11 janeiro, 2014

A Indústria Brasileira: argumentos

Querido diário:
A Carta Capital de número 781 tem um conteúdo central que chama de Um Plano de Governo. Nas páginas 22 a 26, há um artigo de Luis Gonzaga Belluzzo e Júlio Sérgio Gomes de Almeida. Intitulando-se "Impedir a terra arrasada", ele identifica-se com o carimbo de Política Industrial. Tenho afirmado em diversas instâncias que a ênfase dada por muitos economistas para a prioridade à indústria, quando falamos nas políticas públicas, é um erro. O artigo conduz-nos a pensar sobre o tema já em suas sentenças iniciais.

Vejamos algumas passagens e comentários:
Começamos por sustentar o ponto de vista que atribui à indústria de transformação um papel crucial e insubstituível na determinação do desempenho das economias modernas.
Naturalmente estamos falando de "um ponto de vista" e este tem recebido o tratamento na literatura da economia do desenvolvimento das chamadas "leis de Kaldor". E aí saímos da indústria de transformação e chegamos num grupo de metal-mecânica, química e eletro-eletrônica, no máximo. O problema é, digamos, econométrico: qual setor "causa" o crescimento do PIB. Serão estes que cito? Quais são os dados adequados a testar estas hipóteses?

Minha inconformidade com este ponto de vista é que, com ele, nega-se espaço à possibilidade de que -outro ponto de vista- mais valeria uma política industrial voltada à promoção da formação de capital humano do que à de capital físico. Minha retórica sustenta que um trator não faz um engenheiro, mas um engenheiro faz um trator. O problema, talvez, com minha ênfase na luta pela formação de capital humano é que, sem capital social, as prioridades não serão atribuídas a esta área. Que é capital humano? Boas escolas, boa água encanada, bons esgotos, boas casas de saúde, bons restaurantes populares, bons albergues, boas cadeias.

Pedir prioridade à indústria é levar os meios à condição de fins. Naturalmente se as prioridades voltam-se à boa educação, precisaríamos de uma indústria que produzisse os livros da biblioteca, os computadores da sala de aula, os uniformes dos alunos, as merendas, as cadeiras e mesas, o material do gabinete médico, do gabinete dentário, do gabinete de assistência social, da assistência psicológica, da caixa dágua, da piscina e seu aquecedor, do ginásio de esportes, dos ônibus escolares. É tanto linkage industrial para oferecer uma tonelada de serviços educacionais que não vejo por que precisamos começar fazendo o trator e não o engenheiro.

Aliás, os uniformes, as merendas, os ônibus nem precisam ser "nacionais" para servirem os nativos. Nativo não pode ser importado, mas roupa, comida e ônibus pode. Naturalmente o Brasil não precisa, no presente momento preocupar-se em importar comida (ainda que o façamos em proporções ditadas por conveniências diversas). Mas não vejo bem a razão que levaria os trens produzidos no território nacional por empresas gerenciadas por "capitais" estrangeiros serem especialmente melhores do que as adquiridas lá em suas matrizes. Mesmo porque, para termos bons ônibus, é muito provável que precisemos, antes da fábrica, dos trabalhadores, o que se consegue com educação (etc.) e não com a importação de trabalhadores estrangeiros.

Depois, temos o que chamo de efeito Excel: os setores produtores de bens cedem crescentemente participação ao setor serviços. Este, naturalmente, conta com insumos agrícolas (o agrião da salada ou do xarope da tosse receitado no ambulatório da escola...) e industriais (o vidro que armazena o xarope). Mas a essência de sua geração de valor reside nos serviços.

O argumento baseado na associação entre renda e emprego parece-me ser fruto de uma concepção antiga de desenvolvimento. As tecnologias modernas cada vez mais prescindem do fator humano para gerar a produção material (bens), mas tornam-se intensivas nos serviços.

