Olha, espero que os economistas consideram esta postagem pura e finíssima literatura e que os demais leitores, especialmente, o Nytha, a quem dedico as reflexões, considerem um inteligentíssimo ensaio sobre sistemas econômicos comparados. E que ninguém ache que exagerei na citação que farei ao livro de Leonardo Padura.
Pois então. O assunto começa em duas pontas. A primeira foi o convite que Nithamar de Oliveira fez em seu mural do Facebook para que eu me pronunciasse sobre um comentário que ele próprio fez a uma entrevista que Jessé Souza deu para o jornal eletrônico (americano) The Intercept. Jessé, como sabemos de suas últimas entrevistas e até livros, tem participado ativamente do debate sobre o que a esquerda tem negligenciado no Brasil.
Nithamar disse:
Por não compreender a lógica do capitalismo financeiro e erroneamente se imaginar como parte integrante da elite, a classe média abriu mão do pacto democrático para abraçar a ideia de que a corrupção do estado é a fonte de todos os males no Brasil – e não o assalto “legalizado” promovido por bancos e grandes corporações.
Eu comentei [agora com ligeiras editoriações]:
Estou preparando uma resposta estratosférica em meu blog. Quando terminar (uma enorme transcrição do livro "Hereges", de Leonardo Padura), aviso aqui. Por enquanto, respondo indiretamente o comentário inicial do Nythamar de Oliveira. Também evoco Jessé Souza, no livro "A tolice da inteligência brasileira", em que ele denuncia a incapacidade que ela tem de entender que o verdadeiro problema do Brasil não é a cordialidade, nem a divisão entre casa grande e senzala, nem aquela encrenca de vida caseira e vida na rua, mas essencialmente o problema negligenciado pelos pensadores do Brasil é a desigualdade. Nesta linha, obviamente faltam políticas públicas (gasto regressivo, impostos progressivos e crédito para o auto-emprego). De qualquer modo, entendo que o verdadeiro problema não é exclusivamente causado pelo poder dos bancos, pois este apenas tem tanto poder no Brasil por causa da desigualdade, que não tem sindicatos fortes e outras organizações extra-mercado e extra-estado que poderiam exercer aquele "coutervailing power" de J.K. Galbraith. Também quero ver o que Adalmir Marquetti pensa sobre o artigo original.
E aí encerro a primeira ponta. Vamos à segunda que começa com minhas reflexões sobre as diferentes opiniões externadas lá no mural do Nytha, como acabo de iniciar... Não tenho medo de dar opiniões sobre temas relativamente aos quais tenho alguma leitura. Para exemplificar, refiro meu ódio ao prestígio que os esforços de reindustrialização têm juntamente a certos segmentos de economistas da esquerda. Primeiro, abomino as políticas industrializantes que, a meu ver, apenas contribuíram para acentuar a desigualdade. Segundo, sugiro que, se é para começar com indústria, tomemos os serviços industriais de utilidade pública (parte dos quais é o saneamento e que eu refiro, para mostrar meu radicalismo, como "esgotos"). De fato, a falta de esgotos -cloacais e seu tratamento- é uma praga, só ela já servindo de indicador de desigualdade: há muito mais ricos sendo servidos por esgotos no Brasil do que pobres. Bem, no caso, estou dizendo que o verdadeiro problema, sendo a desigualdade, deve obviamente levar ao controle fácil da sociedade por grupos predadores, como é o caso do poder judiciário, do legislativo e da tecnoestrutura, com gente como o próprio Paulo Guedes e, antes dele, Pedro Malan, Pérsio Arida, André Lara Rezende, Edmar Bacha e essa turma que encontra acolhida na Casa das Garças, além de meia-dúzia de economistas da USP, como é o caso de João Sayad. Então entendo que a manutenção e expansão dos níveis da dívida pública nada mais é que a apropriação do excedente social por essa turma, aplicadores, acionistas e até outros rentistas urbanos e rurais. E que, se houvesse mais educação, seria mais fácil transformar as instituições que contribuem para a predação dos menos favorecidos. Além disso, mais educação levaria à criação de outras instituições também voltadas a reduzir a desigualdade.
