19 janeiro, 2014

Rolês no Planeta 23: Rosana e Mais

Querido diário:

Um de meus melhores livros de 2013 foi mesmo

PINHEIRO-MACHADO, Rosana (2011) Made in China: (in)formalidade, pirataria e redes sociais da China ao Brasil. São Paulo: Hucitec, Anpocs. 340p .

Cheguei tarde, não é mesmo? Inclusive perdi a defesa da tese em 2009 (ver). Do belíssimo livro Made in China, tirei vários aprendizados muito importantes e mesmo fiz uma certa história de ficção: menti para um menino de rua que se tratava de um romance em que a autora, sem nada de autobiográfico, contava a história de uma antropóloga que se apaixonou por um camelô porto-alegrense, começou a viajar com ele em sua busca de estoques em Ciudad del Este e, de lá, encarregou-se de abrir uma sucursal de sua banca de venda de guarda-chuvas no delta do Rio da Pérola, em plena República Popular da China. E este madeinchina do título do romance teria a ver com um casal de gêmeos que a personagem (Feifei) teria tido durante uma estada no vibrante país do verdadeiramente velho oeste, pois está a oeste do velho oeste americano. O menino de rua mentiu que acreditou, mas disse "se non è vero è ben trovato", pois lera o original e o amara. Também asseverou-me que iria mentir a seus colegas de departamento tratar-se de um sine qua non da academia literária moderna. A versão da própria Rosana é bem diferente, como podemos ler na p.28:

O objetivo deste livro é remontar e dar visibilidade a essa cadeia que uniu a China ao Brasil, via Paraguai, graças ao interesse despertado pelas mercadorias baratas chinesas a partir do final dos anos 70 e início dos 80. Trata-se dos bens que são produzidos nas fábricas das Zonas Econômicas Especiais da província de Guangdong, importados pelo Paraguai por imigrantes chineses e taiwaneses e, no último estágio, comprados por comerciantes brasileiros, que os revendem em mercados populares de suas cidades.

Pois bem, meu interesse pelo assunto dela (ela, China, ela, Rosana, ergo, Elas) surgiu quando li a resenha bibliográfica feita por Pedro Fonseca (coisas aqui e aqui*)e  e publicada no indefectível (para mim) jornal Zero Hora (3/mar/2012). Mais de um ano depois, ao ler o livro, vi tratar-se de autora madura intelectualmente (para uma garota de cerca de 30 anos de idade) e já com carreira maiúscula!

Pois bem, bem. Eu mesmo já usei blusões de lã (ou acrílico) com gola rolê, eram golas enroladinhas, que protegiam a garganta contra o frio tropical (tropical no sul do Brasil?), mas que me irritavam a parte superior do pescoço ainda coberta pela barba. Daí, passou-se a falar em dar um rolê, que equivalia a dar uma banda e daí veio o bonde, um bonde de gente, algo assim, não sou muito bom nestas coisas de colher material etnográfico (mas tampouco sou, pensava mamãe, de jogar fora com a água do banho). Então o rolezinho é algo que meu editor do Google/Blog não captura e parece escapar da gola de blusão e mesmo do passeio, associando-se mais ao bonde com gente.

Seguimos com Rosana. Dá uma olhada lá embaixo com minhas duas estrelas**. E nas três ***.

E o Planeta 23? Nóis semo de opiniau que ta na ora do brazil crescê, tem que t chopin pra todos, tem que t saúde e enducação pra todos, tem que ter justiça, tem que botar os agatunados na cadeia, tem que chamar a corte internacional de aia pra dá um abeas corpus praus inocentes (ela, eu, você, e só)!

Precisa ser mais contundente?

