querido diário:
claro que o título de hoje não é uma operação aritmética de multiplicação e subtração. quero falar de duas matérias interligadas em Zero Hora, ainda que existindo em dois cadernos diferentes. a primeira delas é do Segundo Caderno, à p.3, a crônica de Nilson Souza. ele comenta o caso do experimento sobre altruísmo feito em Portugal. jogou-se uma carteira ao chão próximo às filas de um estádio de futebol. 95% dos que acharam levaram-na à bilheteria para que o legítimo dono a embolsasse. depois de falar um pouco mais sobre o tema, diz o articulista:
"Será que somos mesmo um povo com pouco apreço por este valor tão caro (a honestidade, o altruísmo, sei lá) ou andamos com a nossa autoestima abalada?"
na primeira leitura, acho que entendi mal, mas articulei a seguinte resposta: o negócio é o seguinte. andamos com nossa autoestima abalada por causa da ineficácia estonteante do sistema judiciário. aqui o número de processos inconclusos é criminoso. o número de prisões arbitrárias é criminoso. o número de criminosos que vive às soltas é criminoso. o salário dos juízes é criminoso. claro que com tanto crime não há auto-estima que aguente. o lado alegre do Brasil é muita solidariedade, hoje destruída por causa do baixo astral inflingido à política pelos criminosos, ou seja, pelos assessores dos políticos profissionais, que sequer foram desasnados em cursos de teoria da escolha pública.
ok, número dois: no caderno Cultura tem alguns artigos sobre as tradições gaúchas. entrevista com Rubem Olivem, respeitado antropólogo deste lado do equador (e de todos os demais lados). fala-se de seu livro "A Parte e o Todo - a diversidade cultural no Brasil". Petrópolis: Vozes, 1992 e 2006.
creio que ele, Rubem, deu-se conta de algo importante ligado com os 200 anos de transporte a vapor e sucedâneos. da globalização, nasceu a peculiaridade do "homogêneo localmente" e "diverso globalmente". acho que o exemplo é de Samuel Bowles: a culinária. mas também os modos de produzir, de viver socialmente, de tudo.
fala agora o editor do caderno:
"O que é ser gaúcho e o que torna um gaúcho diferente dos demais brasileiros? Qando e de que maneira nasceu o Rio Grande do Sul? O que, em sua história, economia, cultura e floclore, distingue nosso estado dos demais da federação? Qual é a relação existente entre o Rio Grande do Sul e o Brasil hoje e o que mudou nessa relação ao longo dos anos?"
pelo que entendi na entrevista de Rubem nas duas páginas seguintes, o tradicionalismo gaúcho foi inventado por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa (nomes que me são familiares, mas não íntimos, como o é, digamos, Bowles, J L Borges ou mesmo Mao-Tsé-Tung (de quem li uma malfadada biografia). rola o seguinte:
"Sabe, professor, isso que esse historiador, o Hobsbawn (Eric Hobsbawm, coorganizador de A Invenção das Tradições [sic mut mut]) disse no livro dele que é importante inventar a tradição [...] isso a gente já sabia há muito tempo, e foi por isso que a gente inventou o Tradicionalismo."
seguiu Rubem: "Eles dizem que inventaram a tradição". e conta dois casos interessantes, coisas que recebi como sendo "folklore", ou seja, coisas velhas prá burro: a canção "Negrinho do Pastoreio" e a "Dança do Pezinho". então fiquei pensando: è vero. quando cheguei de volta a Porto Alegre há 50 anos precisos, aqui não era legar beber chimarrão, usar roupas de gaúcho, e tudo o mais. provo: eu tinha um cinto de couro de vaca, muito charmoso para os padrões jaguarienses, o que me valeu muita dor de cabeça no primeiro e único dia que o usei para ir à escola. o chimarrão, se bem lembro, reingressou em minha casa já durante os anos 1970 bem adentrados.
eu nunca esquecerei - e talvez seja ilusão, mas pode-se buscar nos jornais e concluir se era mesmo ilusão ou carteirinha de sócio no clube da baixaria. o quê? li no jornal que -se bem lembro- no início dos anos 1970s (ou no máximo no final dos anos 1980s, mas muito, muito antes desta segunda data), um gaúcho vestido a rigor caminhava pela Rua da Praia, que estava sendo submetida a buracos dentro dos quais iriam canos ou o que seja. havia as pedras, os paralelepípedos retirados ao leito da rua e depositados ao lado dos buracos. estes seriam preenchidos e aqueles dariam o acabamento.
um porto-alegrense, assustado com a presença de um interiorano, chamou-o às falas, ou seja, disse-lhe algumas opiniões desabonadoras sobre o interior, na visão da capital. o gaúcho revidou, houve uma espécie de rebelião do povo da cidade de Porto Alegre contra o invasor campeiro. um dos sitiantes (ao pobre gaúcho, já estamos pressindo o que vai rolar) atirou-lhe à cabeça um dos paralelepípedos, matando-o. minha memória mata-me? faz-me dizer esta barbaridade, ofensiva a toda a população local de todos os tempos? juro que li. juro que estará em um dos jornais da época, juro que foi num deles que li. seria talvez o Correio do Povo. vejamos quem encontra esta passagem.
hoje, quando se fala em cultivar os valores locais, fico pensando nestas coisas, no próprio hino do estado: "Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra". fico pensando na corrupção que grassa em todos os cantos do território nacional, no esporte nacional de atirar paralelepípedos à auto-estima, impedindo que as pessoas andem livremente pelas ruas, impedindo que vejamos o réprobo pagar pelo crime, impedindo que haja uma tabela decente para o imposto de renda. impedindo que demos uma resposta consentânea às perguntas do editor.
resumo absoluto: por que falei em religião? porque, lendo a entrevista de Rubem Oliven, entendi que a criação da tradição é tão arbitrária quanto a religião. e ambas servem para dizer que o local é melhor do que os outros locais, ainda que endeusemos o global.
DdAB
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2 comentários:
divulga duílio por favor!!!!
http://fbvasconcellos.blogspot.com/2012/01/sugestao-aos-nossos-representantes.html
digulguei em
http://19duilio47.blogspot.com.br/2012/01/comentarios-hora-da-virada.html
DdAB
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