23 fevereiro, 2023

Amartya Sen e o Governo


À medida que a teoria econômica do século XX evoluiu a ponto de fazer-se uma crítica importante, aquele endeusamento das virtudes quase celestiais do livre funcionamento das forças de mercado veio a receber críticas acerbas. E, nesta linha, passou-se a falar em "falhas de mercado", como a existência de monopólio (que impede que o custo marginal M seja o determinante do preço da mercadoria, dando ao ofertante poder... de monopólio), fixando o preço acima do valor desse M e, para qualquer empresa com poder de monopólio, a discriminação de preços. A mais famosa das falhas, e talvez até nem a mais perniciosa é chamada de "externalidade", no sentido de que o mercado falha ao avaliar adequadamente tanto a produção (oferta) quanto sua absorção (demanda).

A todas essas falhas, nos anos 1950, os economistas da chamada teoria da escolha pública, passaram a acrescentar também as "falhas de governo", como é o caso da influência nas decisões políticas dos grupos de interesse ou a troca de votos entre os representantes populares nas câmaras legislativas. E, para fechar o tripé mercado-estado-comunidade, também passou-se a falar em "falhas de comunidade", como o linchamento e o suborno de autoridades penais públicas para fazerem vista-grossa a infrações das leis.

Nestas circunstâncias, prosseguindo na leitura das p. 314-315 de

SEN, Amartya (2022) Home in the World. New York: Liveright. 

encontrei uma passagem altamente erudita de Amartya conversando com dois Sams sobre as falhas de mercado. Destaquei os seguintes dois parágrafos. Apresento-os na tradução do Google revisada por mim:

[,,,] Eu estava mais preocupado do que Sam [Brittan, o primeiro Sam] com as deficiências do mercado e o que ele poderia fazer, em particular, sua incapacidade de lidar com influências sobre indivíduos e sociedades alheias ao sistema de mercado - o que os economistas chamam de 'externalidades ' (do qual a poluição, o crime, a miséria urbana e a prevalência de doenças infecciosas são bons exemplos). A. C. Pigou já havia escrito de forma muito esclarecedora, em 1920, sobre externalidades de diferentes tipos em seu notável livro A Economia do Bem-estar.

Em 1954, enquanto eu cursava economia com Sam Mahbub [o segundo Sam] e outros, o grande economista Paul Samuelson publicou um poderoso artigo intitulado "The Pure Theory of Public Expenditure", que discutia como os mercados tendem a avaliar muito erroneamente a produção e colocação de 'bens públicos' compartilhados, como segurança, defesa, arranjos gerais para cuidados de saúde e assim por diante. Uma escova de dentes é um bem privado por excelência (se é minha, não é sua para usar) e o mercado tende a lidar muito bem com bens privados. No entanto, a ausência de crime nas ruas é um bem público no sentido de que o uso dele por uma pessoa (beneficiando-se de uma baixa taxa de criminalidade por meio de seu impacto favorável em sua vida) não reduz a utilidade do mesmo 'bem' (a baixa taxa de criminalidade) para outra pessoa. O pensamento de Samuelson, que mostrava a gravíssima limitação da alocação de recursos para serviços públicos - se feita apenas por meio do mercado - teve grande impacto em minhas preocupações fundamentais, e tentei persuadir Sam a compartilhar dessa convicção. Concordamos com a solidez da distinção de Samuelson, mas, suspeito, continuamos divergindo sobre a importância que atribuímos aos bens públicos na tomada de decisões econômicas. Se essa era uma diferença, outra era a importância de evitar graves desigualdades econômicas, com as quais eu estava muito preocupado. Nosso forte acordo, bem como algumas diferenças residuais, sempre tornaram minhas relações com Sam intelectualmente estimulantes e produtivas.


Parece que os economistas da corrente principal (se é que ela ainda é assim chamada) esqueceram estes traços da história do pensamento econômico, negando-se a estudar a chamada teoria da escolha pública e, com ela, eximindo-se de pensar no governo como uma instituição que apresenta falhas escalafobéticas. Claro que isto faz muito mal para a esquerda que não consegue evitar trivialidades como a corrupção, eximindo-se de clamar por um governo mundial.

DdAB

Aqui está o original das páginas 314-315 do livro que citei lá no início.

   [...] I was more bothered than Sam [Mahbuh] about the deficiencies of the market and what it could do, in particular, its inability to deal with influences on individuals and societies coming from outside the market - what economists call 'externalities' (of which pollution, crime, urban squalir and the prevalence of incectious diseases are good examples). A. C. Pigou had already written very illuminantingly, in 1920, on externalities of different types in his outstandig book The Economics of Welfare.

   In 1954, even as I was doing undergraduate economics with Sam Mahbub and otheres, the great economist Paul Samuelson published a powerful paper entitles 'The Pure Theory of Public Expenditure', which discussed how markets tend to go very badly wrong in the production and placement of shared 'public goods' such as security, defense, general arrangements for health care and so on. A toothbrush is a quintessencial private good (if it is mine, it is not yours to use)  and the market tends to deal with private goods pretty well. However, the absence of crime in the streets is a public good in the sense that one person's use of it (benefiting from a low crime rate through its favourable impact on his or her life) does not remove the usefulness of the same 'good' (the low crime rate) for another person. Samuelson's thinking, which showed the very serious limitation of the allocation of resources for public services - if made only through the market - had a big impact on my foundational concerns, and I tried to persuade Sam to share that conviction. We agreed on the soundness of Samuelson's distinction, but, I suspect, continued to differ on the importance we placed on public goods in economic decision making. If that was one difference, another was the importance of avoiding serious economic inequalities, with which I was much concerned. Our strong agreement as well as some residual differences always made my relations with Sam intelectually stimulating and productive.

DdAB

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