17 outubro, 2013

O Ser e o Tempo

Querido diário:
Nosso Planeta 23 conhece há muitos anos o prof. Enéas de Souza, também conhecido internacionalmente: filósofo, crítico de cinema, economista, dirigente governamental e psicanalista. Citei-o mais de uma vez em meus escritos, referindo uma pequena fração das lições que recebi em nossa lida cotidiana, ambos exercendo a condição de economistas. Quando ele ingressou na Fundação de Economia e Estatística, eu por lá já andava (e trabalhava), destacando a linda convivência com o agora finado prof. Fernando Rocha. Este conhecia Enéas Costa de Souza mais proximamente do que eu, por aqueles tempos. E Fernando não teve dúvida em dizer-nos: "Ele representa para a futuro da FEE aquilo que Ruy Carlos Ostermann representa para o futebol." Estava certo Fernando. Estava certo Enéas em perceber que poderia contribuir substantivamente para fazer da FEE uma respeitada instituição.

Recebendo pedidos de indicar como se deve iniciar o estudo de filosofia, ele dizia: "Inicia com o que tens em mãos. Tua leitura vai levar-te a indagar outras questões e estas é que orientarão tua nova leitura." Segue-se logicamente que a p.5 do jornal Zero Hora de tem uma entrevista com ele: simplesmente, ele tornou-se também ator de cinema, transformando-se em " O personagem de 'Os Filmes Estão Vivos' ".

Diz o jornal, na chamada para a matéria, uma entrevista que valeria a pena ser reproduzida e aprendida como cânone para qualquer programa de estudo:

Economista, Enéas de Souza é uma referência da crítica de cinema. O personagem de Os Filmes Estão Vivos voltou a Paris, cidade em que foi rodado o curta gaúcho, no fim de setembro. De lá, enviou respostas a nove temas cinéfilos propostos por ZH, expandindo conceitos desenvolvidos no filme de Fabiano de Souza e Milton do Prado. [...]

Seria ele o ser? O Ser? Fiquei a indagar-me de onde ele tira tempo para tanta atividade. E tentei, com base na entrevista (que reproduzo lá embaixo) encabeçada pelo trecho acima, fazer uma estimativa. Pois bem, ele fala em:

Alain Resnais, Alan Badiou, Bruno Dument, Cinema de Pernambuco, Cinema gaúcho, Claude Simon, Claudio Assis, Eduardo Coutinho, Federico Fellini, Fernand Léger, François Truffaut, Fritz Lang, Hanna Arendt, Ingmar Bergmann, Jacques Chabrol, Jacques Deleuze, Jean Luc Goddard, Jean Luc Nancy, Jean Paul Sartre, Jesse Valadão (Boca do Lixo), João Moreira Salles, José Padilha, Mehdi Belhaj Kacem, Kleber Mendonça Filho, Luchino Visconti, Luiz Fernando Carvalho , Manoel de Oliveira, Margareth von Trotta, Marguerite Duras, Marguerite Duras (filme), Maurice Merleau-Ponty, Michel Foucault, Miguel Gomes, Pedro Costa, Phillipe Garrel,  René Clément, Rivette, Robbie-Grillet, Roberto Rosselini, Rohmer, Sócrates, Stephen Spielberg, Tarsila do Amaral, Walter Salles, Zé do Caixão.

Em muitos destes nomes nunca ouvi falar. Kacem, por exemplo, eu não sabia nem que tinha prenome. Então voltei a perguntar-me o que devo ler para entender as trajetórias do cinema moderno, e não apenas dele, mas de tudo o mais, todas as trajetórias de qualquer móvel (tudo se move, não é mesmo?). Esta lista seria um bom começo. Então voltei: e quanto tempo o Enéas levou lendo/vendo tudo isto? Pensei em duas horas por filme, duas horas por livro, duas horas para Tarsila do Amaral. Resultado: 45 nomes, 90 horas. Só isto? E pensei que para ser Enéas torna-se necessário muito mais tempo.

DdAB
Fonte da imagem lá de cima: aqui.
Fonte da entrevista: aqui.

Aqui tá a entrevista:

Confira as respostas de Enéas, que foram enviadas por e-mail:

1. Uma descoberta recente que vale a pena.

"A renovação do cinema brasileiro, com alguns belos cineastas: José Padilha, Eduardo Coutinho, João Moreira Salles, Walter Salles, Luiz Fernando Carvalho, Claudio Assis, Kleber Mendonça Filho. Eles recuperam o extraordinário nível do Cinema Novo. O cinema brasileiro tem uma envergadura excepcional. Veja o caminho do documentário: fomos nós que o puxamos recentemente, do ponto de vista mundial. Ao mesmo tempo, o cinema brasileiro tem falado de forma crítica e permanente sobre a realidade brasileira."
2. Um cineasta que estamos vendo mal.
"Não estamos vendo bem o cinema português. É verdade que o (diretor) Miguel Gomes encontrou, com Tabu (2012), uma bela acolhida. Mas Pedro Costa (de Juventude em Marcha) é desconhecido, ou quase isso, dos críticos e, sobretudo, do público."
3. Um cineasta que, ao contrário, é festejado indevidamente.
"Não digo a crítica, mas o público gosta demais de Spielberg. Seu Lincoln (2012) é desinteressante. Até Daniel Day-Lewis está sem brilho, ele que é um ator de recursos fantásticos."

