03 abril, 2023

Teseu, Hobbes e Eu

 

(Trecho de Plutarco na Wikipedia)

Volta e meia, ao declarar-me Doctor of Philosophy, o que incontestavelmente sou, fico pensando em que sabia eu de filosofia para ser declarado doutor. Então, tentando eliminar esse paradoxo de minha titulação, comecei a ler livros de introdução à filosofia, tentando alcançar meu segundo doutorado, agora como um Doutor em Introdução à Filosofia. Se a moda pega, o título vai ser designado por DIF, ao invés de PhD..

E também sempre digo que basta olhar um livro introdutório ao tema que já vou botando a mão no bolso e comprando. A última vez que este fenômeno mercantil ocorreu foi na quinta-feira 23 de março do ano corrente. Numa banca de revistas do alto da rua Ramiro Barcellos, quase na confluência dela com a dupla Independência (prá esquerda de quem sobe a Ramiro) e Mostardeiro (à direita). Do fenômeno mercantil, passei à contemplação filosófica com o livro:

WARBURTON, Nigel (2022) Uma breve história da Filosofia. Porto Alegre, L&PM. Coleção Pocket, n. 1086.

Primeiro: quem é Warburton para estar escrevendo o que ainda não acabei de ler? Não é qualquer um, eis que olhei na Wikipedia inglesa (não tem o verbete na brasileira) e achei a sinopse:

Nigel Warburton (/ˈwɔːrbərtən/; born 1962) is a British philosopher. He is best known as a populariser of philosophy, having written a number of books in the genre, but he has also written academic works in aesthetics and applied ethics.

Pois bem, nas páginas 92-93 do livro, em pleno capítulo 14 intitulado "O Príncipe e o Sapateiro", sobre John Locke e Thomas Reid, lemos a seguinte passagem:

   Não temos nenhuma fotografia ou desenho de Locke quando criança, mas é provável que tenha mudado bastante à medida que envelheceu. Quando chegou à meia-idade, ele era uma figura magra, de olhar penetrante e cabelo comprido e irregular. Quando bebê, no entanto, teria sido bem diferente. Uma das crenças de Locke era a de que a mente de um recém-nascido é como um quadro branco. Não sabemos nada quando nascemos, e todo o conhecimento que temos vem da experiência da vida. Quando o bebê Locke cresceu e tornou-se um jovem filósofo, adquiriu todos os tipos de crenças e tornou-se a pessoa que hoje conhecemos como John Locke. Mas em que sentido ele foi a mesma pessoa que o bebê, e em que sentido o Locke de meia-idade era a mesma pessoa que ele foi quando jovem?

   Esse tipo de problema não pode ser levantado somente para seres humanos que se perguntam sobre sua relação com o passado. Como percebeu Locke, isso pode ser uma questão quando pensamos sobre meias. Se temos uma meia com um buraco e remendamos, e depois remendamos outro buraco e mais outro, acabaremos tendo uma meia que consiste apenas de remendos, nada mais do material original. Ela ainda será a mesma meia? Em certo sentido, sim, pois há uma continuidade de partes da meia original à meia totalmente remendada. Contudo, em outro sentido, ela não é a mesma meia, pois nela não resta nada do material original. Ou, então, pense em uma árvore. Ela nasce de uma semente, perde as folhas todos os anos, cresce, os galhos caem, mas ela continua sendo a mesma árvore. Seria a semente a mesma planta que o broto s seria o broto a mesma planta que a árvore? [...]

Pois então. Parece que Locke tirou essa problematização das modificações de um objeto material, tão profundas, que dele não sobra nada do momento da criação, inclusive árvores, bebês, casas, barcos. Por falar em barcos, não faz muito tempo (talvez em outro livro de introdução à filosofia) que li sobre a barca de Teseu. Tem um monte de coisas na Wikipedia em inglês (aqui) e alguma coisa na versão em português (aqui). E, mesmo sem o verbete "ship of Theseus", a Stanford Encyclopedia of Philosophy tem montes de referências a esse, diz a Wiki, paradoxo.

E que é a barca de Teseu? A mesma ideia: um barco que viaja entre dois portos incansavelmente, bate numa pedra aqui, no cais do porto acolá, novamente numa pedra, outro porto, uma tábua apodrece, é trocada. Depois outra e mais outra ainda. O leme, as velas, Um banquinho da carlinga, sei lá que mais. A questão que tem a ver com a metafísica (estudo do ser) ou com a epistemologia (teoria do conhecimento). E Hobbes está pensando exatamente nestas linhas: o que faz um homem ou uma mulher deter a condição de humano?

DdAB

(Texto de Thomas Hobbes da Wikipedia)

P.S. Como sabemos, Teseu foi o herói da mitologia grega que matou o Minotauro. Claro que, para as crianças de hoje, o Minotauro é mais famoso que seu algoz.

P.S.S, Deste dia até hoje, pela primeira vez ouvi falar em "mereologia". Segui "footnotes references" daqui e dali e nem sei mais como foi que tudo começou. Eu costumava definir "estrutura" como a relação que partes e todos mantêm entre si", definição retirada de algum livro de economia do desenvolvimento ou de alguma outra obra que bem pode ter sido de economia industrial ou sabe-se lá de onde. Então tenho dois links para apresentar para quem se interessa, tal qual me interesso eu, pelo tema: Wikipedia (aqui) e Stanford Encyclopedia of Philosophy (aqui). A Wikipedia brasileira tá aqui. [Nota das 21h27min de 4/abr/2023 sábado de aleluia]

P.S.S.S. E tem mais: li há muito tempo que, de tempos em tempos, todas as células de um corpo humano são trocadas: são criadas, vivem, envelhecem e morrem, dando lugar a outras assemelhadas. Delas é que vêm as mutações que fazem a festa dos processos evolucionários: mudanças incrementais e sucessivas. E parece que a exceção a esse troca-troca são as células neuronais. Outra hora vou dar uma campeada nessa viagem. OK, ok, não me contive e li esta matéria aqui. Claro que não posso responder por ela. Vou dar mais uma campeada e ver se encontro algo de maior reputação. Mais prestígio? Tá aqui o UOL. Na linha de Hobbes, podemos dizer que somos os mesmos desde o nascimento apenas no que diz respeito a nosso legado neuronal. O resto, dentes, ossos, olhos, pestanas, tudo, tudinho é trocado. Ainda assim, devo investigar mais sobre o tema.

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