Eu comentei [agora com ligeiras editoriações]:
Estou preparando uma resposta estratosférica em meu blog. Quando terminar (uma enorme transcrição do livro "Hereges", de Leonardo Padura), aviso aqui. Por enquanto, respondo indiretamente o comentário inicial do Nythamar de Oliveira. Também evoco Jessé Souza, no livro "A tolice da inteligência brasileira", em que ele denuncia a incapacidade que ela tem de entender que o verdadeiro problema do Brasil não é a cordialidade, nem a divisão entre casa grande e senzala, nem aquela encrenca de vida caseira e vida na rua, mas essencialmente o problema negligenciado pelos pensadores do Brasil é a desigualdade. Nesta linha, obviamente faltam políticas públicas (gasto regressivo, impostos progressivos e crédito para o auto-emprego). De qualquer modo, entendo que o verdadeiro problema não é exclusivamente causado pelo poder dos bancos, pois este apenas tem tanto poder no Brasil por causa da desigualdade, que não tem sindicatos fortes e outras organizações extra-mercado e extra-estado que poderiam exercer aquele "coutervailing power" de J.K. Galbraith. Também quero ver o que Adalmir Marquetti pensa sobre o artigo original.
E aí encerro a primeira ponta. Vamos à segunda que começa com minhas reflexões sobre as diferentes opiniões externadas lá no mural do Nytha, como acabo de iniciar... Não tenho medo de dar opiniões sobre temas relativamente aos quais tenho alguma leitura. Para exemplificar, refiro meu ódio ao prestígio que os esforços de reindustrialização têm juntamente a certos segmentos de economistas da esquerda. Primeiro, abomino as políticas industrializantes que, a meu ver, apenas contribuíram para acentuar a desigualdade. Segundo, sugiro que, se é para começar com indústria, tomemos os serviços industriais de utilidade pública (parte dos quais é o saneamento e que eu refiro, para mostrar meu radicalismo, como "esgotos"). De fato, a falta de esgotos -cloacais e seu tratamento- é uma praga, só ela já servindo de indicador de desigualdade: há muito mais ricos sendo servidos por esgotos no Brasil do que pobres. Bem, no caso, estou dizendo que o verdadeiro problema, sendo a desigualdade, deve obviamente levar ao controle fácil da sociedade por grupos predadores, como é o caso do poder judiciário, do legislativo e da tecnoestrutura, com gente como o próprio Paulo Guedes e, antes dele, Pedro Malan, Pérsio Arida, André Lara Rezende, Edmar Bacha e essa turma que encontra acolhida na Casa das Garças, além de meia-dúzia de economistas da USP, como é o caso de João Sayad. Então entendo que a manutenção e expansão dos níveis da dívida pública nada mais é que a apropriação do excedente social por essa turma, aplicadores, acionistas e até outros rentistas urbanos e rurais. E que, se houvesse mais educação, seria mais fácil transformar as instituições que contribuem para a predação dos menos favorecidos. Além disso, mais educação levaria à criação de outras instituições também voltadas a reduzir a desigualdade.
Essa macacada que chegou ao poder com Jair Bolsonaro foi ungida pela mais espantosa frente única de interesses, inclusive as antigas e futuras vítimas desse mundo regido pela desigualdade. Mas falei lá no mural do Nytha em Leonardo Padura, um cara que nasceu já durante o período em que o comunismo regia a vida de Cuba. Li seu outro livro "O homem que amava os cachorros", e, na verdade, contei três homens: o narrador da história (cujo irmão foi proibido de estudar medicina em Cuba por ser viado), segundo, Trotsky e, terceiro, seu assassino o espanhol Ramón Mercader. O livro do qual vou citar partes é, como já referi na postagem de 7/fev/2019:
PADURA, Leonardo (2017) Hereges. São Paulo: Boitempo. (Romance. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacth).