Bem no início do artigo, Belluzzo e Almeida dizem:
A incansável diversificação do setor de serviços está umbilicalmente ligada à evolução tecnológica e organizacional da empresa industrial que avança na redução do tempo de trabalho socialmente necessário e na demanda de mão de obra extremamente qualificada. A incompreensão dos fatores que reconfiguram essas relações tem levado aos equívocos da "economia de serviços".
Não sei se isto é comigo! Parece que, de um lado, estão dizendo o que acabo de falar: para produzir uma cirurgia toráxica, o hospital usa raio X, bisturi, bandejas, colchões, sabidamente produtos industriais. Mas o valor gerado nem se compara ao coração novo embutido no peito do engenheiro, nem aos efeitos que uma vida mais longa deste devida àquele trazem ao bem-estar social. Claro que é mais difícil produzir um cirurgião do que um motorista! E estes equívocos da "economia de serviços" é que não sei bem o que quer dizer.

Um problema verdadeiro é o de como é que importaremos os bisturis eletrônicos se não contarmos com divisas (cambiais) para adquiri-los nos mercados internacionais. Mas outro problema é saber se o fechamento de uma economia como a chinesa no imediato pós-revolução comunista pode permitir algum avanço. O modelo de dar saída aos excedentes de desenvolvimento econômico também tem algo a dizer a respeito desta objeção sobre as fontes do financiamento das importações. Ademais, geram-se divisas importantes na exportação de serviços turísticos e mesmo educacionais (como os Estados Unidos) e médicos (lá mesmo ou Cuba).

O principal, em minha visão daquela idealização da indústria para promover o progresso tecnológico é que o importante não é a produção do tal bisturi, mas a forma como ele é usado dentro do hospital. E isto é "serviços" e não "indústria", um sistema nacional de inovação -nesta linguagem- é serviços.

Voltarei ao tema.

DdAB
Imagem: daqui.
Tudo isto aqui estava em
https://www1.fazenda.gov.br/resenhaeletronica/MostraMateria.asp?page=&cod=941251
Resenha Eletrônica
Impedir a terra arrasada
Revista Carta Capital - 06/01/2014
Economia Desde os anos 80 o País vive um processo de desindustrialização que o afastou das tendências globais e da nova dinâmica dos mercados
LUIZ GONZAGA BELLUZZO E JÚLIO SÉRGIO GOMES DE ALMEIDA
O propósito deste artigo é sugerir orientação para a política industrial do Brasil. Começamos por sustentar o ponto de vista que atribui à indústria de transformação um papel crucial e insubstituível na determinação do desempenho das economias modernas. Já tratamos neste espaço, em artigo anterior, do significado da Revolução Industrial. Vamos relembrar: "A ideia da Revolução Industrial como um momento crítico trata da constituição histórica de um sistema de produção e de relações sociais que subordina o crescimento da economia à sua capacidade de gerar renda, empregos e criar novas atividades. O surgimento da indústria como forma de produção apoiada no "sistema de maquinaria" e em fontes de energia inanimada internaliza o auto desenvolvimento do progresso técnico e impulsiona a divisão social do trabalho, engendrando diferenciações na estrutura produtiva e promovendo encadeamentos intra e intersetoriais. Além de sua permanente autodiferenciação, o sistema industrial deflagra efeitos transformadores na agricultura e nos serviços. A agricultura contemporânea, o chamado agronegócio, não é mais uma atividade "natural" e os serviços já não correspondem ao papel que cumpriam nas sociedades pré-industriais. A incansável diversificação do setor de serviços está umbilicalmente ligada à evolução tecnológica e organizacional da empresa industrial que avança na redução do tempo de trabalho socialmente necessário e na demanda de mão de obra extremamente qualificada. A incompreensão dos fatores que reconfiguram essas relações tem levado aos equívocos da "economia de serviços". O avanço da produtividade geral da economia não é imaginável sem a dominância do sistema industrial no desenvolvimento dos demais setores."