DdAB
* E este aqui está aqui (com os recortes originais):
DE MAO A MELHOR
PEDRO CEZAR DUTRA FONSECA
Quando o professor Ruben Oliven, do Departamento de Antropologia da UFRGS, convidou-me para participar de uma banca de qualificação de doutoramento, minha primeira reação foi de tratar-se de um engano. Já havia antes participado de outras bancas, e até orientado trabalhos em áreas próximas da economia, como ciência política, administração, história e sociologia, mas na antropologia era a primeira vez. Ele esclareceu que a tese possuía forte interação com minha área de trabalho e, como orientador, julgava indispensável alguém com essa formação compor a banca. Houve época, como em meados do século XX, que Antropologia Econômica era disciplina valorizada e integrava o currículo das mais importantes universidades do mundo. Com a pós-modernidade, entraram em refluxo na academia os “paradigmas totalizantes”, como o marxismo e o estruturalismo, e o recurso às variáveis econômicas para explicar as formações sociais e suas possibilidades de transformação perdeu o charme. Ademais, interdisciplinaridade é como o “politicamente correto” – difícil quem se declare contra, mas na prática são outros quinhentos.
Justamente esse caráter de transitar entre várias áreas das ciências sociais – sem, contudo, perder sua sólida visão de antropóloga, posto que a transdisciplinaridade supõe o conhecimento especializado – é um dos pontos fortes da tese, ora publicada em livro (Editora HICITEC, 339 p.), de Rosana Pinheiro-Machado. Made in China obteve a primeira colocação da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) entre as teses de doutoramento do país. E o referido caráter, além da notória atualidade do tema e da qualidade da pesquisa, certamente pesou, mais recentemente, para que a CAPES lhe conferisse o prêmio de melhor tese de 2011, concorrendo com todas as outras áreas do conhecimento.
O livro começa com a síntese das primeiras pesquisas da autora, ainda como estudante de graduação, entre os camelôs de Porto Alegre. Logo percebeu que estes integravam um circuito; de onde vinham aquelas quinquilharias? Quem ganhava com isso? Como chegavam até aqui, quem as trazia? Em seu mestrado, Rosana Pinheiro-Machado foi atrás das respostas. Viajou com sacoleiros, foi para a Tríplice Fronteira, entrevistou e conversou “informalmente” com chineses, taiwaneses, brasileiros, paraguaios, mulheres e homens, comerciantes, taxistas e policiais. Mas logo compreendeu que para fechar o circuito precisava conhecer a origem de tudo: a China seria o tema de sua tese de doutorado. O trabalho multi-situado traz consigo, portanto, a bagagem acumulada dessas múltiplas experiências e vivências de pesquisadora atenta e disciplinada.
A viagem “global” das mercadorias, da produção à ponta, é acompanhada e relatada em primeira pessoa e em estilo vivo e direto, o que torna a leitura agradável e de interesse de todos que querem entender com mais acuidade a cultura, a vida e as práticas cotidianas do país que, depois de décadas, consegue sinalizar para uma mudança na hegemonia das relações internacionais – a lembrar o fato mais próximo de nós, conseguiu, depois de quase um século, ultrapassar os Estados Unidos como maior parceiro comercial do Brasil. As mercadorias viajam. Em algum lugar do planeta precisam realizar seu destino: transformar-se em dinheiro. E com elas levam pessoas, mudam vidas, famílias, cidades e países. Mesmo que se resista, é impossível não lembrar a metáfora de Marx no capítulo primeiro d’O Capital, para quem elas, a partir de certa escala de produção, se autonomizam e constituem como um mundo seu – o “mundo das mercadorias” – com exigências e regras próprias, as quais subordinam os seres humanos, que parecem estar a seu serviço, confundindo quem é sujeito e quem é objeto. Mas o mesmo Marx, geralmente sisudo e não afeito a tiradas de humor mais chãs, surpreende o leitor que vira a página para começar o segundo capítulo com uma frase nada metafórica, mas de pura concreção, que na tradicional tradução da Civilização Brasileira aparece como: “Não é com seus pés que as mercadorias vão ao mercado, nem se trocam por decisão própria”.
As mercadorias precisam de pés e, portanto, de braços, de cérebros e de mentes, e aí começa o trabalho etnográfico da antropóloga. Junto com elas viajam sonhos, necessidade de sobrevivência, ânsia por ganhos fáceis e nem sempre tão fáceis, laços de solidariedade, preconceitos, mitos, conflitos e laços familiares ora desfeitos ora fortalecidos. Como no filme “Um Conto Chinês”, o espaço não mais se impõe como limite. Vende-se no camelódromo às margens do Guaíba o mesmo que em Ciudad del Este, no centro de Capão da Canoa ou nas Ramblas catalãs, nos “turcos” de São Borja as mesmas quinquilharias encontradas no Time Square ou nas lojinhas do Quartier Latin.
