23 junho, 2019

Finnegans Wake: postagem número 2 (era língua artificial?)

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No dia 15 de maio deste ano que corre contra o Brasil por causa daqueles 57 milhões de votos depositados em favor de Jair Bolsonaro, escrevi no blog: Finnegans Wake: não dá pra ler...

Lá fiz o anúncio de que iria ler três ou quatro peças literárias envolvendo a feitura desse livro. Em torno do pós-12 de maio (dada que assinalei como da chegada do livro encomendado à Amazon, que estou em boicote contra a Estante Virtual por um ano), concluí a leitura do segundo livro de Dirce Waltrick do Amarante (ver postagem que indico no parágrafo anterior). 

A notícia otimista é que, depois dessa bateria de ideias e explicações feitas pelos autores daquele quarteto, sem esquecer o que já lera no livro de Donaldo Schüller, passei a admirar um tanto mais o velho James Joyce. E a má notícia é que não posso deixar de sentir carinho por um louco levado a tão escabelados sonhos, carregados por um esforço pessoal da ordem de trancar com as mãos e o peito a própria correnteza do rio Liffey. Tanta disciplina tinha O Louco de Dublin, sofrendo cada vez mais com os problemas de visão, i.e., cegueira gradativa, que fiquei estupefato ao ler que, a certa altura, ele disse: "Estou tão prejudicado das vistas que mal consigo fazer a barba" [frase citada de memória, já não sei de qual fonte, com aquelas 'vistas', acho que foi mesmo a Dirce Waltrick do Amarante].

No segundo livro que li de Amarante, passei a criticar as algaravias de Finnegans Wake sob outro ponto de vista. Vim a entender tratar-se da tentativa de criação de uma língua artificial. Cara, uma língua artificial, meu. Nada menos que uma língua artificial, e nada mais artificial que uma língua artificial, apenas empatando com um sistema econômico-social artificial, como é o caso do socialismo alheio à social-democracia.

Na condição de falante (e leitor) da língua portuguesa, sem maiores compromissos com a visão estabelecida, há anos, quando comecei a fazer essa analogia de artificialidades entre linguagem e socialismo, olhei daqui e dali e aconcheguei-me à Wikipedia (aqui, talvez verbete já editado).  Então vou anotar uns trechos de Amarante que evocam essa viagem:

Página  67: um certo Aleph
[...] Sua [de Finnegans Wake] sintaxe básica e seu ritmo são aqueles do inglês falado em Dublin, mas existem ecos de quase 50 línguas de todas as partes do mundo.
É uma Babel!
[...] 'a história é contada numa língua que contém todas as línguas'
Um ponto que abarca todos os demais pontos, inclusive a si próprio, é o Aleph de Jorge Luis Borges.
[...] Desde jovem, Joyce refletia sobr a possibilidade de uma língua literária universal, que não fosse nenhuma das línguas conhecidas. [Nota 177] Em julho de 1905, o então jovem escritor declarou: 'eu gostaria de uma língua que estivesse acima de todas as línguas, uma língua que todos pudessem utilizar. Eu não me posso expressar em inglês sem encerrar-me numa tradição.'
Depois daquele "escritor", passamos à página 68. Mas aquela nota de rodapé 177 (que se prolonga pela página 68) é talvez a mais interessante do pedaço:
Na América Latina, o pintor, místico e poeta argentino Oscar Alejandro Augustín Schulz Solari, ou simplesmente Xul Solar, contemporâneo de Joyce, iniciou também na década de 1920, um trabalho similar com a linguagem. O envolvimento de Xul com os movimentos de vanguarda levou-o a criar dois idiomas, a 'panlíngua e o 'creol' ou 'neocrioulo'. O primeiro idioma era filosófico, já o outro era uma reforma do espanhol, com palavras inglesas, alemãs, gregas e a retomada do idioma guarani. Este segundo idioma, o 'neocrioulo', apresenta certas semelhanças com a língua criada por Joyce em Finnegans Wake: é formado por uma mescla de línguas e pretendia ser uma língua cosmopolita e sem fronteiras - o objetivo de Xul era criar uma língua para a América Latina, alternativa àquela do colonizador europeu -; os textos que ele escreveu em 'neocrioulo' vêm acompanhados por uma 'glosa' que ajuda a decifrar o vocabulário do texto.d Além disso, os textos nesse idioma exigem uma participação ativa do leitor, por permitirem uma multiplicidade de significados.
Na página 69 ainda lemos:
   Certamente não se pode mais analisar e compreender a motivação que teria levado Joyce a criar um dialeto 'universal', o dialeto do sonho da humanidade sem levar em conta uma questão regional, a questão irlandesa.' [...] Assim, na opinião de Seamus Deane, 'Finnegans Wake é a resposta de Joyce a um problema irlandês. Está escrito numa língua fantasma, sobre figuras ilusórias; a histŕoa é assompbrada por eles e os incorpora repetidas vezes em pessoas, lugares e linguas específicas. Se a Irlanda não pode ser ela mesmoa, em compensação, o mundo pode se tornar a Irlanda'.
E paremos.

Resumo: James Joyce viveu num tempo em que volta e meia faziam-se tentativas de produzir uma língua artificial, talvez todas essas tentativas orientadas pela busca da fraternidade universal. Desse momento, destacou-se o esperanto. Seu fundador (aqui) morreu em 1917, estando Joyce a cinco anos da publicação do Ulysses. Mas a própria Wikipedia diz algo estonteante sobre o que pode acontecer com a língua artificial que passa a ser falada por muita gente:

Todavia, tão logo uma linguagem construída comece a ter certo número de falantes nativos, ela começa a evoluir e em consequência perde seu caráter artificial ao longo do tempo. 

Tentando não me alongar ainda mais, que posso dizer sobre a analogia que venho fazendo entre o esperanto e o socialismo? Uma população que fale apenas o esperanto desde o nascimento terá dificuldade, presumo eu, de criar novas palavras, ou -se o fizer- cairá naquela perda de caráter que a caracteriza como língua artificial. O socialismo é artificial, mas não começou  a evoluir, pelo menos não o fez no sentido da transição da artificialidade à incorporação de traços acrescentados às características estruturais do sistema, tendo levado ao fracasso em virtude da incapacidade de enfrentar diversos problemas, como a invasão de caroneiros, a criação de uma burocracia partidária, a falta de imprensa livre, a falta de desenvolvimento comunitário, a corrupção e especialmente a falta de incentivos para a elevação da produtividade do trabalho.

DdAB
Imagem: Rio Liffey, com uma vista que me é familiar, embora não seja foto de minha autoria. Diz que se chama Ponte Samuel Becket, um negão que foi tipo secretário de James Joyce. Perto de outra ponte mais para a montante do rio, há uma estátua do próprio Jim.

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