29 agosto, 2012

A Sociedade Igualitária e seus Inimigos

Querido diário:
Quem lê um jornal pauta uma série de preocupações de sua vida por meio do que ele apresenta como sua agenda. Ele, jornal, por seu turno, seleciona do mundo uma reduzidíssima fração para divulgar. Sempre que acho que algum comentário merece um "e daí?", lembro do título da peça "Morre um gato na China". E daí, sô, morrendo tanta gente, inclusive uns 8 mil convidados a retirar-se pelo governo? Segue-se logicamente que leio uma fração do universo selecionada arbitrariamente pelo jornal. E ainda assim, não a leio toda, leio uma fração do que o jornal publica.

No jornal de hoje, tem duas matérias interessantes falando na assimetria entre o Brasil ser declarado -baseado no tamanho do PIB- a sexta economia do mundo. Na primeira, é o cronista Iotti, que compara este sexto lugar com o 88o. na educação. É a p.19. Na 18, tem o consultor associado do Instituto de Estudos Empresariais, senhor Fábio Ostermann, deixando claro que esta sexta economia é apenas a 75a. em matéria de PIB per capita. Bom ponto. Se levarmos isto em conta, até que nem estamos tão mal em matéria de educação, ligeiramente abaixo do que o preditor renda per capita levaria a crermos.

Dito isto, aí começam minhas discordâncias com este último. Fábio Ostermann é um inimigo da sociedade igualitária, usando argumentos que vou comentar em seguida. Por que é inimigo? Porque escreve:

Impera [no Brasil] uma espécie de fetiche quanto a uma utopia de 'igualdade social' que só poderia ser alcançada por meio de políticas de 'redistribuição de renda' que, como o próprio nome diz, serviriam para corrigir uma distribuição ocorrida previamente - no caso, aquela resultante das trocas voluntárias no mercado.

Nem precisaria dizer que ele chega no parágrafo final do artigo de, no máximo 2400 caracteres com a seguinte afirmação:

O essencial, portanto, é que haja um ambiente de liberdade para investir, empreender e comerciar para que mais e mais riquezas sejam geradas e distribuídas no mercado conforme a preferência dos consumidores.

Deste 'portanto' lá dele, marca-me o ouvido o fetiche que ele guarda pelo "mercado". Desconhece por não ter-se tornado leitor do livro Mesoeconomia! Lá o aluno aprende que a vida societária expressa-se por meio de três instâncias: comunidade, estado e mercado. Cada um tem suas virtudes e suas falhas. Olha só, o estado tem a falha que lá às tantas ele aponta: o rent-seeking. E a comunidade? Tem lá seus lichamentos, desagradáveis quando pegam a gente... E o mercado, é ele infalível? Antes de se falar em falhas de estado e de comunidade, explodiu a constatação da existência de falhas de mercado. Mas o tropeço no economês não reside apenas na conclusão.

Lá naquela cita que fiz acima (os '...' estão lá no papel do jornal), tem cada uma. Aquele negócio de que "redistribuições de renda" só ocorrem onde houve "distribuições" é fantasmagórico. Claro que esta sentença, em português e lógica, é sensata. Mas pouco ou nada tem a ver com a questão central:

.a. dos méritos ou deméritos da sociedade igualitária

.b. a completa ignorância da existência e importância das transferências interinstitucionais na formação da receita (disse eu: "receita", receita, meu!) das famílias. No caso, incluo, por exemplo, as pensões que o INSS paga aos demenciados, às vítimas de acidentes do trabalho, aos desempregados, aos aposentados. Isto é pouco? É montes! E está crescendo.

E também tem nestas transferências interinstitucionais o pagamento do imposto de renda que, obviamente, não incide sobre a renda, mas sobre a receita, pois -tremo em dizê-lo- aposentado também paga importo de renda!

Dois pontos mais:

.a. aquele negócio de "trocas voluntárias do mercado" evoca, obviamente as trocas involuntárias do mercado, como as que têm lugar no mercado de escravos.

.b. há evidência apontando para a correlação estreita entre desigualdades no consumo per capita e instabilidade social.


Então, que fica da moral da história do artigo de Fábio Ostermann? Acho que fica que ele precisa estudar mais ainda. Por exemplo, falta-lhe dominar mais estes conceitos de mercado, estado e comunidade. E, no caso do rent-seeking, ter bem presente que o empreendedorismo pode ser produtivo, redistributivo (da receita e não apenas da renda) e destrutivo. E "produtivo" não é adstrito à turbulenta esfera do mercado: há inovações institucionais ocorridas no governo (estado) e na comunidade que pouco ou nada têm de originárias no mercado e que muito podem fazer para tornar esta instituição ainda mais eficiente na alocação dos recursos e reduzir-lhe as porosidades.

Conclusão: precisamos falar sobre Fábio. E sobre as porosidades do mercado!

DdAB
Tu sabe o que é wagamama? Restaurante japonês que conheci em Londres (onde às vezes gasto minha receita, já que aposentado não ganha renda). E como é que um prato de comida pode obnubilar a face do falante? Talvez o menino do desenho não estivesse falando. Boas maneiras, não falar enquanto mastiga, é algo cuja provisão não se origina no mercado. E, como sabemos, nem sempre o mercado as valoriza. Provo-o: é falta de educação roubar as merendas dos escolares.

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