Difícil destacar os pontos altos em trabalhos como esse, mas devo mencionar pelo menos três. Primeiro: não fugir de questões polêmicas e, ao enfrentá-las, evitar respostas superficiais, preferindo esclarecer o teor e as nuanças da complexidade. O exemplo mais claro, e na ordem do dia da política externa, é quanto aos limites do relativismo cultural como argumento para aceitar a flexibilização de temas como direitos humanos e legislação social. A descrição de alojamentos de trabalhadores nas indústrias chinesas (nos quais a televisão, explicava o dono, era pequena, mesmo que as grandes não fossem tão mais caras, para “não distrair muito” os trabalhadores), a discriminação contra mulheres, o trabalho infantil, as jornadas superiores a 12 horas, as doenças de fadiga, o sufocar das críticas – tudo isso pode ser aceito em nome de se tratar “de outra cultura”? A autora percebe, com muita precaução, que o relativismo cultural nesses casos, mais que a originária defesa das minorias sob a égide da virtude da tolerância, serve como uma luva para a ideologia do poder e do status quo: “a China precisa crescer” é a palavra de ordem, e o nacionalismo ad hoc recomenda não importar os valores “ocidentais e burgueses”. Tudo, portanto, se consagra como legítimo, até porque os trabalhadores ora gozam melhores condições de vida em comparação com sua situação anterior: os mesmos argumentos utilizados na Inglaterra da Revolução Industrial e com relação aos nordestinos migrantes de São Paulo. Os ocidentais nem sempre entendem a China; afirma a autora: “Autoridades e empresários parecem ecoar um mesmo som, apelando para a piedade das populações vulneráveis – algo que somente um nativo seria capaz de compreender”.
Em segundo lugar, a bela descrição teórica e vivencial do guanxi, laços pessoais recíprocos que aproximam as pessoas, constituindo-se numa espécie de rede de relacionamento entre elas, incluindo autoridades e empresários, em troca de presentes e favores. É inevitável a lembrança do “jeitinho” e do “brasileiro cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, pois não se trata de uma instituição organizada e hierárquica como a máfia italiana, mas de uma teia constituída a partir de indivíduos; e, ao incorporar representantes do Estado, dá lugar ao entrelaçamento entre o público e o privado. No Brasil? Não, na China. E tudo isso num país “cujas leis raramente são cumpridas”, no qual “ainda [se] anuncia o ditado popular ‘leis foram feitas para serem desobedecidas’ – conforme jocosamente ouvi muitas vezes ao longo da pesquisa”. Mais interessante ainda é o fato de, para a pesquisa poder viabilizar-se, a própria autora precisou “estabelecer e cultivar” guanxi, arte de relacionamento aprendida às vezes com sofrimento e abaixo de preconceitos (o clichê “mulher brasileira, jovem e com boa aparência”, na China, à procura de empresários emergentes e ricos exportadores para fazer pesquisa???), sem o que não teria acesso às empresas e às pessoas que precisava conhecer e entrevistar. Nesse aspecto cabe ressaltar sua relação com Feifei, sua tradutora, intérprete, guia e facilitadora de relações – uma personagem à parte que, por si só, já vale a leitura da obra. Foi com ela que Rosana teve de aprender como “as coisas aqui funcionam” e, mais que isso, pelo seu comportamento (sugestões, atos, ideias, práticas simbólicas pessoais e no mundo dos negócios),  intencionalmente ou não, consegue expressar ao leitor, como nos quadros de uma exposição, retratos dos modos e do estilos de vida de uma sociedade.
Finalmente, como terceiro ponto, o relato da visão dos empresários integrantes do circuito e a linha tênue entre o formal e o informal, entre o mercado “paralelo” e o “reconhecido”. “No mundo nada se cria, tudo se copia” é o título de um capítulo. Não se trata de uma economia “subterrânea”, ilegal, às escondidas. Só é falsificado o que merece ser. Como afirma um alto executivo da fábrica D&G Benetton na China: “Se um dia uma bolsa não for falsificada, aí vamos ter um problema sério”. Assim, a pirataria vira marketing, o pretensamente ilegal ganha status, o mercado acaba criando regras próprias à margem e junto com o estado. As autoridades não apenas toleram, mas incentivam; a falsificação é condenada, mas ao mesmo tempo praticada e abertamente defendida. Muitas vezes os jornais locais noticiam que o governo agirá “energicamente” contra a pirataria. Faz parte do jogo a negação, mas resta evidente sua indissociabilidade tanto da flexibilização e da terceirização das atividades, como da mundialização do circuito mercantil. Ou seja, justamente as marcas estruturais do estilo de crescimento das últimas décadas, nas quais se assentam o crescimento da China e de outros países asiáticos. Termos de conotação costumeiramente jocosa ou de carga negativa - como contrabando, pirataria e suborno - adquirem outros significados, posto que não só são tolerados, mas em certos casos, pelo que se depreende, até incentivados pelas autoridades. Ocorre na prática um arranjo muito peculiar entre mercado e estado que me ocorreu chamar de “feixes” de legalidade (e de ilegalidade), até porque essas atividades de produção e distribuição acabam influenciando significativamente o desempenho invejável das variáveis econômicas integrantes da mensuração contábil dos países, como PIB, balanço de pagamentos, arrecadação tributária e ingressos de capitais.