Então fiquei associando coisas que Padura fala sobre judeus, sua condição de "errantes" na Europa e a tragédia que também presidiu sua relação com a Cuba pré-revolucionária. Na Cuba revolucionária, temos um balanço triste. Mas comecemos com uma citação mais relacionada com a cultura judaica, o que me lembrou em algumas medidas aquele messianismos/pentecostalismo brasileiro com o qual tenho contato há mais de 60 anos, ainda menino morador de Campo Grande, Matto Grosso e, ao que me consta, a adoção do antigo testamento. Entendo que esse ambiante de -como dizem- liberalismo econômico e conservadorismo político tem muito a ver com essa evolução. Mas tudo isso precisa de uma variável de controle que os estudiosos da economia europeia devem considerar. O próprio neo-liberalismo é terrível para os desvalidos da Europa, mas nem se compara com o que acontece no mundo subdesenvolvido, destacando-se o Brasil. Falando em Europa e Cuba, não podemos esquecer que o fim do comunismo se deve muito menos àquelas conexões financeiras, e muito mais à própria via autoritária dos governantes e dos grupos de interesse a eles associados, praticamente sempre envolvidos com a corrupção. Agora começo uma citação grande (na página 267 do livro recém mencionado) e outra enorme das páginas 420 a 423 e ainda outra da página 432. E vou marcar com [[número]] comentários que endereçarei a certas passagens, lá como pós-escritos e vou usar [...] para os comentários de esclarecimento que inseri ao texto original.
Comecemos. Página 267,
'[...] Pouco depois da destruição do Templo [de Israel, de Salomão], em meio às perseguições de Adriano, foi realizada uma grande assembleia de rabinos e doutores e se estabeleceram as duas regras fundamentais para a sobrevivência da fé dos hebreus, duas regras válidas até hoje. A primeira é que o estudo é mais importante que a observância das proibições e das leis, pois o conhecimento da Torá leva à obediência de suas sábias prescrições, enquanto a observância pura sem a compreensão racional da origem das leis, não garante uma fé verdadeira nascida da razão. A segunda regra, você vai lembrar pela história de Judá Abravanel que tantas vezes [Ben Israel, o chacham, o professor, contou], tem a ver com a vida e a morte. Quando é preciso morrer antes de ceder?, perguntaram esses sábios há mais de 1.500 anos, e responderam para todos nós que somente em três situações: se o judeu for obrigado a adorar falsos ídolos, a cometer adultério ou a derramar sangue inocente. Mas todas as outras leis podem ser transgredidas em caso de perigo de morte, pois a vida é o mais sagrado', disse o professor, e esticou o braço como se fosse pegar de volta o cachimbo, mas desistiu. 'Com isso quero dizer apenas duas coisas, Elias Ambrosius Montalbo de Ávila: uma, que as leis devem ser pensadas pelo homem, pois é para isso que ele tem inteligência, e a fé deve ser raciocínio antes da aceitação. A segunda é que, se você não violar nenhuma das grandes leis, não estará ofendendo a Deus de forma irreversível. E, se não ofender o Bendito, pode esquecer seus vizinhos. Claro, se estiver decidido de enfrentar a ira dos homens, que às vezes pode ser mais terrível que a dos deuses.' [[1]]
Sigamos nas páginas 420 a 423, fazendo antes uma ligeira observação. A chamada feita pelo Nytha sobre a visão de Jessé Souza coincidiu com minha leitura das páginas que acabo de referir de "Hereges". Então estou numa parte em que uma guria sumida teve a atenção do detetive Mário Conde despertada, a pedido de uma amiga dela. Ambas são emo (Google: Emo é também como uma cultura alternativa, um estilo de vida, que se propagou pelo Brasil e pelo mundo. Muitos jovens se identificam com a ideologia emo, mas o que mais chama atenção é a maneira que os adeptos desse estilo de vida se vestem.) Ao lado de outras "culturas" punk, rasta freaky e miti (???, fora os beatniks e góticos), essa turma emo, segundo a interpretação corrente no livro, expressavam basicamente ódio ao sistema que os jovens cubanos sentiam em 2008.
