26 novembro, 2019

Não, Sem as Mãos Não Pode!

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FONTE:
Jornal Extra-Classe, ano 24 n. 238, outubro de 2019, páginas 4-5-6: entrevista de Ricardo Antunes, professor de sociologia do trabalho in Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Intitulada "A devastação do trabalho", ela permite especularmos e avançarmos na análise de nosso tempo.f

CITAÇÃO:
[O] sistema global do capital, por mais que destrua trabalho, ele não cria riqueza sem trabalho. Máquinas não criam riqueza. Podem falar de máquina digital, informacional, inteligência artificial, internet das coisas, isso tudo potencializa riqueza, mas não a cria. O que tipificou o século XX? A sociedade do automóvel. E acabou, já se foi. O que tipifica este início do século 21, e falo em início porque ainda há muito por vir, é a sociedade do smartphone. É um mundo digital, mas para ele usamos as mãos. E sem a extração de trabalho mineral nas minas da Ásia, da America Latina, da África do Sul, de onde for, não somos capazes de produzir sequer idealmente o celular. O capital pode potencializar o lucro, a riqueza, mas não sobrevive sem alguma forma de trabalho humano.

COMENTÁRIOS UM TANTO ALONGADOS:
Além do que falei ontem, muito li e pouco pensei no binômio mão-cérebro, em atuação em diversos tipos de seres humanos, como os castores, os macacos rhesus, e nós mesmos. Mas foi no chimpanzé que esses controles um tanto instintivos começaram a se descolar do lugar comum. Não sei quem nasceu antes: a mão desenvolvia novas habilidades, os dedos se amestravam , o cérebro sofria essa influência, as sinapses neuronais se multiplicavam. A mufa -como dizem...- podia ir aprendendo com as manipulações de objetos que ela própria conduzia, mas com operações cada vez mais refinadas. Talvez jamais possamos saber quem iniciou o processo.

Ao mesmo tempo, correndo por fora, parece que, além dessa peculiaridade que ampliou o descolamento do descendente do "terceiro chimpanzé", como dizem, vi o trio:

.a linguagem
.b alimentar estranhos
.c tabu do incesto.

Pois tudo isto está ocorrendo numa sociedade que, ela própria, evoluía a passos lentos: as mudanças "incrementais e sucessivas" que tanta ojeriza provocam no presidente da república e que respondem pela parte substantiva dos processos evolucionários. E, num just like that de fazer inveja à velocidade com que dois namorados ficam inebriados com um raio de luar que escapou por detrás do muro, surgiu a troca e, ipso facto, a moeda. A troca expandiu a monetização da vida e esta expandiu a outra. Isto talvez cesse um dia, não sabemos. Mas podemos pensar que o capitalismo ainda tem muito campo para queimar. Eu, às vezes, digo que ele -capitalismo- acabou há mais de 15 dias, mas é brincadeira. Vejo nele possibilidades ainda enormes de evolução.

A rigor, meus principais exemplos -recorrentes que só eles- são os setores de transportes e saúde, provendo lua-de-mel nos anéis de Saturno e vida eterna. E quase sempre evito dar a ênfase adequada aos intermediários financeiros, a oficialização de um cassino que cada vez distanciará mais e mais a relação entre os movimentos de ativos financeiros (ações, debêntures, títulos governamentais) e o valor adicionado. Tudo, ou quase tudo, feito por computador. O Efeito Excel (a participação do PIB do agronegócio em Porto Alegre é 0,0%, se ficarmos apenas com esta casa decimal. Mas tá na cara que, enquanto houver produção de pêssegos na Vila Nova, de flores na Lomba do Sabão, haverá uma casa decimal lá longe do primeiro zero que tornará essa produção -tão especial, caso das flores, nas noites de luar- irrelevante para fins de dinamização do sistema.

Ainda assim, a produção de flores terá o suporte das mãos do agricultor, do produtor das máquinas que o agricultor usou, do computador que o contador do agricultor usou, e por aí vai. Em algum lugar do espectro produtivo, fatalmente iremos notar a presença de trabalho vivo, as mãos de que metaforicamente estou falando. O capitalismo tem a tendência -boa para uns e má para outros- de substituir o trabalho vivo pelo trabalho morto. Nesse processo, geram-se aquelas mercadorias que propiciaram a troca, a moeda e -tchan-tchan- o banco central e o banco dos bancos centrais, a saber o banco central mundial.

Pois então: Ricardo Antunes está falando no uso das mãos humanas para mexer nas máquinas de curto alcance, como o telefone celular ou o barbeador elétrico. Claro que podemos conceber um robô que faça nossos telefonemas, atualize nossos contatinhos, faça-nos a barba ou a depilação dos boys and gilrs interessados, mas ainda assim haverá limites. Volta e meia fico a indagar-me quem escova os dentes do príncipe Charles e concluo que é ele mesmo, o que o faz tão humano quanto eu. De minha parte, desfruto dos serviços de uma escova de dentes elétrica. Mas cabe a mim, ainda não tenho um robô para isto, para retirá-la do armarinho do banheiro, ligá-la, encaixá-la em minha boca e movê-la sem matar-me. Ao mesmo tempo, ainda que máquinas vistam-me à esportiva, outras calcem meu tênis, carreguem minha raquete de squash ao ginásio, não teria a menor graça que um robô jogasse por mim, em meu lugar. Até concebo que possa divertir-me jogando com um robô, mas não poderia abrir mão de meu papel. O que poderia, como já fiz, é começar a jogar xadrez com um programa de computador e, ao sentir-me acuado, mudar o nível do antagonista virtual. No caso do squash, talvez haja comandos "sem as mãos" para mudar o programa e permitir-me vencer a geringonça. Mas isto é pouco, se compararmos com a enorme habilidade manual e, de todo, corporal que precisarei usar eternamente para divertir-me.

Esse tipo de serviço prestado pelas mercadorias, esses valores de uso, para falar marxês, não podem prescindir da ação transformadora humana. Nem falei que eu mesmo gostaria de seguir mastigando iguarias ou degustando uma cachacinha, que ninguém é de ferro. Claro que num mundo em que a produção for toda intermediada por máquinas, sem intervenção humana, e o consumo empachando-nos sem qualquer ação nossa, poderemos ter a redenção ou a escravidão. Mas o certo é que aquele "efeito Excel" terá chegado a zerocentos e, com isto, o capitalismo terá ido a óbito. Sem trabalho humano não há capitalismo, mesmo que ele ainda não tenha terminado nessa última quinzena.

DdAB
P.S. Ao falar em chimpanzés como nossos ancestrais, refiro-me duplamente ao presidente da república. Por um lado, ele é uma espécie de macacão que faz a barba e, por outro, ele odiaria ver este escrito, por discordar da ciência, da biologia evolucionária, essas coisas.

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