Made in China, portanto, traz colaboração inestimável para entendermos melhor a cultura desse país tão surpreendente e ainda misterioso para nós, que cultua a memória de Mao Tsé-Tung e pressiona diplomaticamente para ser reconhecido como economia de mercado; que oficialmente é comunista, mas lidera a produção massiva e globalizada de mercadorias e ressuscita relações de trabalho da época da Revolução Industrial; que, ao lado do ateísmo oficial, adapta o confuncionismo ao espírito capitalista, confundindo o leitor weberiano (aliás, muito bem abordado por Rosana ao tratar “Do espírito do Capitalismo Chinês”, no capítulo 4). E que está tão longe de nós geograficamente, mas, como a leitura permite perceber, tão próximo em práticas e no imaginário coletivo: o país do futuro, que quer crescer 50 anos em 5, como o Brasil sonhou no século XX, o lucro fácil e rápido do aventureiro salientado por autores como Sérgio Buarque de Holanda e Viana Moog, a simbiose público/privado, as relações pessoais a perpassarem o mundo “racional” dos negócios, o nacionalismo como ideologia do desenvolvimento, o crescimento coetâneo com o aprofundamento das desigualdades. E enquanto nos perguntamos até quando a China terá fôlego para crescer a taxas invejáveis, com inflação baixa e sem mudanças nas instituições políticas e na legislação social, tudo em plena crise internacional, o país parece não se preocupar com essas mazelas teóricas dos economistas ocidentais. Ou vai de Mao a melhor, como sugere a bem-humorada autora do livro.

