Querido diário:
Ainda mais agora que o filme inspirado na vida de Hannah Arendt (aqui) marcou os 10% ou 20% cinemeiros mais ricos do Brasil (talvez até isto implique um reduzido subconjunto da população - 1 a cada 10 ou 20 - e todos os cinemeiros), é espantoso que um planetinha qualquer (o 23, claro) ache que tudo sabe sobre Martin Heidegger, um colaborador do nazismo (aqui). Mas acho tão descabido recusar-me a lê-los (Arend e Heidegger), especialmente se meu projeto intelectual for tornar-me um filósofo, um estudioso de filosofia, quanto é descabido questionar o plano de ensino criado por um professor, baseado em uma ementa criada por um colegiado de professores.
O aluno, claro, tem o direito de questionar um professor (por exemplo, um gambá, ou um corrupto), mas -dado que o professor tem reputação ilibada, boa formação, essas coisas- parece que questionar seu plano de ensino é que é uma atitude que marca os tempos modernos, ou seja, tempos de desmandos brasileiros. Por mais que não seja outra razão, bem que eu gostaria de viver mais 100 anos, a fim de ver se os jovens da presente geração brasileira vão dizer que em seus tempos é que as coisas eram interessantes, questionando os hábitos e costumes de seus filhos e netos.
Quando, por exemplo, um aluno de economia questiona se deve estudar o monetarismo ou derivadas parciais, o que vejo é a declaração de vagabundagem e preconceito, precisamente aquilo a que a educação se destina, ou seja, deslocá-lo da ignorância ao conhecimento do estado atual do desenvolvimento de uma ciência, no caso a vetusta economia. Frase nova: deslocamento este que tem por objetivo acabar com o preconceito, os estereótipos e os antropocentrismos.
Não ler Hannah Arendt por ser judia ou Martin Heidegger por ser colaboracionista é realmente a consolidação do fim (pois o começo do fim já se consolidou há uns 25 ou 30 anos, só que ainda levou mais tempo para chegar à universidade).
Segue-se logicamente que lemos à p.35 de Zero Hora de hoje a notícia de que um estudante de uma faculdade brasileira (nem interessa dizer se é medicina ou veterinária, ou o que seja) recebeu a incumbência de um de seus professores de escrever um trabalho sobre Marx, Karl Heirich, o judeu alemão (aqui). Ele -aluno- recusou-se a escrever o trabalho. Meno male, se fosse anarquista, mas sua alegação era ser "de direita". Marx de direita? Não, era o aluno. Antes de empinar outro copo de cachaça, pensei: "E eu, que não sou monarquista, e andei estudando o ciclo do couro da economia brasileira, situado em pleno período colonial, quando o Brazil (assim se grafava) era uma das colônias de uma feroz monarquia?" E respondi: a solução é as bebida, mais e não menos.
E não posso deixar de evocar um economista odiado por muita gente por ser liberal, monetarista e ter dado apoio engajado ao governo chileno, sob a batuta do afamado general Pinochet. Suas posições pessoais, bem como sua origem étnica ou cultural não invalidam a identidade M*V = P*Q, não mesmo? E pensei que jogarmos fora a tigela com a sopa, de sorte a nos livrarmos da noz moscada, leva-nos a contestar o carinha que lançou para o debate moderno a questão da renda básica! O raciocínio friedmaniano era simplérrimo: quem ganha bem deve pagar imposto de renda (que liberal, hein?), ergo quem ganha mal deve pagar imposto de renda na menos um, ou seja, ganhar dinheiro do governo.
DdAB
Imagem: belo blog para viajantes aqui. Sobre Marx, já celebrei aqui saber par coeur suas coordenadas vitais fundamentais. Lá na placa diz 1818-1883. Sem bem o 1818: cinco de maio, ou seja, a mnemônica rolou como 05 05 18 18. A data do passamento do Mouro é 1883 (só olhando a wikipedia para saber o dia e mês: 14 03 1883). E como é que eu sabia de cor este 1883? Pois é o ano do famoso artigo de Joseph Bertrand sobre a formação do preço em um duopólio. E sei isto de Bertrand, pois sabia de cor a data do livro de Augustin Cournot: 1838. A data de 14 de março também é facílima de gravar: dia internacional da mulher mais fatorial de 3. E por que fatorial de 3? A resposta parece óbvia: Arendt, Heidegger e Marx. Ou ainda, Cournot, Bertrand e Marx, n'est ce pas?
2 comentários:
Não querendo parecer ultra-reaça, no meu tempo, quando o professor mandava ler um texto, os alunos liam sem contestar. Éramos mais cordatos, ou então estávamos mais acostumados a entender o mundo como uma hierarquia: existiam aqueles que mandavam (porque sabiam mais do que nós) e aqueles que obedeciam (porque tinham juízo). Com certeza estou ficando velha...
Saudações, Profe!
De acordo com o primeiro teorema da idade, "nunca fui tão velho quanto hoje", logo todos estamos ficando velhos à taxa de um dia por dia. É importante deixarmos claro que, quando líamos o que mandavam, não contestávamos a ordem, ou seja, a autoridade intelectual de quem organizara a leitura, mas contestávamos os conteúdos do líamos. Ou melhor, discutíamos, concordando ou discordando.
DdAB
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