Quase uma década do fim do comunismo soviético e, pelo que entendo, até a fome fustigou a população cubana. As promessas, o "homem novo", os "pioneiros", tudo virou balela, uma enorme desilusão. A leitura dessas páginas retratando a desilusão dos jovens cubanos comoveu-me, pois entendo que o problema devastou o mundo inteiro, ocidente e oriente, pobres e ricos, nortistas e sulistas. Nesse clima de generalizado descontentamento é que sou capaz de explicar os próprios rumos de destruição da social-democracia europeia, da eleição de Trump nos Estados Unidos, da eleição dessa macacada de direita pela América do Sul, culminando com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil. (Sem falar no italiano Berlusconi e no britânico Tony Blair). Então, ao ver Padura falando em Cuba, fiquei imaginando que muito daquilo que desnorteia os jovens de lá também serve para explicar muita coisa deste país relativamente pobre (andei ouvindo que o PIB per capita cubano é assemelhado ao brasileiro), deseducado e desabotinadamente desigual.
Aqui o que vemos é uma entrevista que o detetive entretém com uma professora especialista no comportamento desses jovens (a Rosana Pinheiro-Machado de lá...). Vão falar o narrador da história, o detetive e a doutora.
Vai lá, Padura, páginas 420 a 423,
A doutora Eugenia Cañazires era considerada a máxima autoridade local na questão da relação com o corpo dos jovens adeptos das filosofias punk, emo, rasta e freaky. Passara anos convivendo com as ânsias e angústias daqueles garotos e trocando reflexões com especialistas, como o francês David Le Breton, segundo ela um sujeito encantador e o mais coerente dos estudiosos do assunto. O livro de Cañazires sobre a história e o presente da prática da tatuagem em Cuba era um dos resultados dessa aproximação.
A mulher, navegando por seus sessenta e poucos anos, mostrava os sinais da influência exercida sobre si por seus objetos de estudo. Em cada orelha usava quatro brincos, na mão uma pequena borboleta tatuada, e uma carga de pulseiras e colares de todas as cores e materiais que se possam imaginar, mais cores e materiais do que sua idade podia suportar sem beirar o ridículo. De algum modo, com aquela carga de penduricalhos e os olhos de um verde agressivo, mais do que socióloga, parecia uma das bruxas de Macbeth, segundo os esquemáticos critérios de Conde.
