26 setembro, 2019

O Grupo, Meu Grupo: lições abruptas


Pois então. E apenas pois então. Tipo em 1968, algo assim, li o livro

McCARTHY, Mary (1967) O grupo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 3ed. Trad. Fernando de Castro Ferro. Capa de Eugenio Hirsch. A primeira edição americana é de 1963.

E a história rola em torno de 1933, ou seja, seis anos antes da II Guerra Mundial enquanto projeto exclusivamente europeu, uma vez que -como sabemos- os Estados Unidos nela ingressaram em 1941. E, vamos ver em seguida, repé dos "processos de Moscou". Esse 1933 é evocativo da autora que se graduou em Vassar precisamente naquele ano. De minha parte, talvez até aquela estimativa de que li "O Grupo" em 1968 esteja errada. O certo é que, no máximo, no primeiro semestre de 1968, eu falava tanto em ler este livro que meu colega Ubiratan Silveira sugeriu que eu estava mesmo era anunciando a vontade de entrar num processo de psicoterapia de grupo.

Ocorre que, semanas atrás, li novamente o iluminado romance de Mary McCarthy, que me pareceu fruto de uma intelectual de porte, dona de seu tempo. Buscava rememorar a história e a minha história. Reconheço apenas traços de ambas. De minha parte, tinha presente que lera acerbas críticas ao mundo soviético, com referências aos "processos de Moscou", aquela inominável vergonha protagonizada pelo stalinismo e que tanto marcou as dissidências nos partidos comunistas do mundo inteiro. Hoje penso que os que tomaram contato com a violência que serviu como arremedo de justiça, com boas razões abandonaram o ideal de que a União Soviética poderia oferecer algum progresso moral para a humanidade.

Hoje em dia, costumo dizer que o socialismo ainda não é viável no planeta, pois a humanidade ainda não é capaz de gerar instituições que lhe deem suporte. Quando vejo amigos falando em algo estrutural que destruiria o capitalismo, exigindo de nós que tratemos de substituir esta formação econômico-social, penso que eles estão enganados, como eu estive. E estive mesmo muito enganado, pois foi só em meados dos anos 1990 que deixei de acreditar nas possibilidades do socialismo no planeta tão cedo, com implantação tão abrupta como o foi a Revolução Russa e outras revoluções de similar espectro (trocadilho intencional).

No que segue, vou citar algumas alusões aos julgamentos de Moscou, o problema da venda de sangue e, por fim, a crítica feita pela autora ao conceito de progresso, tema que tornou-se bastante em destaque na virada do milênio.

JULGAMENTOS DE MOSCOU
Página 252
Gus [que fora socialista e depois comunista] jamais tomou conhecimento dos pequenos grupos dissidentes, como os trotskistas, por exemplo, aos quais pertencia o Sr. Schneider, vizinho de Polly, ou os lovestonistas [oposição americana aos trotskistas] ou os misteístas (quem? perdidos?) - todo grande movimento, costumava ele dizer, tem sua cota de malucos,. Contudo, não ingressou no no partido ao voltar para a América.
:: nada mais normal para um americano daquele tempo ter suas simpatias pela União Soviética. Afinal não tinham-se ido nem 20 anos desde a revolução. Certos requebros ainda podiam ser considerados apenas ajustes temporários, em busca da construção do "homem novo". Mas já tinha rolado o massacre de Kronstaadt.

Página 253
[Gus] não mantinha polêmica com os infiéis, inclusive ela e, na verdade, pouco se importava em difundir suas ideias, ao contrário do pobre Sr. Schneider, que vivia tentando convertê-la ao trotskismo e, agora mesmo, andava excitadíssimo por causa dos grandes julgamentos de Moscou, os quais citava toda vez que encontrava Gus na escada. Estavam por demais longe do cenário, comentava Gus, para poderem julgar quem estava certo e quem estava errado - a história é que decidiria. Particularmente, achava aquilo tudo insignificante em comparação com a guerra da Espanha, algo que o excitava profundamente.
:: então estavam na parada os processos de Moscou e a Guerra Civil Espanhola, a antessala da II Guerra Mundial.

Página 266
[novamente a dupla Sr. Schneider e Gus em ação} Se não fosse sobre os julgamentos de Moscou, a conversa versaria sobre a guerra na Espanha. O Sr. Schneider estava ligado  um grupo chamado Poum [sic] e era também favorável aos anarquistas, e ambos, na opinião de Gus, estavam sabotando a guerra.
:: e a dupla de assuntos também... E o Poum era, se bem lembro (vou conferir na Wikipedia) o Partido Operário de Unificação Marxista. E, se naqueles tempos, podia-se pensar na unificação marxista, por que hoje, a exemplo do Uruguay, as esquerdas brasileñas não podem unir-se para enfrentar a direita nas eleições municipais?