4. Uma descoberta que os cinéfilos brasileiros deveriam fazer.
"Vou ser quase obscuro, mas existe um filme de Marguerite Duras, India Song (1975), que é extraordinário, sobretudo pela hegemonia do som e da palavra sobre a imagem. Trata-se, de algum modo, de uma continuação de Hiroshima, Meu Amor (1959), de Alain Resnais: o que eu chamei um dia de ‘cinema-literatura’ vai o mais longe possível."

5. Uma cinematografia ou uma época/escola que vale a pena se prestar mais atenção.
"O cinema francês pós-Nouvelle Vague, de Phillipe Garrel a Bruno Dumont. Ficamos tomados demasiado tempo pelo brilho de Godard, Truf­faut, Resnais, Rohmer, Rivette, Chabrol. E a renovação veio com muitos bons cineastas, como o (Olivier) Assayas."

6. Um cineasta ou um filme que você gostaria de debater num eventual volume 2 de Os Filmes Estão Vivos.
"A ideia do Fabiano e do Milton foi não discutir autores consagrados. Todavia, existem inúmeros cineastas que dinamizaram o cinema. Diria Hitch­cock, Fritz Lang, Bergman, Manoel de Oliveira, Pedro Costa, Rosselini, Fellini, Visconti, Joseph Losey, toda a Nouvelle Vague etc. E, claro, a fertilidade histórica do cinema brasileiro, desde as chanchadas, os filmes da Boca do Lixo, o Zé do Caixão, os documentários, o atual cinema de Pernambuco e o nosso próprio cinema gaúcho."

7. Algo que os cinemas de Paris têm e que Porto Alegre poderia ter.
"Não dá para comparar Paris com qualquer outra cidade. Na França, o cinema faz parte do pensamento. Qualquer filósofo (Badiou, Deleuze, Foucault, Clément Rosset, Merleau-Ponty, Sartre, Jean Luc Nancy, Kacem etc.) falou ou fala sobre cinema. Romancistas como Claude Simon, Marguerite Duras, Robbe-Grillet: todos filmaram para não só desenvolver cinematurgias, mas para destacar o tema da palavra e da imagem. Os artistas plásticos idem. Lembre-se o Ballet Mécanique (1924), de Fernand Léger, mestre de Tarsila Amaral. Ou seja, o cinema está na veia da cultura da França. É essa presença da temática da imagem na cultura contemporânea que estamos precisando adquirir. E isso não se dá sem uma efetiva política de cultura para o Brasil. Essa política começa quando pudermos juntar cultura e educação."

8. O impacto de novidades tecnológicas (Imax, 3D) na cinefilia.
"O mundo vai mudar profundamente com as novas tecnologias, embora as coisas ainda não estejam claras. O que se pode dizer é que o cinema comercial está tentando prolongar a sociedade do espetáculo com as novas magias disponíveis. Na verdade, hoje, o cinemão está perturbado com alguns fatos: as cópias piratas, o YouTube, o cinema experimental, os games. Uma coisa é certa: o cinema deixou de ser a arte popular do mundo. Não quer dizer que ele vai desaparecer. Mas vai assumir um papel semelhante ao que o teatro e ópera tiveram quando surgiu o cinema. Daí a necessidade de o cinema comercial produzir cada vez mais espetáculos para ver se a fantasia da imagem continua a capturar espectadores. A questão passa a ser como a sociedade vai se desvincular da banalização da cultura e absorver tanto a cultura clássica como a cultura digital, inclusive os 'games de autor', para dar um novo sentido ao mundo que está chegando."

9. Um ciclo de filmes que a Capital ainda não viu e bem poderia ver.
"Teria uma lista enorme. Até mesmo os que já foram feitos deveriam ser repetidos, aperfeiçoados. A cultura é ver, escrever, pensar, discutir em conjunto, desenvolver permanente. Não é um adorno. É algo exterior à minha subjetividade, tem a ver com conviver com os outros. Ela é o incêndio e a iluminação da vida, mesmo contra a maioria equivocada do momento. Margareta Von Trotta mostrou isso em Hannah Arendt(2012). Só a cultura permite que a sociedade mude pela coragem de pensar como um dia Sócrates enfrentou Atenas, e Hannah Arendt, o Sócrates contemporâneo, enfrentou a tempestade resultante do julgamento de Eichmann. Os ciclos de cinema deveriam integrar o corpo da cultura de um país.

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