28 setembro, 2014

Ulysses: Buck Mulligan cortando a barba


Querido diário:

Como sabemos, costumo declarar-me especialista na primeira sentença da obra prima de James Joyce. Em particular, depois de muita meditação que perpetrei especialmente nas praias de Tramandaí, Capão da Canoa, Imbé e arredores, contestei as traduções e mesmo o original que dizem haver um espelho entrecruzando-se com uma navalha. Minha visão espacial diz que, analogamente ao jogo "Pedra, papel, tesoura" (aqui), navalha deita-se sobre espelhos. Navalha pode cruzar um espelho, isto é, atravessá-lo. Em resumo, a navalha deita-se sobre o espelho e não com ele. O que pode é a navalha cruzar-se com o pincel de barba, sobre um espelho ou qualquer outra superfície plana.

No dia do solstício de inverno meridional, percebi que ninguém examinou os cotos da barba de Buck Mulligan que foram parar no lenço enranhado (1) de Stephen Dedalus. Por isto, decidi fazer um vocabulário/lexicon a partir da tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, ou seja, uma semana e alguns anos depois do 16/jun/1904, lá era o solstício de verão.

Como sabemos, seu primeiro parágrafo deixa-se ler como:

Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba. Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã. Ele ergueu a tigela e entoou:
-Introibo ad altare Dei.

Temos aqui "tigela", "espuma", "espelho", "navalha" e "barba". Estamos na página 27, a primeira do capítulo 1, que Bernardina não chama de "Telêmaco", como o fazem outros tradutores em outros momentos e contextos.

O quarto parágrafo desta mesma página, a partir de agora com todas as palavras relevantes em negrito, é:

Buck Mulligan espreitou por um instante por baixo do espelho e depois cobriu a tigela rapidamente.
- De volta pro quartel! - disse implacavelmente.

Parece que, insofismavelmente, poderíamos ter lido algo assim lá em cima: "Por baixo do espelho, o pincel e a navalha se cruzavam"! Aí faria sentido. Mas espelho cruzando-se sobre uma navalha de barbear, cá entre nós...

Da página 28, temos seu segundo parágrafo:

Ele apontou com o dedo num gesto amigável e se encaminhou para o parapeito rindo consigo mesmo. Stephen Dedalus se aproximou, acompanhou-o e a meio caminho cansado se sentou na beira da plataforma de tiro, observando-o enquanto ele apoiava o espelho no parapeito, molhava o pincel na tigela e passava espuma na face e no pescoço.

Em seguida nesta mesma página vem:

Ele pôs o pincel de lado e, rindo com prazer, gritou: [...] Parando, ele começou a fazer a barba com cuidado. [...] Buck Mulligan mostrou um rosto barbeado por cima do ombro direito. [...] Ele raspou cautelosamente o queixo.

Na página 29, o novo parágrafo diz e mais além,:

Buck Mulligan franziu a testa ao olhar para a espuma em sua navalha. [...] -Faça-nos empréstimo de seu traponasal para limpar minha navalha. [...] Stephen suportou que ele puxasse para fora e exibisse erguido por uma das pontas um lenço amarrotado e sujo. Buck Mulligan limpou a lâmina da navalha cuidadosamente. Em seguida, lançando um olhar por cima do lenço, disse: [...] Ele se interrompeu e passou espuma de novo ligeiramente na face. Um sorriso tolerante crispou seus lábios.

Passamos à página 30:

Seriamente e em silêncio ele fez a barba com tranquilidade e cuidado. [...] Buck Mulligan limpou novamente sua navalha de barba. [...] Buck Mulligan atacou a concavidade abaixo de seu lábio inferior. [...] -Ele não pode usá-la - falou Buck Mulligan para o seu rosto no espelho. [...] Ele dobrou a navalha cuidadosamente e com batidinhas leves apalpou o rosto sentindo com os dedos a pele macia.

Página 31 (2):

Ele fez o espelho rodopiar em semicírculo no ar para lançar a notícia bem longe sob a luz do sol agora radioso sobre o mar. Seus lábios crispados e barbeados riram assim como as ponta dos seus dentes brancos cintilantes. [...] Sephen inclinou a cabeça para frente e examinou o espelho, fendido por uma rachadura tortuosa, estendido para ele. [...] Rindo de novo, ele afastou o espelho dos olhos perscrutadores de Stephen. -A raiva de Caliban por não ver seu rosto no espelho -disse ele. [...] O espelho rachado de uma criada. [...] Buck Mulligan enfiou subitamente seu braço no de Stephen e caminhou com ele em volta da torre, com sua navalha e espelho estalando em seu bolso onde ele os metera. [...] Espelho rachado de uma criada!

Página 36:

A tigela de barbear de níquel brilhava, esquecida, sobre o parapeito Por que eu a levaria para baixo? Ou então a deixaria ali o dia todo, amizade esquecida? [...] Ele se encaminhou para ela, segurou-a nas mãos por um tempo, sentindo seu frescor, cheirando a baba viscosa da espuma de barba na qual estava enfiado o pincel. [...] Stephen pôs a tigela de barbear no armário. 

Aí pula para a página 41:

-Aquele espelho rachado de uma criada ser o símbolo da arte irlandesa é tremendamente bom.


MORAL DA HISTÓRIA
Nós, da Associação dos Amigos e Estudiosos da Primeira Sentença de Ulysses, somos forçados a reescrever a encrenca como:

Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados sob um espelho rachado, um pincel e sua navalha de barba.

NOTAS
(1) No livro 1491, fala-se na estupefação dos índios da América do Norte com os invasores ingleses que limpavam o nariz em (lenços de) pano e os guardavam enranhados, ou seja, carregados de coriza.
(2) A dame Bernardina tem aqui aquele "para a frente", que tomei a liberdade de corrigir.

DdAB
Imagem aqui.

P.S. Aqui estão os substantivos e pronomes relevantes: a, barba, barbeados, espelho rachado, espuma de barba, navalha, raspar (raspou), rosto barbeado, seu, e tigela de barbear de níquel.

P.S.S.: mais uma prova da impossibilidade física de uma navalha de barbear cruzar um espelho.

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