-No fundo desses comportamentos sempre há uma grande insatisfação, muitas vezes com a família. Mas desse círculo se projeta a sociedade, também opressiva, com a qual querem romper, no mínimo tomar distância para buscar alternativas familiares e sociais: daí o pertencimento à tribo. A tribo costuma ser democrática, ninguém obriga ninguém a pertencer nem a permanecer, mas como conjunto potencializa o sentimento de escolha voluntária e, com ela, o de liberdade que é o que está no destino dessas buscas. Liberdade a qualquer preço, e zero pressão familiar ou social ou religiosa. E nem ouvir falar de política. Mas não se trata só da libertação da mente das ideias impostas por um sistema de relações caduco, com também da libertação da mente do corpo onde habita. Você pode imaginar que pretender tudo isso num país socialista, planejado e vertical... é botar lenha na fogueira! Veja, desde o tempo dos gnósticos, e como retomou Nietzsche e agora os pós-evolucionistas, o corpo é considerado um recipiente inadequado para a alma. Por isso, um fundamento importante das elucubrações dessas filosofias assimiladas por esses jovens é que o homem não será totalmente livre enquanto não perder toda e qualquer preocupação com o corpo. E, para começar a se distanciar do corpo, acentuam sua feiura, sua escuridão, ferem-no, marcam-no, mancham-no, mas muitas vezes também o drogam para sair dele sem sair. [[2]]
Conde escutava e tentava segui-la por aquele fluxo de revelações capaz de apresentá-lo a um conceito de busca da liberdade que, afinal, levava apenas à sua negação, pois abria as grades de outros cárceres, como entendia ele, militante agnóstico e, com toda certeza, pré-evolucionista. O mais corrosivo era que, nos últimos anos, ele convivera na mesma cidade com aqueles jovens e quase não parara de observá-los, considerando-os uma espécie de palhaços da pós-modernidade obcecados por sair dos códigos sociais com o recurso de tornar-se notavelmente [sic] diferentes, jamais lhes atribuindo a profundidade de um pensamento e de objetivos libertários (libertários mais que libertadores, reafirmou-se na ideia, apoiado na anarquia de suas buscas). Apesar dos grilhões que usavam. Mas eram seu próprios grilhões, e essa propriedade indicava a diferença. A diferença num país que pretendia ter apagado as diferenças e que, na realidade de todos os dias, ia se enchendo de camadas, grupos, clãs, dinastias que destroçavam a suposta homogeneidade concebida por decreto político e por mandato filosófico.
-Os gnósticos, que misturavam cristianismo e judaísmo [[3]] para tentar chegar a um conhecimento do intangível, estão na origem de todas essas filosofias juvenis, embora seus praticantes quase nunca tenham a menor ideia disso. Os que pensam um pouco consideram que a alma é prisioneira de um corpo submetido à duração, à morte, a um universo material e, portanto, obscuro. Por isso levaram o ódio ao corpo ao extremo de considerá-lo uma indignidade irremediável. Esse processo é chamado de ensomatose: porque a alma caiu no corpo insatisfatório e perecível no qual se perde. A carne do homem é a parte maldita, condenada à morte, ao envelhecimento, à doença. Para chegar ao intangível é preciso libertar a alma: sempre a libertação, sempre a liberdade, como se vê. Mas todo esse pensamento, mal cortado e mal ajambrado, funciona de maneiras muito diferentes na mente desses garotos. Porque desprezam o corpo, mas muitas vezes também temem a morte. E se empenham em corrigir o corpo, em superar o que Kundera (por que você acha que Judy o lê? chamou de insustentável leveza do ser. Lembra-se de Blade Runner e suas criaturas de físico perfeito, mas também condenadas à morte? Esses jovens se congratulam por estar vivendo no que Marabe chama de tempo pós-biológico, e Stelare, de pós-evolucionista. Mas a verdade é que a maioria deles não tem ideia dessas sínteses, só de suas consequências, às vezes só de suas bravatas. Mesmo assim, porém, participam da certeza de estar vivendo no tempo do fim do corpo, esse lamentável artefato da história humana que agora a genética, a robótica ou a informática podem e devem reformar ou eliminar.
-E vamos acabar com uma cabeça enorme e braços magrinhos, ou com braços fortes e cabeça oca? Porque os replicantes de Blade Runner são grandes e atléticos - e interrompeu sua saraivada de bobagens quando ia expor sua avaliação machista das mulheres replicantes, que, com bem lembrava, eram muito gostosas.
-O que quero dizer é que tomar um porre de todos esses conceitos pode ter resultados muito desagradáveis. A busca da depressão abre as portas para a verdadeira depressão, o anseio de liberdade pode levar à libertação, mas também à libertinagem, que é o mau uso da liberdade, e a recusa do corpo muitas vezes leva a profundezas mais tenebrosas do que buracos na orelha, no clitóris ou na glande , ou cortes nos braços. A inexistência de Deus pode levar à perda do temor do temor a Deus. Vocês têm de encontrar essa moça, porque alguém assim é capaz de fazer qualquer coisa. Inclusive contra si mesma.