E agora os dois asteriscos **:

O rolezinho é bom para pensar o Brasil

Rosana Pinheiro-Machado
(ZH/18/jan/2014, Caderno Cultura, última página, aqui)
Reações aos encontros de jovens ajudam a entender questões estruturais do país
Por que o fenômeno do rolezinho tornou-se o assunto mais falado no Brasil? Não tenho dúvidas de que é por sua capacidade de aflorar, acirrar e dividir opiniões sobre a questão de classes brasileiras somada à questão racial. Nos últimos dias, temos assistido a uma parcela da população brasileira apoiando esses jovens da periferia em seu exercício do direito de ir e vir. Mas também temos visto o oposto: uma vasta massa de pessoas de todas as camadas sociais destilar todo o seu preconceito de forma passional, nua e crua.

Tenho ocupado uma posição privilegiada para assistir a esses comentários. Escrevi um artigo chamado Etnografia do Rolezinho, que se tornou viral nos últimos dias nas redes sociais. No olho do furacão, tenho dedicado minha atenção para ler e entender essas expressões espontâneas que são fruto da facilidade da comunicação via redes sociais.

Um dos aspectos que eu levantaria nesse universo difuso de opiniões é o engajamento de pessoas da própria periferia, rejeitando os rolezinhos e manifestando seu descontentamento de forma bastante preconceituosa, uma vez que é possível que grupos que sofram discriminação possam reproduzir o preconceito sofrido como uma forma de negociar a sua condição no mundo, como um alívio para a dor – ao bater no outro, livra-se do fardo. Assim, há uma parte das camadas populares (especialmente composta por trabalhadores que possuem uma condição um pouco mais emergente) que diz: “vai trabalhar vagabundo” ou “que tal uma enxada?” (se fosse um rolezinho de mulheres, certamente a palavra seria substituída por “vassoura”). Todavia, isso é apenas uma porcentagem difícil de quantificar, mas é certo que os grupos das periferias urbanas tendem a cada vez mais apoiar o rolezinho. O grande descontentamento, na verdade, vem de camadas médias e altas, que veem a sua paz ameaçada. Entre esses setores, a verbalização se torna um pouco mais violenta: pede-se por maior policiamento e que esses jovens “tomem pau da polícia”. No entanto, essas posições não podem ser generalizadas para nenhum dos lados: há muito apoio e solidariedade vindos de todas as camadas sociais.

Não é exagero dizer que o rolezinho é tão bom para pensar o Brasil quanto os protestos de junho de 2013. Muitos jovens que ora estavam reclamando da ação policial, agora estão pedindo para que a polícia “dê porrada”. A sociedade está mais dividida hoje do que naquela ocasião. E essa polícia tende a agir para um lado dessa divisão, para manter uma ordem particular e relativa. Nunca me esqueço de um policial que entrevistei em 2005 na fronteira Brasil-Paraguai. Perguntei se ele não tinha, às vezes, pena de algum pequeno comerciante que tivesse a mercadoria apreendida. Ele me olhou fundo e disse: “A gente aprende a ter ódio, ódio generalizado, ódio a todos os vagabundos”.

O que tenho visto no Brasil nos últimos dias é ódio e medo. Medo de uma massa supostamente desordenada, incontrolável. Ódio dirigido a uma camada “vagabunda” que deveria estar trabalhando. É claro que, nessa percepção, o fato de esses jovens terem dificuldade de entrar no mercado de trabalho – por não terem adequada qualificação, por terem sido rodeados de nãos de todas as ordens – não é levado em consideração. O tema da violência estrutural é pouco debatido. Poucos querem tentar fazer o esforço de se colocar no lugar do outro: de imaginar o que é uma vida de recusa diária marcada pelo tráfico, pela falta de professores e pela falta por saúde. Poucos querem fazer o esforço de imaginar como um pobre negro é tratado em um hospital. Idealmente, a vida dos livros e do trabalho é muito louvável. Mas quantos de nós conseguimos entender o significado do que um jovem do Morro da Cruz disse a minha colega de pesquisa, dra. Lucia Scalco: “Eu não tenho dinheiro para comer. Mas gastei 500 reais em um boné”. Lucia perguntou por que, e ele respondeu: “Eu sinto que o boné é uma capa de super-herói que me protege e me empodera”.

Hoje, após a repercussão, os rolezinhos são um movimento difuso e amplo, de diversão e de política. Porém, todos eles mantêm o shopping como um lugar central. Independente da intenção, o rolezinho só faz sentido no templo do consumo, no coração da sociedade capitalista. Nada disso é novo: os grupos populares brasileiros, desde a abolição da escravatura, sempre ocuparam espaços da cidade como forma de diversão investida de política. Basta voltar às nossas produções acadêmicas clássicas, como a obra Os Bestializados, de José Murilo de Carvalho, que, por exemplo, retrata a violência do Estado para com os capoeiras no Rio de Janeiro no início do século 20. Em Porto Alegre, na década de 1940 e 1950, a prestigiosa Revista do Globo trazia frequentes matérias sobre os grupos “marginais” que tiravam a paz da população urbana que queria viver o sonho de uma cidade europeia, como comenta a historiadora Sandra Pesavento. A marginalidade tem assumido múltiplas faces na história do Brasil, mas há algo de estrutural: ela é vista como algo fora do lugar, uma massa de vagabundos. Lembro ainda da antropóloga Eunice Durham e do sociólogo Chico de Oliveira, que nos mostraram que, em nossa história, criou-se a imagem de um Brasil moderno e desenvolvido, e de um outro, arcaico e subdesenvolvido. É possível ainda acrescentar: um, branco e de elite, outro, negro nas periferias. Esses “dois Brasis” não se tocam, mas, quando isso acontece, o primeiro lado usa de suas armas mais poderosas: a força policial que varre a tudo e a todos.