A Revolução Industrial não se esgotou nas transformações ocorridas na Inglaterra no fim do século XVIII, mas revolucionou, ao longo dos séculos XIX, XX e XXI suas próprias conquistas, ao introduzir importantes mudanças de natureza tecnológica, empresarial e organizacional, com reverberações na vida das sociedades e no redesenho da economia internacional.

Como afirmamos várias vezes em artigos anteriores, o Brasil desde os anos 80 sofre um processo de desindustrialização, com severas repercussões sobre o desempenho da economia. Na transição dos anos 70 para os 80 do século XX, o Brasil afastou-se das tendências da indústria global, ou seja, deixou de incorporar os novos setores e, portanto, as novas tecnologias da chamada Terceira Revolução Industrial. Falamos da informática, da microeletrônica, da química fina e da farmacêutica.

No mesmo passo, a organização empresarial brasileira distanciou-se das novas formações empresariais que surgiam, sobretudo, nas vibrantes economias exportadoras asiáticas, impulsionadas por agressivas políticas industriais e de exportação de manufaturados. No fim dos anos 70, a produção e a exportação de manufaturados brasileiros eram próximas ou superiores àquelas de seus concorrentes asiáticos. Hoje esses países têm posições que são um múltiplo da produção e exportação brasileiras de manufaturados.

Nos anos 80, a economia brasileira foi submetida à regressão industrial e econômica deflagrada pela crise da dívida externa e suas consequências fiscais e monetárias (enormes déficits fiscais e alta inflação com indexação generalizada). Nesse período, favorecidas pelas políticas liberais nos países desenvolvidos e pelas iniciativas domésticas de fortalecimento industrial e de exportação de manufaturados, as grandes empresas asiáticas, particularmente as coreanas, seguiram o exemplo japonês dos anos 60 e 70 e iniciaram uma escalada de internacionalização. Hoje essa estratégia é perseguida pelos chineses.

O Brasil joga na defesa desde a adoção do II PND. Esse plano de desenvolvimento combinou pesados investimentos em energia e nos setores básicos (siderurgia, metais não ferrosos, petroquímica, papel e celulose e bens de capital por encomenda). Apoiados no tripé empresa estatal, empresa estrangeira e empresa nacional, os investimentos do II PND abasteceram-se generosamente no financiamento externo, provido, então, pelos empréstimos sindicalizados dos grandes bancos comerciais internacionais.

O desastre que se seguiu à elevação da taxa de juros americana em 1979 foi de grandes proporções. A década perdida dos anos 80 foi marcada por forte restrição externa. Isso pode ser dimensionado pela queda violenta da relação importações/PIB que chegou à incrível cifra de 3%. Trata-se de um fechamento forçado da economia. A estabilização do nível geral de preços levada a cabo em meados dos anos 90 livrou a economia brasileira da hiperinflação, mas não teve forças para eliminar a herança dos malfadados anos 80. As condições em que foi realizada a estabilização custou ao Brasil uma combinação perversa entre câmbio e juros, com graves prejuízos para o crescimento e a diversificação da indústria. A crise da dívida favoreceu a ênfase nos setores criados no II PND e a substituição de importações ineficiente imposta pelo estrangulamento externo.

Em meio às rápidas e profundas transformações da economia industrial e dos padrões de concorrência no âmbito internacional, a indústria brasileira seguiu com a estrutura dos anos 70 com avanços microeconômicos aqui e acolá. Esse é o caso, por exemplo, da indústria extrativa mineral, da indústria de petróleo e derivados e da indústria aeronáutica.

A escalada industrial da China tornou nossa situação industrial ainda mais desvantajosa. A estratégia chinesa apoiou-se numa agressiva exportação de manufaturados que atinge seu ápice na segunda metade dos anos 2000.