"Porra!", pensou Conde já se sentindo cansado pelas novas cargas recebidas.
-O pior -continuou a doutora Cañizares, já sem freios naquele declive de seu pensamento e suas obsessões-, o terrível é que, embora pareçam um grupo reduzido, esses jovens estão expressando um sentimento geracional bastante difundido [[4]]. São resultado de uma perda de valores e categorias, do esgotamento de paradigmas verossímeis e de expectativas de futuro que percorre toda a sociedade, ou quase toda... ou toda a parte dela que diz ou faz mais ou menos o que realmente pensa. A distância entre o discurso político e a realidade se abriu demais, cada um vai para um lado, sem se olharem, quando deveria haver um discurso que observasse a realidade e se redefinisse. [[5]]
-Pode me dizer isso de outra forma, doutora? É que estou ficando velho e burro.
A mulher balançou as pulseiras nos punhos e sorriu:
-Meu rapaz, o caso é que esses garotos não acreditam em nada porque não encontram nada para acreditar. A história de trabalhar por um futuro que nunca chegou não lhes diz coisa alguma, porque para elas já não é nenhuma história, é mentira. Aqui, quem não trabalha vive melhor do que quem trabalha e estuda, quem se forma na universidade depois passa o diabo para poder sair do país se quiser ir embora, quem se sacrificou durante anos está passando fome com uma aposentadoria que não dá nem par abacates. E então nem fazem as contas: alguns vão para onde podem, outros querem ir, outros vivem de bicos, outros fazem o que dá dinheiro: putas, taxistas, cafetões... E outros ainda viram freakies, roqueiros e emos. Se somar todos esses outros, você vai ver que a conta é pesada, são muitos. A coisa é assim. Sem rodeios. Chegamos a isso depois de tanta ladainha sobre a disputa fraternal para ganhar a bandeira de coletivo de vanguarda nacional e a condição de operário exemplar na emulação socialista. [[6]]
E concluamos com a terceira citação, agora da página 432,
O que Mario Conde podia dizer que sabia, uma coisa que antes só intuía e agora havia comprovado de forma convincente, era que Judy [a garota emo que levou o detetive a sua segunda investigação nas entranhas da vida cubana] e seus amigos constituíam a ponta visível e mais chamativa do iceberg de uma geração de hereges com causa. Aqueles jovens haviam nascido justamente nos dias mais duros da crise, quando mais se falava da Opção Zero, que no auge do desastre poderia levar os cubanos a viver nos campos e montanhas, como indígenas caçadores-coletores do neolítico insular da era digital e das viagens espaciais [[7]] Esses garotos haviam nascido e crescido sem nada num país que começava a se afastar de si mesmo para se transformar em outro, no qual as velhas palavras de ordem soavam cada vez mais ocas e sem sentido, enquanto a vida cotidiana se esvaziava de promessas e se enchia de novas exigências: ter dólares (independentemente da forma de obtenção), ganhar a vida com os próprios meios, não pretender participar da coisa pública, olhar o mundo que estava além das bardas insulares como uma criança observando um saco de balas e aspirar a pular nesse mundo. E pulavam, sem romantismos nem mentiras. Como disse à sua maneira a doutora Cañazires, a falta de fé e de confiança nos projetos coletivos [[8]] havia gerado a necessidade de criar intenções próprias, e o único caminho vislumbrado por aqueles jovens para atingir essas intenções era a libertação de todos os lastros. Não acreditar em nada a não ser em si mesmos e nas exigências da própria vida pessoal, única e volátil: afinal, Deus havia morrido [estamos falando de Nietzsche] -mas não só o deus do céu -, as ideologias não enchem a barriga de ninguém, os compromissos