Não é minha intenção dizer que os capoeiras e o rolezinho são a mesma coisa na história. Seria uma comparação simplista, pois o século 21 nos apresenta um mundo mais globalizado e interconectado. Mas há uma estrutura que se repete ciclicamente. A novidade é que hoje temos a chance de discutir de forma mais aberta, rápida, cuspindo todo o processo de discriminação engasgado. Os jovens da periferia, se estavam interessados apenas em dar um rolê, agora estão se dando conta de sua força. E não têm se contentado em ser parte daquele Brasil arcaico, que se esconde longe dos olhos da população em sua cega zona de conforto. Esses jovens querem ser vistos com sua capa de super-herói. Eles não querem ser reconhecidos por meio da exotização e da romantização da cultura popular, mas por uma apropriação singular dos símbolos mais altos do poder (as marcas) e dos espaços (os shoppings). O rolezinho é um alívio temporário capaz de transmutar exclusão em inclusão – inclusão ainda longe de ser de fato e de direito. Termos a consciência desse debate – ou fazer emergir o discurso social camuflado – é certamente o primeiro passo.
E aqui as três estrelas:
Do meu Facebook:
Em 2009, eu e minha colega e amiga, Lucia Scalco, começamos a estudar o fenômeno dos bondes de marca. Como? A gente reunia a rapaziada, descíamos o morro e íamos juntos dar um rolezinho pelo shopping – o lugar preferido desses jovens da periferia de Porto Alegre. Eles nos mostravam as marcas e lojas preferidas. Eles contavam como faziam de tudo para adquirir esses bens (descrevemos todas as possibilidades em nossos papers). Havia uma agência (no sentido de prazer de Appadurai) impressionante nesse ato de descer até o shopping. Eles não queriam assustar, porque nem imaginavam que discriminação fosse tão grande que eles pudessem assustar. Muito pelo contrário: eles faziam um ritual de se vestir, de usar as melhores marcas e estar digno a transitar pelo shopping. Uma vez um menino disse que usava as melhores roupas e marcas para ir ao shopping para ser visto como gente. Ou seja, a roupa tentava resolver uma profunda tensão da visibilidade de sua existência. Mas noutro canto, os donos da loja se assustavam e cuidavam para ver se eles não roubavam nada. Um funcionário disse à Lucia a mais honesta frase de todas (uma honestidade que corta a alma): “não adianta eles se vestirem com marca e vierem pagar com dinheiro. pobre só usa dinheiro vivo. Eles chegam aqui e a gente na hora vê que é pobre”. Eles, no entanto, acreditavam que eram os mais adorados e empoderados clientes das lojas. Um funcionário da Nike uma vez declarou para a pesquisa: “nós nos envergonhamos desse fenômeno de apropriação da nossa marca por esses marginais”. Mas eles nos diziam: “as marcas deveriam nos pagar para fazer propaganda, porque nos as amamos. Sem marca, você é um lixo”. Quando eu mostrei o Funk dos Bens Materiais em aula, uma aluna de camadas altas comentou: “quando a gente vê a figura toda montada marca estampada, já vê que é negão favelado”. Infelizmente não me surpreendeu o fato de toda a aula ter caído na risada. Esse mesmo tipo de pessoa é aquela que ainda diz que é um absurdo comprar televisão, “pobre deveria alimentar a prole” e ponto final. No programa Papai Noel dos Correios, que eu e Lúcia analisamos, uma menina  desafiava o seu destino: “kiido papai noel: eu me comportei, eu passei de ano, eu cuido da minha vó, meu pai sumiu de casa. Eu só quero uma calça da Adidas!”. Mas vocês podem concluir que cartas como essas são relegadas por meio de uma moralidade escrota: todos os pedidos de meninas e meninos de roupas de marca eram vistos como um desaforo. Que absurdo! Afinal, pobre deve pedir material escolar e bicicleta!