Essa realidade, combinada com a mudança favorável nos termos de troca, acentuou as tendências que afligiram a economia industrial brasileira nos últimos 30 anos: valorização cambial, "reprimarização" da pauta de exportação, bloqueios à diversificação da estrutura industrial, permanência de uma organização empresarial defensiva e frágil. As medidas defensivas adotadas depois da crise de 2008, tais como a desoneração, o crédito favorecido, a exigência de conteúdo nacional e medidas de defesa comercial, malgrado as críticas que sofreram e ainda sofrem, foram importantes para impedir uma deterioração ainda mais profunda da indústria de transformação.

A fragilização industrial ocorre em um momento de intenso movimento de fusões e aquisições em todos os níveis das cadeias produtivas globais. Sendo assim, a política industrial não pode reproduzir as orientações do período dito nacional-desenvolvimentista e muito menos promover uma abertura comercial sem estratégia, ou seja, desamparada de uma política industrial e financeira ajustada aos tempos de hoje.

A literatura relevante sobre processos de industrialização ou de (re)industria-lização assinala a importância da ação do Estado na promoção das formas de financiamento, na educação, na criação de sistemas de inovação e nas políticas comerciais, leia-se, na abertura de oportunidades a serem capturadas pelas iniciativas do setor privado. Não é preciso lembrar ao leitor que essa foi a experiência de Alemanha, Japão, Coreia, China e, last but not least, dos Estados Unidos.

A premissa maior de uma nova política é a adoção de um câmbio competitivo, o que significa, nas condições atuais, buscar a elevação das importações como ingrediente do crescimento das exportações. Amanutenção do câmbio real competitivo é condição necessária, porém não suficiente para a constituição da nova política, mas deve ser complementada por um conjunto de ações governamentais executadas simultaneamente.

E bom notar que os críticos à esquerda haviam apontado a exaustão do chamado "modelo de substituição de importações", sublinhando, aliás, alguns desafios importantes de hoje que estavam postos em mea-dos da década dos 70: 1.A criação dos instrumentos e instituições privadas de mo-bilização do financiamento doméstico, particularmente para suportar o financiamento de longo prazo. 2. A reestruturação e modernização da grande empresa de capital nacional e de suas relações jcom o Estado. 3. A constituição do que Fernando Fanjzylber chamava de "núcleo endógeno de inovação tecnológica".

As críticas à industrialização brasileira recomendavam a adequação do tamanho e da estrutura organizacional das empresas brasileiras às condições da "competitividade global", o que favoreceria a sua internacionalização e permitiria melhorar nossa posição na celebração de acordos de comércio e investimento.

No que diz respeito ao "núcleo endógeno de inovação tecnológica", o Brasil foi bem-sucedido em três aventuras que !juntaram as políticas do Estado à iniciativa privada: a Embrapa, a Embraer e a Petrobras. Essas experiências de sucesso reproduzem, aliás, o que tem sido executado nos países desenvolvidos e, mais recentemente, na China.

Caberia agora identificar novas fronteiras de articulação público-privada com potencial para absorver inovações e transformações organizacionais. Não se trata, apenas, de buscar acréscimos marginais de avanços tecnológicos aplicados a processos e produtos. Embora isso deva ser perseguido pelas políticas, o núcleo duro deve contemplar a formação de um sistema capaz de revolucionar continuadamente os processos de produção e a oferta de novos produtos. Dessa forma, a escolha das cadeias prioritárias é de suma importância. À guisa de exemplo, cabe mencionar o elevado potencial de acumulação e de capacidade privada para suportar riscos de alguns segmentos da vida empresarial brasileira. Falamos do agronegócio, da indústria de base e da estruturação que tem sido levada a cabo na indústria de defesa. Essas indústrias possuem características que permitem a concertação de ações público-privadas voltadas para a qualificação das cadeias industriais.

É preciso reafirmar que o sucesso desses empreendimentos depende crucialmente das políticas de financiamento e incentivos públicos ao investimento e à inovação e das compras governamentais, pontos nos quais o atual governo tem avançado. Resta criar um sistema de metas e contrapartidas rigorosamente cobradas dos beneficiários privados. Uma espécie de combinação entre as políticas norte-americanas e as políticas asiáticas.

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