amarram. A profundidade e a extensão dessa filosofia conseguiram mostrar a Conde a urdidura mais dolorosa daquele mundo que, assim intuía, seu olhar mal pudera esquadrinhar. É verdade que Yoyi Pombo [um self-made man milionário desenvolvendo atividades legais e ilegais] tentara lhe mostra muitas vezes aquela realidade, à base de cinismo pragmático e ausência de fé. E que alguém como a mother de Yovany [amigo também emo de Judith] e da mãe do emo pálido e a dos jovens como Judy pareciam séculos, talvez até milênios. Os desastres que esses garotos haviam sido testemunhas e vítimas geraram indivíduos decididos a se afastar de todo e qualquer compromisso e criar suas próprias comunidades, espaços reduzidos onde encontravam a si mesmos, longe, muito longe, das retóricas de triunfos, sacrifícios, recomeços programados (sempre apontando para o triunfo, sempre exigindo sacrifícios), naturalmente sem contar com eles [[9]]. O mais terrível era que essas trilhas estreitas pareciam beirar precipícios sem fundo, letais em muitos casos. Havia até um componente antinatural iluminando as buscas de alguns desses jovens: a autoagressão pela via das drogas, as marcas corporais, a pretensa depressão e a negação; a ruptura dos tradicionais limites éticos com prática de um sexo promíscuo, diferente, vazio e perigoso, muitas vezes isento de emoção e sentimentalismo. E até de camisinha, em tempos imunodeprimidos.
Se aquele era o caminho, da liberdade, sem dúvida era uma via dolorosa, como muitas das autoestradas que pretenderam levar à redenção, terrestre ou transcendente. Mas, apesar de seus muitos preconceitos e sua moral pré-evolucionista, agora que conhecia um pouco mais daquele afã emancipador, Conde não podia deixar de sentir uma calorosa admiração por jovens que, como Judy, a filósofa e líder, sentiam-se capazes de jogar tudo no fogo -'É melhor se queimar do que se apagar lentamente', Cobain dixit-, inclusive o próprio corpo. Porque sua alma já era incombustível, mais ainda, inapreensível. Ao menos por enquanto. [[10]]
DdAB
[[1]] Separei esta primeira citação, pois ela deixa claro o papel da educação como prática da liberdade, se bem refiro o título de um livro de Paulo Freire. E fica demarcado um enorme contraste com aquela macacada que tanto cita a bíblia, mas tem uma fé que não é verdadeira, por não ser filha da razão. Em outras palavras, o Brasil contemporâneo foi tomado por um messianismo em que a turma, precisamente pela falta de educação formal, mas sabendo ler, balbuciando frases, não pode ser chamada de tendo feito uma escolha racional. Segue-se que os economistas que se obrigam a adorar falsos ídolos, como é o caso da heterodoxia radical, estão simplesmente falando de sua deficiente capacidade de raciocinar do que negando a importância do postulado da racionalidade para construir qualquer modelagem do mundo, seja religiosa, seja econômica. O mais grave tropeço consiste em -quem sabe?- desprezar o uso da razão como principal instrumento para combater a violência!
[[2]] Coisas em que eu nunca havia pensado vão emergindo da leitura, mas minha ideia fixa no Brasil e na tragédia que levou Lula a adotar a postura que vimos, a própria tragédia exibida pelo PT e sua predação por bandidos instalados no establisment brasileiro, e a tragédia que representou para o Brasil a eleição de Jair Bolsonaro, com a tal pauta "liberal na economia" e "conservadora nos costumes": o fim e mais além dele. Tatuagens, mutilações, alienação mental? É aqui conosco mesmo.
[[3]] Estamos falando também nas igrejas pentecostais brasileiras, cujo rebanho é constituído pela turma de baixo nível educacional, trabalhadores investidos de ralo conteúdo de capital humano.