Eu tenho ficado quieta nesse caso do rolezinho porque este talvez seja o assunto que mais seja caro à minha sensibilidade acadêmica e política. Esse tema é justamente o que me faz me afastar de uma certa antropologia vulgar com suas interpretações do tipo “que lindo essas pessoas se apropriam das marcas e dão novos significados e agência e bla blá blá prá boi dormir”. Mas também é este tema que me aproxima ao que a antropologia tem de melhor: ouvir as pessoas. Não há uma grande diferença do rolezinho organizado e ritualizado das idas aos shoppings mais ordinárias (ainda que a ida ao shopping pelas classes populares nunca tenha sido um ato ordinário), eu vejo uma continuidade que culmina num fenômeno político que nos revela o óbvio: a segregação de classes brasileiras  que grita e sangra. O ato de ir ao shopping é um ato político: porque esses jovens estão se apropriando de coisas e espaços que a sociedade lhes nega dia a dia. Quando eu vejo aquele medo das camadas medias, lembro daquelas pessoas que se referiram “aos negões favelados”. E há certa ironia nisso. Há contestação política nesse evento, mas também há camadas muito mais profundas por trás disso.
Eu estou acompanhando os rolezinhos e sinto certo prazer em ver aquela apropriação. Mas entre apropriação e resistência há uma abismo significativo. Adorar os símbolos de poder – no caso, as marcas – dificilmente remete à ideia de resistência que tanta gente procura encontrar nesse ato. O tema é complexo não apenas porque desvela a segregação de classe brasileira, mas porque descortina a tensão da desigualdade entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre o Norte e o Sul. E enquanto esses símbolos globais forem venerados entre os mais fracos, a liberdade nunca será plena e a pior das dependências será eterna: a ideológica. Por isso, para entender a relação que as periferias globais tem com as marcas e os shoppings, é preciso voltar para os estudos colonialistas e pós-colonialistas. A apropriação de espaços símbolos hegemônicos, desde Mitchell até Newell, passando por Bhabha, Rouch e Ferguson, nos mostra uma permanente tensão na apropriação que tenta resolver a brutal violência que esta por trás desse ato. O meu lado otimista, não nega o que esses jovens nos disseram: do prazer que sentem em se vestir bem e circular pelo shopping para SER VISTO. Meu lado pessimista, tende a concordar com Ferguson de que há menos subversão política e mais um apelo desesperador para pertencer à ordem global. É preciso entender o rolezinho dentro de uma perceptiva do Global South de séculos de violência praticada na tentativa de produzir corpos padronizados, desejáveis e disciplinados.
O pobre no shopping repete a mimeses de Bhabha. A classe media disciplinada vê os jovens vestindo as marcas do mercado hegemônico para qual ela serve. A classe media vê os sujeitos vestindo as mesmas marcas que ela veste (ou ainda mais caras), mas não se reconhece nos jovens cujos corpos parecem precisar ser domados. A classe media não se reconhece no Outro e sente um distúrbio profundo e perturbador por isso. Não adianta não gostar de ver a periferia no shopping. Se há poesia da política do rolezinho é que ela é um ato fruto da violência estrutural (aquela que é fruto da negação dos direitos humanos e fundamentais): ela bate e volta. Toda essa violência cotidiana produzida em deboches e recusa do Outro e, claro também por meio de cacetes da polícia, voltará a assombrar quando menos se esperar.


2 comentários:

Anônimo disse...

Só o conhecimento salva. A libertação se dá através do conhecimento.
O erro da esquerda é querer focar em luta de classes, querer equalizar as diferenças à base de benesses.
Lutar pelo ensino de qualidade tem que ser o foco. Nada além disso importa.

... DdAB - Duilio de Avila Berni, ... disse...

Certíssimo, Anônimo, sem educação, não há solução! Eu acrescentaria a teu diagnóstico sobre a esquerda que falas da "esquerda tradicional", enquanto que aquela esquerda libertária, herdeira do Março/1968 francês e outras manifestações humanistas jamais perderá a responsabilidade por transformar o mundo.
DdAB