da Wikipedia brasileira, tratando-se da primeira frase. Mas, diferentemente do Ulysses, cuja primeira sentença é meu objeto de estudos, aqui no Finnegans Wake vou ater-me apenas à primeira palavra (se é que aquilo é palavra...): riverrun. A melhor tradução pareceu-me ser a de Dirce Waltrick do Amarante. E foi a partir daí que decidi ler os dois livros dela. Com efeito, entre aqueles portentosos intelectuais tradutores, preferi a da professora da UFSC: correorrio. Em outras palavras, já li o suficiente: Joyce era mesmo louco! Com isto, declaro-me integrando o grupo de comentadores que se recusam a ler a crux of the matter. E, em breve, retornarei a ela (a matter...), sem prejuízo de novas reflexões sobre o Ulysses, outras tantas sobre notícias boas ou más do jornal Zero Hora, repercussões de publicações de amigos no Facebook e, finalmente, motto próprio.

DdAB
P.S. Página 9 do Houaiss, primeira sentença: Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha..
P.S.S. GALINDO, Caetano W. (2016) Sim, eu digo sim; uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce. São Paulo: Companhia das Letras.
P.S.S.S. E a referência do livro do Donaldo está aqui:
SCHÜLLER, Donaldo (2017) Joyce era louco? Cotia: Atelier,

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