[[4]] Ao ler este trecho da entrevista que a dra. Cañazares deu ao detetive, fiquei pensando que esta questão vai muito além do triste legado que o comunismo cubano deixou. Quero dizer, vale também para a União Soviética, para os Estados Unidos, para o Japão, para todo mundo! Naturalmente também penso naquela turma do voto em Bolsonaro e a fração de eleitores que compartilham esse sentimento de ruína.
[[5]] Insisto no ponto: estamos longe de tomar conhecimento apenas de um fenômeno característico da juventude cubana. A opressão foi a mesma na URSS e em todo mundo social-democrata, para não falar no terceiro-mundismo. Tantos sistemas econômicos e sociais estão encalacrados nessa situação que parece não haver alternativa, especialmente a partir da dupla Tatcher-Reagan que começaram a minar mortalmente a social-democracia. Há tempos aprendi o conceito de fake jobs (ver aqui, onde pendurei num rodapé o primeiro artigo de jornal que li a respeito), que vêm a ser basicamente escritórios artificiais em que desempregados se submetem à disciplina do mercado de trabalho, mas vivem num mundo em que o objetivo central é ocupá-los e, a lo mejor, treiná-los para voltarem ao (ou ingressarem no) mercado de trabalho.
[[6]] Parece que nem no comunismo houve verdadeira igualdade ou liberdade. Parece que, como aqui entre nós, na Europa, em todo lugar, um grande mal-estar cerca enormes grupos humanos. Parece que, mesmo nos países de maior igualitarismo os pobres têm performance inferior à dos ricos: menos educação, mais doenças, menos patrimônio, mais criminalidade, e por aí vai. E o comunismo cubano ainda deixou aquele grande legado de fome, quando caiu o da União Soviética. Fome também foi o preço pago na China pelos atropelos do "grande salto para frente" e da "revolução cultural. Parece que se deseja no Brasil uma "reforma da previdência" que sirva para aprofundar o abismo existente entre pobres e ricos.
[[7]] Uma sociedade que oferece este tipo de perspectiva como um futuro realmente possível foi levada ao desânimo por dilatados tempos de desacertos e tropelias.
[[8]] O interessante é que essa falta de fé nos projetos coletivos também invade a sociedade brasileira e provavelmente o restante da sociedade mundial. Já falei em Tony Blair, Silvio Berlusconi, Donald Trump e mais uma pilha de imitadores, inclusive o rapaz da Coreia do Norte, uma sociedade fechada como nos velhos tempos soviéticos. Acredito que este tipo de consideração trazido à realidade brasileira ajuda a darmos a devida dimensão para o bandwagon effect criado em torno da candidatura de Jair Bolsonaro. No país da democracia de voto obrigatório e de analfabetismo agudo, não seria de esperar outra saída que não a descrença nos projetos coletivos. A privatização no país de 90% de desvalidos quer dizer mesmo é que o patrimônio público será transferido aos ricos e, ainda mais vergonhoso, que é muito provável que boa parte dessa transferência patrimonial seja financiada pelo próprio governo. Além disso, vemos o desmonte das modestas ações do governo na provisão de bens públicos e bens de mérito.
[[9]] Mas o Brasil tem uma juventude, parte dela, engajada, por exemplo, na UNE. E também, dói-me reconhecer, inscrita em partidos de direita.
[[10]] Parece que a palavra "liberdade" é que se torna crítica nesse contexto e me faz lembrar, novamente, a tragédia ocorrida em Kronstadt em 1921. Ou seja, a revolução ainda era não mais que uma toddler e já provocou tanta desilusão naqueles segmentos da população dessa cidade/vila. Por todos esses desvios da rota que associava revolução e liberdade é que, com o tempo, vim a abjurar o socialismo (ou seja, proibição da propriedade privada dos meios de produção) e tempos depois entender que a humanidade ainda não criou instituições adequadas a fim de ampará-lo. E talvez nunca crie, embora eu ache que, sim, criará.
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