Página 273
[Polly, garota envolvida com Gus falando:] Acho que você devia ter prestado mais atenção às conversas do Sr. Schneider sobre os julgamentos de Moscou.
:: E conclui, o que parece tornar-se uma maldição jogada sobre uma pilha de esquerdistas: "Alguns minutos antes, repentinamente, chegara a uma conclusão que explicava tudo: Gus era um ordinário. Essa era a lamentável verdade."

Página 282
O responsável [pela conversão do pai de Polly ao trotskismo] foi o Sr. Schneider, é claro. Uma vez terminado o [consertos e reformas] apartamento [de Polly], o Sr. Andrews ficou com muito tempo para matar enquanto Polly trabalhava no hospital e, aproveitando a situação pelas suas costas, Schneider fornecera-lhe pilhas de livrose de panfletos sobre os julgamentos de Moscou. 

VENDA DE SANGUE
Página 292
[Polly, agora abrigando o pai em sua casa, estava apertada de dinheiro] Naquela semana vendeu sangue ao laboratório, o mesmo fazendo nas duas semanas seguintes.
:: Então, hein? Compra e venda de sangue? Um bem altamente meritório? É, isto mesmo, este é o depoimento de Mary McCarthy. E meus leitores lembram da viagem do Reino Unido, nos anos 1950, quando a venda de sangue tornou-se oficial e a oferta caiu? Mercado também serve para desmotivar os doadores voluntários. No caso britânico, dizem que a turma que doava por puro altruísmo, empatia com os doentes, achou que poderia furtar-se desta ação, pois agora haveria pessoas interessadas no comércio. Mas a oferta teria caído, vendedores de sangue não conseguiram bater a quantidade anteriormente provista pelos bons cidadãos.

CRÍTICA AO CONCEITO DE PROGRESSO
Página 344
"Você ainda acredita no progresso?", indagou [Norine] gentilmente. "Já tinha esquecido que há gente que acredita nisso. É uma espécie de sucedâneo para a religião. Para vocês, o deus familiar são as vantagens oferecidas pelo progresso. Mas acontece que já ultrapassamos tudo isso. Uma mentalidade de primeira classe não pode mais aceitar o conceito de progresso." "Você sempre foi muito radical". protestou Priss. "Não tem admiração por certas coisas que Roosevelt está fazendo? A eletrificação rural, a administração da Redistribuição de Terras, o controle das colheitas, salários e horas de trabalho. Lógico que incorre em alguns erros...". "Eu ainda sou radical", interrompeu Norine, "mas agora sondo o significado das coisas, penetro até às raízes. E o New Deal [sic] não tem raízes, é superficial. Não tem nem mesmo o dinamismo do fascismo."
:: Olha só: com aquele pano de fundo dos grandes acontecimentos dos anos 1930, guerra civil na Espanha e guerra mundial, os processos de Moscou chegaram a colocar-se em segundo plano. Mas agora Norine joga de mão e dá as cartas: que diabos é este de progresso?, como falar em progresso com aquele pano de fundo? Mas sobrou para os liberais contemporâneos: a política econômica implementada por Roosevelt para combater a grande depressão e, depois, sua manutenção e ampliação para vencer a guerra. Obviamente, Norine ou Priss nada sabiam sobre as eleições brasileiras de 2018, ou sobre a dupla Reagan-Tatcher, com a revolução neo-liberal e seus libelos contra a social-democracia.

Quando li o livro, o Brasil vivia sob uma ditadura militar que se enfeitava de laivos de apoio da sociedade civil, a classe política puxa-saca e corrupta, bem como alguns idealistas de direita.

DdAB
P.S. ontem o jornalista Moisés Mendes escreveu o que segue em sua página no Facebook:
JORNALISTAS BOLSONARISTAS
Alguns colegas têm notado um fenômeno que exige acompanhamento: o crescimento do bolsonarismo no jornalismo.
Logo depois da eleição, os jornalistas de direita mais cuidadosos com a própria imagem se protegeram como isentões. Alguns até se afastaram de Bolsonaro como forma de sobrevivência.
Outros [jornalistas isentões] faziam jogo duplo, atacando Bolsonaro, mas ao mesmo tempo, em qualquer fala ou texto, sempre fazendo referências [desabonadoras] a Lula e Dilma. Bolsonaro isso, mas Lula aquilo.
O que se vê hoje é que muitos correm de volta para os braços da extrema direita, num movimento aparentemente suicida, porque Bolsonaro está em baixa.
O que aconteceu? O que eles ganham com isso? Os patrões determinaram? Tem algum acordo, alguma trégua?
Precisamos saber mais. Nenhum jornalista é bolsonarista impunemente.
abcz

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